Uma sensação refrescante corria pela sua pele, leve e rastejante, como um fino lençol que passava pelo corpo. Os dedos se moveram antes que as pálpebras e mesmo quando estas tentaram se mover, estavam pesadas sobre os olhos. Viu uma mulher caminhando rumo a lua, que flutuava sobre uma longínqua duna de areia. Correu em sua direção, mesmo que internamente desejasse que ela partisse. O frescor lhe atravessou novamente. Enquanto subia a imensa, escura e esvoaçante duna, viu um brilho luminoso saltar a areia, oscilante. Ao finalmente chegar ao topo, os pés manchavam o solo arenoso com sangue que saia dos cortes que os fragmentos de vidro lhe fizeram na subida. A mulher estava ao seu lado, com as vestes longas e tremulantes como se ela própria fosse uma bandeira. Não tinha rosto, pelo menos não um que Álik reconhecesse, e em seus olhos castanho-esverdeados, a luz se tornara ainda mais intensa. Ao olhar a frente, o enorme acampamento estava em chamas. O frio lhe acordou.
— Fuja... — As palavras saíram em um murmúrio crescente.
— Deveríamos mesmo. Deixar você aqui e ir beber, como foi combinado.
Com os olhos entreabertos, conseguiu identificar Lamír se aproximando, ouviu um crepitar de madeira no fogo e percebeu alguém ao lado das chamas.
— Não tente levantar sozinho Álik... — Os dedos redondos do garoto lhe ajudaram a sentar, no que identificou ser uma carroça. — Sadésh, não vai ajudar?
— Outra vez? — Deixou a companhia da pequena fogueira e os alcançou.
Com o auxilio dos dois amigos, ergueu-se e mancou até próximo ao fogo. A brisa gélida da noite limpa o acariciou novamente. Sentado, teve a atenção tomada pelo odor de carne e cebolas quando assados, ao seu lado, um cantil exalava uvas fortes.
— Quanto tempo? — Álik pôs em mãos o odre e em seguida deu goles fartos.
— Um ou dois dedos de subida da lua. — Lamír esforçou-se para sentar no chão, já que as pernas espessas lhe atrapalhavam a abaixar.
— Não encontrei vocês na taberna... — Virando um espeto de madeira cortada, Sadésh observava um grande frango dourar a pele no lado virado ao fogo. — Fui até a cabana, ver se ainda tinha muito vômito do Uráj faltando para limparem. Mas quando cheguei lá, o babão tremia feito uma folha no vento, e você deitado com um pano entre os dentes como se fosse um leitão no banquete. Sorte suas que eu tive preguiça de ir andando e peguei a carroça do pé de vento.
Álik colocou o cantil de lado, sentindo o vinho lhe aquecer o estomago e acorda-lo de certa forma. Os braços ainda estavam pesados e os dedos rígidos nas mãos, uma das pernas amolecidas de cansaço e a outra dormente, com uma faixa passada na altura do joelho.
— "Sorte mesmo, mas se eu te agradecer você não vai me deixar esquecer isso." — Manuseou a perna para tentar ver melhor onde estava a ferida, fingindo ignorar Sadésh. — Como ficou Lam?
— Bem... Cobri com unguentos tão bons quanto os feitos pelo próprio Úraj, mas a magia que ele usa para acelerar a recuperação eu ainda tenho que melhorar.
Sadésh sentou-se ao lado de Álik, deixou ao lado a faca que cortava cebolas e pegou o cantil.
— Os unguentos foram feitos pelo próprio Úraj, por isso são tão bons quanto os dele. E a magia, basta beber o resto desse vinho que fará ainda melhor talvez.
— Sabe que sou fraco para bebida forte, vômito mais que o velho. E tenho feito minhas próprias misturas, acredite ou não.
Álik ignorou o debate dos dois, deixou-se distrair pelo estalar da madeira no fogo, pelo cheiro ainda mais forte do assado e pela brisa que lhes atingiu. Quando a lua suspensa frente ao pequeno desfiladeiro, lhe fez lembrar do sonho.
— "Quem era aquela mulher? E aquele acampamento? Por que a mandei fugir? De quem a mandei fugir? Por que sinto que era de mim?"
Enquanto pensamentos traziam imagens a sua mente e o ruido da fogueira era tão intenso quanto o cheiro da carne aquecida, Álik refreava-se em permitir que os sentimentos que tinha quando saiu de casa o alcançassem ali, que o retomassem agora. A ferida começou a latejar suavemente, acompanhando seu batimento cardíaco e ambos começaram a acelerar. O impacto do bastonete na carne, o sorriso de Fárik e o pai ajeitando as cadeiras. As lagrimas da mãe, a grande duna, o acampamento em chamas, a brisa refrescante e o cheiro do assado. Tudo isso foi interrompido pelo silêncio que Lamír e Sadésh subitamente fizeram.
— Aqui temos um banquete! — A voz sussurrante e enrouquecida veio das sombras dos arbustos que escalavam o pequeno declínio, e antes da silhueta se revelar mais do que um vulto irregular, a opaca luminosidade na ponta da flecha fez Álik se erguer sem que lembrasse que um dia sequer tivera a perna ferida.
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