— Deve me achar fraca em crer enísh, e não quero que pareça que duvido do poder de Hadíj. Mas a noite caiu, o frio veio e tudo o que me vem a mente é a morte.
— Se fosse fraca em crer teria desistido, e não foi isso que fez. Temos de prosseguir, continuar enquanto pudermos.
— Por que? — A forma como ela o olhou trouxe a mesma sensação que Arám havia sentido ao ver o ferro avermelhado vindo em direção as costas de sua mão.
— Porque se pararmos, Orítis ,Kalíd, Teph e todos os outros não vão nos ver chegar e também pensarão que morremos.
Aquelas palavras de alguma forma surpreenderam a jovem, anuiu enquanto limpava as lagrimas com as costas da mão. A queimadura sobre a mão delicada de Miláh chamou a atenção do ancião, fazendo-o cerrar o punho para sentir o retesar da pele retorcida.
Andaram por mais milhares de passos com somente a luz da lua clareando, antes da jovem pedir um momento para descansar. O som adiante já era identificável e realmente se tratava de um cântico, profundo e entoado por muitas vozes. Vozes essas que seguiam uma única, uma que se fazia ouvir tão alto quanto a da multidão.
— Preciso de água enísh, a sede me impede de seguir em frente.
— Meu cantil estava com Fadúr, os odres eram levados com os animais e não tenho a magia de Ijáre para trazer água das profundezas. Também tenho sede Miláh, mas teremos de alcançar as vozes sem nada além do que temos agora, mesmo que seja quase nada.
Deixou a jovem, que se deixou deitar na areia com os olhos para o céu noturno, e caminhou com pés pesados até uma duna elevada que estava próxima. Durante a subida, afastou as sensações ardentes do cansaço que sentia, da agonia que a sede lhe causava e principalmente da pressa de chegar a um lugar onde a certeza de morte o deixasse em paz.
— "Só o que resta são essas vozes, e poucas são as chances delas serem sinal de nossa sobrevivência" — Ajoelhou no topo da duna, sendo levemente transpassado por finas cortinas rasas e horizontais de areia que o vento deslocava. — "Oh Maalêm, permita que sim."
Ao forçar a vista à frente, notou haver uma irregular área em circulo, formada por uma grande elevação rochosa. Os cânticos pareciam vir de dentro dela e agora a faziam reverberar. Era disposta de tal forma, que mesmo que a onda de areia tivesse lhe atingido, só alcançaria metade de sua altura.
Em seu entorno e extensão, cavidades deixavam escapar luminosidade que eram produzidas no mínimo por grandes fogueiras. De seu cume, fumaça e brasas eram expelidas de modo que o cheiro de madeira queimada começava a tomar o ambiente ao redor.
— Fogo?! — A voz de Miláh soou alarmada e ela se pôs a subir apressadamente a duna, ate que alcançou Arám, e também se ajoelhou. — O que?... Quem?
— Não sei íft, nem quem são, nem do que se trata. Mas não sobreviveremos a mais um dia sob o sol, e talvez Hadíj tenha trago nossos amados até aqui.
— Ka 'e naq — Suspirou a jovem. — Como entraremos?
Arám apontou para as cavidades iluminadas no rochedo, estava a certa altura do chão, mas sem dúvidas davam acesso ao local.
Ignorando o cansaço, a sede e o medo que sentia, o ancião buscou um caminho com olhos cerrados na extensão irregular do monte. Ao se sentir um pouco mais seguro para arriscar a vida de ambos em uma escalada, delineou a rota para Miláh.
— Não sei se consigo enísh, não sei...
— Eu também não. — O ancião a interrompeu. — Mas se vamos ter o sol nascendo sobre nossos corpos mortos nesse solo, ao menos que seja da que de tentarmos sobreviver.
As palavras não convenceram a jovem, um temor palpável surgiu de seus olhos e seu corpo tremia a ponto de trepidar sobre as pernas amolecidas.
— Não posso! — Ela recuou. — Não irei!
— Como pode desistir estando aqui?
Os joelhos dela cederam e levando as vibrantes mãos ao rosto desatou a chorar. Arám abaixou-se ao seu lado, mas dessa vez a pegou pelos ombros e fez com que seus olhos se encontrassem.
— Miláh... Se não for comigo, terá de me esperar retornar.
— Vai me deixar aqui? Enísh, por favor, pela luz de Maalêm, não me deixe aqui sozinha. — As mãos dela o agarram com uma força vinda do desespero e suas lagrimas surgiam nos olhos como água em nascentes.
— Se ficar aqui, nos dois morremos íft. Se eu for, juro que retorno... — Segurou-a pelos pulsos, libertando-se. — Ou envio Orítis para te buscar. — Se obrigou a sorrir.
A jovem deixou os braços cederem e tocarem a areia sem forças. Na face, as marcas deixadas pelo choro cintilavam à luz da lua tanto quanto os olhos.
— E se um animal me atacar? — A voz não tinha vida, nem sua dona parecia ter.
— Você sobrevive... — O ancião lhe entregou a adaga ainda embainhada. — Como tem feito até agora.
Sem dar muito tempo para que ela o prendesse ali, Arám a deixou sobre os joelhos na areia iluminada pelo luar. Se aproximou do rochedo e se pôs a escalar.
— "Hadíj me mantenha." — Tateou a parede irregular e reposicionou o pé do primeiro apoio algumas vezes antes de se impulsionar para cima.
Cada troca de mãos era um prender de respiração, cada troca de pés um uma eternidade de apreensão, cada lufada um sussurro da morte em seus ouvidos. A pedra era áspera e arestosa, possuía partes alisadas pelos vetos e algumas outras onde uma película de areia trazia a certeza da queda. Viu alguns escorpiões surgirem de fendas e em certo momento teve de esperar que uma revoada de morcegos saísse como sombras sibilantes de alguma gruta pequena no rochedo. Mas no fim, alcançou uma das cavidades.
Dentro do pequeno túnel que a abertura formava, o som dos clamores ecoava ainda mais alto e mesmo que não compreendesse exatamente o que diziam, tinha a certeza de estarem respondendo a alguém. Após alguns instantes de descanso, retornou a borda exterior da abertura e buscou Miláh no solo.
— "Louvado seja Hadíj, como foi que consegui subir até aqui?" — Esboçou um sorriso mais histérico do que satisfeito, mas ainda com satisfação, olhando para os certos sessenta passos verticais que formavam a subida do rochedo.
Miláh olhava para cima, ou pelo menos parecia, mas não conseguia vê-lo, ou não parecia conseguir. Atravessando a cavidade, se deparou com a grande área interna que de onde as luzes e as vozes vinham. Uma planície envolta por muradas de rocha, tão grande que comportaria uma toda uma aldeia, e era o que fazia. Centenas de centenas se espalhavam no solo, homens mulheres, crianças, idosos e animais se organizavam próximos a quase tantas fogueiras quanto carroças. Todos olhando para uma elevação platafórmica em uma das extremidades da planície e contornando um grande lago de cor azul esverdeada.
— "Pela luz de Maalêm, o Oasis" — Os pés de Arám começaram a se mover sozinhos. Desceu por um estreito caminho, mesmo ingrime que a parte exterior do monte. Ao chegar em uma pedra que servia de mirante, pouco mais da metade do caminho do solo, foi notado pelos que estavam no chão. Vestiam tecidos folgados e ostentavam barbas longas o cabelos volumosos, não fizeram nada além de silencio quando cruzaram olhares com o ancião. Um deles, de ombros largos e empunhando um bastão de madeira, acenou para que descesse. Inicialmente, as pernas de Arám travaram, mas não havia mais retorno e Miláh ainda esperava lá fora.
Ao chegar ao chão, cansado e sujo, recebeu uma cuia de casca com água fresca. Bebeu em goladas desesperadas enquanto ouvia-os falar entre si e com outros. mesmo quando terminou de beber, não disse nada além de seu nome. E quando lhe perguntaram de onde vinha, respondeu simplesmente: "Da areia".
Instantes depois, um ancião se aproximou e pediu para que o acompanhasse, as vozes eram tantas, a situação tão aglomerada, que mal entendia o que lhe falavam. Era como se sonhasse, como se sonhasse e estivesse embaixo d'água.
— Oh Maalêm! — Uma voz grave e retumbante ecoou fazendo-o estremecer. Vinha de um homem, sobre a plataforma na extremidade do Oasis, para onde era levado. — Mais uma vez faz com que um de seus filhos nos encontrasse, fez com que Hadíj o acompanhasse e o trouxe aqui mesmo entre a onda feroz do Har a' Lásh.
A multidão explodiu em clamores e louvores.
— Alguém que Hadíj trouxe comigo ainda esta fora do Oasis... — Arám gritou para ser ouvido, e todos ao redor se silenciaram. — Na' íft, aguarda por socorro com somente Ekím a guarda-la.
Antes que terminasse de falar, o homem sobre a plataforma fez um aceno a outro atrás de si, e um cavalo castanho e de crina longa a ponto de tocar os próprios joelhos surgiu em galope. Montado em uma cela de dobras de tecido fino estava o cavaleiro, vestindo turbante alto e túnica esvoaçante, com uma espada encurvada embainhada à cintura.
Enquanto assistia a montaria sumir para dentro do rochedo, ouviu o homem prosseguir a falar com voz trovejante.
— Eis aqui povo... — Ergueu os braços. — Expulsos de Phár como nós formos. Peregrinos das dunas como nós fomos. Devotos e provados como nós somos! — O clamor estrondoso retornou a multidão.
— "Maalêm permita que sim..." — Lagrimas começaram a vir aos olhos feridos do ancião
— Vieram buscando por algo que não sabiam se iriam encontrar, suportaram a jornada incertos do sucesso, sobreviveram a Har a' Lásh sem conhecerem o Oasis. — Havia um lamento lírico em sua voz, uma força impactante aos ouvidos e à alma. — Ergam suas marcas para mostra-lo ífts.
Quando olhou ao redor e para trás, todos, até mesmo os mais idosos erguiam as mãos cerradas, com as costas destas sendo exibidas. Todas tinham as peles retorcidas, avermelhadas e finas, todas foram queimadas.
— Nos tiraram as marcas para nos tirarem as famílias, para nos expulsarem do lugar de onde nascemos, para nos fazer esquecer quem fomos. — O homem tornou a voz firme e vibrante. — Mas essa nova marca nos fez aprender quem somos, nos fez nos fez encontrar onde pertencemos, nos fez ganharmos uma nova família.
A multidão bradava e clamava, tão alto que Arám não sabia como conseguia ouvir o homem na plataforma, mas ele era o que melhor podia ouvir. Também sem saber como, dele saíam as palavras que pareciam ser as que sempre buscou ouvir, as que quase desacreditou que ouviria.
— E nós, como povo exilado, como povo escolhido, como povo, iremos chegar até Tashir. E faremos de lá nosso casa, como o sol nos ordenou fazer, como o sol nos uniu para fazer. — O homem acenou novamente e o cavalo surgiu ao seu lado, caminhando como o dono do chão onde pisava, e com Miláh envolvida pelos braços do cavaleiro. — Creiam ífts, pois tão real quanto essa queimadura, é nossa vitória.
A multidão fez o rochedo estremecer.
— "Ka e' naq." — Arám cerrou os punhos, sentindo a pele queimada retesar e as lagrimas escorrerem em seu rosto.
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