Nas ruas de terra batida que seguiam até uma das pequenas praças dos poços, Álik arrastava a perna ferida enquanto carregava olhares curiosos das pessoas pelas quais passava. O sangue descia quente pela panturrilha e fazia grudenta a sola do pé.
Evitou vias com rumo direto as grandes praças, justamente para que fossem poucas as pessoas com que cruzasse caminhos, mas mesmo as ruas menores possuíam transitantes. Aqueles que iam em direção as tabernas, as casas de prazer, a praça da fonte ou a todas elas de uma forma ou de outra.
— "Se tivessem tido metade do meu dia, não estariam rindo..." — Rosnou em pensamento quando um grupo de jovens passou em sussurros maliciosos e risadas contidamente debochantes. — "Afoguem na maldita cerveja, engasguem com a comida, ou qualquer outra coisa. Só morram."
A ferida aberta na parte de trás do joelho latejava quando chegou a viela que brotava espremida entre dois casarões construídos em madeira e pedra, seguiu por ela até que o número de casebres e barracos foram ficando tão escassos que a distância entre eles formavam pequenos e escuros bosques. Com a noite instaurada no céu, os cantos dos pássaros foram substituídos pelos guinchos de morcegos e o chilrear de grilos. Parou alguns instantes para tentar amenizar a dor, mantendo a perna esticadamente relaxada enquanto sentava em uma pedra a beira do caminho.
— "Faltava isso mesmo, um machucado na perna para deixar a merda do trabalho mais difícil. Maldito Théoph." — Ergueu-se novamente, mas com ainda mais dificuldades para caminhar.
Quando finalmente chegou até a cabana que repousava a beira de um pequeno declive rochoso, deixou-se cair nos degraus de madeira envelhecida que levavam até a porta. Instantes depois, um ranger sutil e agudo o fez perceber que havia sido atendido.
— Álik? — A voz de Lamír estava tremula como a mão que segurava o suporte da vela. — Já estava para sair e encontrar vocês, mas o velho demorou a dormir e...
A luz se extinguiu quando vela e suporte foram ao chão, sumindo juntamente com a voz do garoto a porta.
— Isso, na sua mão... é sangue? — Se aproximou alarmado com a voz feita em gritos, mesmo que saísse em murmúrios. — O que você fez?
— Eu não fiz nada Lam, mas devia ter feito. — Ajeitou o corpo como se apresentasse a ferida ao outro.
Lamír ajoelhou-se ao lado do amigo e só então pareceu ver de verdade o corte.
— Uma picareta?
— Não... — Álik segurou um urro de dor quando o amigo lhe tocou a perna. — Um bastonete.
— Ah merda... Théoph? — Lamír franziu o cenho flácido ao pôr os olhos na pele solta e carne aberta que formavam o ferimento.
— Aquele desgraçado. — A resposta veio em meio a um grunhido, preso entre dentes cerrados.
Com bastante esforço e ainda mais dor, Lamír o ajudou a levantar, após buscar uma faixa de tecido grosseiro para prender a passagem de sangue, logo acima do ferimento. Foi levado pela cabana escura e com o odor de mofo tão presente quanto o da madeira queimada na simplória lareira. Na humilde sala de entrada, passaram por pilhas de encadernados em peles, com tantas folhas dentro que eram espessos como um bloco de pedra. As estantes improvisadas com tábuas que se ladeavam nas paredes, claramente seguravam mais potes do que suportavam e os odres que se espalhavam pelo chão eram selados com caixas cheias de pergaminhos além das próprias tampas.
— Cuidado aqui... — Lamír ajudou o quase carregado amigo a se esquivar de um amontoado de panos úmidos que estavam no chão, exalando um cheiro azedo e forte.
Adentraram em um outro cômodo, onde somente uma mesa estreita e de madeira fina estava, acompanhada de duas cadeiras. Com ajuda do amigo, Álik deitou-se na tábua da titubeante mesa e ficou ali enquanto Lamír ia e voltava apressado trazendo variados objetos.
— Pegue uma das bebidas do velho... — O ferido questionou ajeitando-se em resmungos. — Vai pelo menos tirar a dor.
Lamír meneou com um meio sorriso.
— Do material e dos emplastros ele não vai sentir falta nenhuma, mas se eu tirar uma das malditas garrafas do lugar...
Entregou um pano enrolado nas mãos de Álik, indicando que o colocasse entre os dentes, enquanto acendia novamente a vela e passava a curta lâmina que pegou entre os materiais buscados em uma pedra de amolar.
— Vou cortar a pele rasgada para limpar... — Lamír fazia a lâmina trepidar enquanto a raspava. — Já vi o velho fazer isso varias vezes, acho que consigo.
— Pode me explicar o que fez depois de fazer?
— Não estou te explicando. — Com o gume da lâmina reluzindo seu fio contra a vela, se aproximou, sentando-se pesadamente em uma das cadeiras. — Estou me convencendo.
Álik travou os dentes contra o pano e apertou os dedos nas bordas da mesa, esperou por alguns segundos pela dor fria que tinha certeza que viria. Mas quando sentiu o primeiro toque contra a ferida, desmaiou.
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