— Álik! — A mãe se ergueu em um impulso involuntário, o corpo franzino sob as vestes simples e sujas somava-se aos cabelos quebradiços e forçadamente arrumados, para lhe dar a feição fraca e desesperada que lhe era de costume.
— Sente ai e cale a maldita boca mulher. — O guarda que apoiava o pé nas costas do pai, apontou a ponta revestida em bronze batido do bastonete empunhado. — Estávamos esperando você rato de mina.
Do chão, o pai lhe encarava com os olhos marrons e sérios. O cabelo e barba alongados, ainda mais escuros que os olhos, impediam que o guarda sobre ele visse seu rosto claramente. Em um instante de contato visual, Álik viu seu pai apontar para a direção da mãe com um correr de olhos. Ao dar o primeiro passo em sua direção, foi atingido na parte de trás de um dos joelhos e tombou se apoiando com as mãos para se manter sobre o outro.
— Trouxe ele senhor. — Theóph passou por ele com um bastonete revestido balançando debilmente em uma das mãos. — Acho que pensou em resistir, mas desistiu quando viu o brasão.
— "Um dia ainda te enfio esse brasão garganta a baixo, desgraçado". — Sentiu o sangue quente escorrer entorno do joelho, as lagrimas queimarem seus olhos quando retidas e a respiração pesar com o peito preenchido de fúria.
O guarda que vasculhava o local, jogando cadeiras velhas e cestos artesanais para o lado que a mão fosse, se aproximou de Álik. Quanto mais próximo, mais sua barba cheia e fedendo a saliva crescia na vista, mais o som metálico de suas botas reforçadas de placas férreas era alto e mais distante os olhos negros e a face largamente ossuda ficava.
— Sabe quem eu sou? Sabe?! — Os perdigotos escapavam de seus lábios em tanta velocidade e com tanta frequência, que deixava a dúvida se fazia isso por querer. — Responda, maldito!
— É Fárik.
O impacto do golpe com as costas da mão, vestida em luva de couro e adornada com placas de bronze batido, fez Álik ir ao chão rápida e pesadamente.
— É Farík... senhor. — O homem corrigiu e fez o bronze das luvas cintilar no feixe alaranjado de luz solar que vinha de uma grata no teto, quando a moveu em gesto explicativo.
A visão estava turva e por pouco o abafar que tinha nos ouvidos não o impediu de entender o que Farík dissera.
— Senhor... — Esforçou-se para voltar para cima do joelho bom. — É Farík, senhor.
— E não se esqueça disso, é bom que não se esqueça.
— "Não, não vou esquecer. Tenha certeza disso." — Enquanto os sentidos retornavam lentamente, o gosto de sangue lhe veio a boca.
Farík pegou uma das cadeiras que havia jogado ao chão durante sua busca, sentou-se desleixadamente e se inclinou na direção de Álik.
— Tenho ouvido sobre os conluios e cochichos que estão acontecendo naquela maldita mina, não pense que não. Também sei que de alguma forma você tem sido os sussurro do verme que chama de pai entre os cavadores de carvão...
Os olhares de Álik e seu pai se encontraram novamente e somente com o silencio fúnebre que o instante exalava, percebeu que a mãe dava leves soluços de um choro contido.
— Ainda não posso provar... — Farík prosseguiu com voz esbravejante. — E só por isso os dois não estão acorrentados em uma gaiola das profundezas do paredão. Apesar de ser um homem duro, sou justo, e mesmo sabendo que tramam aumentar o bando de ladrões que participam, para assaltar os acampamentos mercantes, aguardo uma prova para deixar que apodreçam pendurados lá.
— Vocês tem sorte, malditos. Se fosse eu, já seriam cadáveres alimentando os vermes. — O guarda fez o pé subir e descer em um pisão com o calcanhar nas costas do pai.
— Vêem? Randhis faria com vocês o que todos me aconselham, mas como disse: Sou duro, mas sou justo.
— "Justo?" — O pensamento fez as lagrimas retornarem aos olhos de Álik — "Passei o dia abrindo a boca só para engolir a maldita água quente e não morrer de sede, tirando o maldito carvão do chão para que gente como você mande os criados fazerem assados nas desgraças de suas casas. Isso para agora vir aqui e fazer tudo isso procurando as malditas armas?!"
Farík se levantou fez um sinal para que Randhis saísse de cima do pai de Álik, e se dirigiu a porta.
— Não pense que desisti de encontra-las Orâm, nem que me enganou escondendo elas da minha vista. Tenho mais paciência do que você tem forças, mais dia, menos dia, te coloco em uma das gaiolas. Você e esse rato que cria.
Antes de sair, Théoph disparou uma espessa e viscosa quantidade de muco contra Álik, trazido do fundo de sua garganta. Atingindo-o no pescoço.
Quando os sons de cascos se distanciaram, Orâm já estava de pé rearranjando as coisas no cômodo e a mãe tentando o ajudar a levantar.
— Não! — A voz trovejou em meio as lagrimas que choviam. — Não...
— Álik, por favor, sua perna. — A mãe usou um pedaço de tecido que rasgou da manga das vestes para limpar o catarro que escorria pelo ombro.
— Esquece minha perna! — Se afastou em uma tentativa de erguer-se, mas terminou em uma queda sentado.
— Deixe ele Nãmisa — O pai se sentou na mesma cadeira que Farík havia usado. Álik socou o chão feito de tábuas paralelas e envelhecidas.
— Isso. Deixe! — Socou novamente e dessa vez fendeu a madeira. — Outra vez eu levo as punições que te enviam, tudo por causa dessas malditas armas que você usa para quem não merece e esconde de quem merece. Um dia eles vão achar elas, e nesse dia...
— Morrerão todos eles. — Orâm interrompeu, surpreendendo o filho. — Nesse dia, deixamos tudo para trás e buscamos o lugar que fará tudo isso ter valido a pena.
— Não venha falar desse maldito oásis, por que tudo o que fez até agora só nos trouxe para essa fossa.
— Álik... — Nãmisa arquejou em um suspiro lamurioso.
— Os cânticos estão sendo ouvidos nas dunas Álik, e em breve vamos nos juntar a ele.
— Vocês se juntarão. E se depender do quanto fazem as coisas darem certo, se juntarão aos ossos que continuam presos nas gaiolas.
Obrigou-se a levantar e saiu porta afora, mancando, sujo, chorando e ferido.
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