Suas costas estavam arqueadas, as articulações flexionadas para lhe impulsionarem no momento ideal ao ataque. Cada passo era leve e preciso, esquivo de gravetos em com rumo certo para o avanço. Mesmo respirar era feito com cautela, mantendo os pulmões inflados e a expiração silenciosa. Estava pronto. Passou a língua nas presas, para senti-las úmidas e afiadas dentro da boa. posicionou as patas traseiras para o impulso e partiu.
— Álik... — A voz amolecida de Lamír era tão identificável, que era possível ver seus pesados lábios soltando pesadamente as palavras. — Ouviu o que ele disse?
— "Não, e não queria ouvir nada agora." — Lançou um olhar insatisfeito aos outros dois, e se manteve calado enquanto um cão de rua rasgava uma galinha com as presas não muito à frente.
A expressão no rosto de Lamír era de quem sabia ter incomodado e tentava se desculpar seguindo o assunto inocentemente. Seus cabelos cor de palha molhada e ondulados, desgrenhados até os ombros, amenizavam o formato circular do rosto. Mas os inchados lábios tremulando sem saber o que dizer, era o que sempre o fazia parecer ridículo.
— Você atrapalhou ele babão, estava quase conseguindo roubar aquela galinha do cão com os olhos... — Sadésh exibia seu costumeiro sorriso estreito, entre a barba curta e tão castanha quanto o cabelo baixo em sua cabeça. — Agora condenou ele a ficar com fome até achar outra galinha para ficar olhando.
— Não quis atrapalhar Álik, nem percebi que estava...
— Esquece isso, só distrai com o cão caçando, e o come lama ai só esta tentando tirar a paciência.
Sadésh inclinou o corpo esguio à frente, liberando a vista para que olhasse Álik diretamente.
— Já disse para não me chamar mais disso.
— Eu também já te disse um monte de coisas e você não parou, estamos na mesma.
Escorados em uma elevação de terra poeirenta, logo na saída da área de extração, obrigaram Lamír a balançar o pequeno papo abaixo do queixo enquanto virava a cabeça seguindo quem falava.
— Parem com isso. — A voz que vinha dos lábios pesados agora era tensa além de arrastada. — Não temos tanto tempo de intervalo assim que dê para brigar. Você ouviu o que ele disse, Álik?
— Não, não ouvi. Alguma outra historinha sobre uma garota que não parava de olhar para ele enquanto comprava milho?
Sadésh meneou a cabeça com o mesmo sorriso estreito de antes.
— Nada sobre milho, ou garotas... — Lamír gesticulou em negativo com os dedos espessos. — É sobre as tendas que Alédras viu no caminho de Emrák para cá, centenas delas.
— Um acampamento de mercadores peregrinos... — Deixou o desdém soar claro. — Muito raro mesmo. — O deboche no fim já era acompanhado da discordância enérgica de Lamír.
— Não, não. O pé de vento disse que com certeza era uma tropa.
— Acredite em mim Lam. Quando passarem do Chão das Patas e os mais apressados chegarem aqui durante a noite, gritando que trazem aqueles malditos figos secos, vai ver que são só uma caravana mercante que chega de Gorásh.
Desencostando da elevação e batendo a calça de tecido grosseiro porém tingido em azul escuro, Sadésh se pôs a frente dos outros dois.
— Só se forem os Moedas de Sangue. Por que, segundo o velho, maior que o número de homens e cavalos, só o das lanças.
Despediram da maneira vaga de sempre, concordando em encontrarem-se mais a noite para beber alguma coisa forte no Porco de Sapatos. Álik retornou a cratera escavada na borda de Hadai, onde centenas de enegrecidos e carrancudos homens retiravam carvão em pedras brutas, utilizando de picaretas, pás e pequenos carros de mão. Atravessou o grande pátio de poeira escura, lutando por espaço com as carroças e os animais que as puxavam, e por fim alcançou o empilho de andaimes feitos em tábuas.
— "E para cá voltei. Aquele maldito cão pode caçar para viver, enquanto eu tenho de me fazer uma toupeira nesse buraco dos agouros." — A face se fechava mais a cada lance que subia da escada de varas que escalava os andaimes até o enorme piso cortado onde suas ferramentas lhe esperavam.
As horas se passaram ao ruído de batidas, tilintares e trepidar de rodas. Relincho dos animais de carga, resmungos dos homens de carvão e as vezes um grito, vindo de um dos encarregados exigindo ainda mais esforço. Todos os dias eram assim. Muita poeira, muito sol e muito trabalho. Durante a labuta, o cheiro de suor e terra remexida dominava o local. Ao fim, o pó de carvão nas narinas era tanto, que mesmo quando a multidão se aglomerava para deixar a escavação, o cheiro não era capaz de se fazer notar.
Apesar de serem 27 homens trabalhando só no piso onde Álik aplicava seu esforço, evitava ter contato com qualquer um deles. Muitos não valiam a pena conhecer por só buscarem as moedas na virada da lua para sustentar suas casas, e só sabiam falar de besteiras sobre as lavadeiras que viam e sobre as apostas que ganhavam. Os de mais até falavam de outras coisas, mas insistiam em discutir sobre os problemas entre Ôsath e Aikalam e como um conflito entre estes afetaria a vida de todos. Nada disso interessava Álik.
— Basta que Ôsath decida usar os montes de moedas que aquelas caravanas de trigo devem dar, para que não sobre um exercito mercenário para os velhos do conselho dourado contratarem. — Hírir tinha dito uma vez enquanto a água que bebia escapava por entre os dentes faltosos.
— Ai esta a diferença... — Malúr sempre se empolgava quando o assunto era grandes conflitos, como se fosse uma autoridade no que isso referia. — Aikalam tem seu próprio exercito, não são tantos quanto esta achando que os mercadores reis contratariam, mas venceriam mesmo assim. Soldados lutam melhor quando lutam por suas casas, quando lutam por suas famílias e terras.
Esse dia foi o ultimo que Álik tentou manter-se perto quando começavam a conversar, nunca fazia diferença estar perto e quando raramente o perguntavam algo, debochavam de sua falta de opinião sobre o assunto.
Ao fim do árduo dia, as vestes de pano grosseiro, grudadas ao corpo pelo suor, deixavam escorrer gotas densas e escuras pelas extremidades das mangas esfarrapadas. Subiu pesadamente a leve inclinação da área de escavações e chegou ao início dos casebres que circundavam a murada de troncos da parte onde morava. Circundou a via principal para não passar em meio as barracas amontoadas que formavam o mercado na praça grande, e só parou quando dobrou a esquina que lhe colocava a vista de casa.
— "Filho de vermes" — O sangue se apressou nas veias de Álik e mesmo se impedindo de correr, foi em passadas largas na direção dos três cavalos, vestidos em bardas de tecido acolchoado e com um sol espetado por espada cozido nas quinas.
De entre duas das montarias saiu um jovem, trajando um camisão acolchoado com o mesmo sinal no centro do peito, colocava entre os dentes um pedaço de cana que cortava com uma adaga feita em ferro forjado.
— O que faltava... — Uma gota do sumo escorreu pelo queixo liso e avantajado do rapaz. — A cria encarvoada do assaltante de acampamentos.
— Pare de babar e saia da frente Theóph! — Álik passou, se desviando do outro, apesar deste tentar deixar o ombro para trombarem.
Escancarou a porta empenada do barraco de tábuas onde morava com os pais e encontrou exatamente o que esperava, o pai deitado sob um pé calçado de bota encouraçada com ferro, a mãe isolada em uma cadeira no canto do cômodo e um outro guarda revirando tudo o que colocava os olhos.
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