― Aí tá você! ―, disse uma voz que Darl já havia ouvido tantas vezes que não precisava esforçar-se para identificar a dona.
Ele se virou em sua direção e viu Eirkia se aproximar.
O garoto estava de volta ao jardim. Havia retornado ao, após o fim da execução, ver a multidão dispersar-se e Hallerik subir as escadas de volta ao castelo.
A princesa vinha do portão, o que indicava que estivera na praça e também assistira ao fim do rei de Alkerfell. Na ocasião, Hallerik fizera um considerável discurso que parecera instigar emoções mais intensas na multidão.
Semelhante foi o velório de seu pai e própria coroação. Houvera apenas uma pequena seleção de pessoas no local, mas longas palavras também foram ditas. Era como se momentos importantes também necessitassem de narrativas igualmente extensas, ou, de outra forma, para sempre perderiam-se na memória.
― EEEI! ―, gritou Eirkia a uma distância mais apropriada a sussurros. ― Tira essa cabeça das nuvens!
― Hã? Ah! Desculpa...
Ela devia ter deixado o castelo enquanto Darl tivera seu humilhante duelo com o general, e já parecia haver se recuperado completamente, mesmo naquele curto período.
― Imagino que não viu o rato do Skeivarr, né?
― Não...
― Deve ter voltado pra casa com a família. ―, subitamente, a princesa agarrou a mão de Darl e puxou-lhe escada abaixo. ― Vamos atrás dele.
― M-Mas o que...?
― A gente ia na casa dele hoje, lembra?
― Ah, sim! Sim... Eu lembro.
Na verdade, havia-se esquecido completamente, mas isso pouco importava. Não necessariamente queria visitar a casa do jovem soldado, mas também tinha curiosidade sobre como ela era. Seria semelhante à de Gundar, talvez?
O homem também era um soldado, mas toda sua família havia falecido na época da Praga, o que lhe deixara só. Já Skeivarr, por sua vez, ainda tinha uma mãe e irmão mais novo, e um pai apenas recentemente morto em guerra.
Pela mão, Darl foi guiado ao longo das desconhecidas ruas da cidade. Cruzavam várias pessoas no caminho de rostos e roupas diferentes, além de guardas. Uma coisa em comum em todas era como sua atenção rapidamente se direcionava à dupla, e alguns até mesmo curvavam a cabeça. Não era surpresa; afinal, aqueles dois Hraekhan ― a princesa e o recém-acolhido pela Família ― definitivamente se destacavam por seu cabelo de cor única.
O garoto já estava habituado a receber olhares negativos, mas notava o padrão oposto naquelas pessoas. Elas eram, afinal, súditos de Eirkia e, de certa forma, seus também. Além disso, se as notícias da última batalha já circulavam, também deviam ver Darl como alguma forma de herói.
E esse herói marchava pelas ruas de mãos dadas com a princesa do reino e sua futura esposa. Talvez ele pudesse acostumar-se a isso.
― Bom dia, princesa Eirkia. Darldollum. ―, um homem de características armadura e lança chegou a lhes saudar.
― Bom dia, guarda. ―, a princesa brevemente respondeu e retomou sua caminhada.
Darl pensou que talvez devesse responder ao cumprimento ao menos com um assentir da cabeça, mas logo foi puxado e pouco tempo recebeu para tanto. Talvez Eirkia tivesse pressa, ou não se sentisse confortável na presença dos homens em patrulha.
Eles já haviam dobrado tantas esquinas que o garoto guiado por ela já não tinha mais ideia de onde estavam em relação ao castelo que haviam deixado instantes atrás. Há algum tempo, a vizinhança de casas bem ornamentadas e largos jardins havia sido trocada, após a transição de um muro com portão sempre aberto, por residências mais amontoadas e cinzentas. As próprias ruas também pareciam tornar-se mais estreitas a cada esquina
― Você nunca andou pela cidade ―, virou-se para o companheiro a princesa e observou. ―, não é, Dal?
― Hm? Ah... Realmente. Acho que tô um pouco perdido.
― Você se acostuma. ―, ela riu. ― Sabe, dividem a cidade em distritos. Sabe o que é isso?
― Não mesmo. ―, ergueu uma sobrancelha.
― São... divisões. Como uma torta. Cada fatia da cidade é um distrito. No mapa a cidade parece até uma torta mesmo.
― E alguém come a cidade? ―, o garoto estava tentando entrar no mundo do sarcasmo e já se orgulhava das frases que podia soltar.
― Idiota! ―, Eirkia mesclou um suspiro com uma gargalhada. ― Então, a gente tem o distrito residencial, comercial, dos artesãos, os quarteis e o Gueto. Isso na terceira camada, pelo menos. Na verdade, ela é a única com vários distritos.
― Camada?
― A camada mais interna é onde fica o castelo, colado às Weidmaren, as montanhas. A segunda é o bairro dos nobres, em volta do castelo. A terceira é onde estamos agora, e a quarta é onde ficam as fazendas. Cada uma é dividida por muros bem altos. E tudo isso é cercado pelas Weidmaren. Igual uma cebola!
― Igual um ogro? ―, questionou uma terceira voz atrás da dupla.
― Uwa!
Eirkia e Darl separaram-se com um salto. Ao se virar, o garoto notou ali estar Skeivarr, o jovem ex-soldado cuja casa estavam a caminho para visitar.
― De onde você veio, seu rato? ―, perguntou a princesa indignada.
― Tavam demorando tanto pra aparecer que decidi ir atrás de vocês. ―, deu de ombros.
― E se a gente acabasse se desencontrando?
― Você sempre pegou esse mesmo caminho, então achei que ia te encontrar se seguisse ele. Então, sobre o que a princesa e o menino dragão tavam conversando?
Skeivarr pôs-se entre os dois e, com seu braço que restava, puxou Eirkia para perto pelo ombro, o qual não soltou mesmo ao começar a andar. Darl, ao ver que seria deixado para trás, também se pôs a andar e alcançar a dupla que caminhava tão intimamente.
― Eu estava explicando a Dal como a capital é subdividida. ―, respondeu Eirkia com um pouco do que poderia ser descrito como escárnio em seu tom.
― Ah, é fácil. Tem a parte dos que comem, dos que trabalham, e dos que plantam a comida mas passam fome.
― Os únicos que não "trabalham" propriamente são os que moram no Gueto, devo corrigir.
― Sim, sim.
Um nome familiar havia sido mencionado, o que reviveu uma antiga dúvida na mente de Darl.
― O que é esse "Gueto"? ―, questionou.
― É a parte mais antiga da cidade. ―, respondeu Eirkia, esticando o pescoço para ver o novo Hraekhan melhor além da muralha chamada Skeivarr. ― Hoje em dia é só um monte de ruínas, mas é o único lugar ainda com casas feitas de pedra. É onde ficam as ruínas do castelo antigo.
― Também é onde moram os miseráveis e se escondem os criminosos. ―, intrometeu-se o rato.
― O castelo antigo? ―, Darl ignorou seu comentário. ― Aquele que Hraeko... Aquele que o dragão derrubou?
― Esse mesmo. ―, a princesa assentiu. ― Normalmente, castelos de madeira são provisórios ou feitos por nobres mais pobres, mas o que a gente mora foi construído com a madeira que Hraethor trouxe e nem mesmo Hraekovir conseguiu deixar um arranhão nele.
Pelo que podia lembrar, as fortificações de Nouwer, o pequeno reino onde vivera com Gundar por poucas luas, eram feitas de madeira. Alkerfell, capital do recém-derrotado reino de Alken, por sua vez, tinha fortificações em rocha, dignas do maior rival de Hraelund por gerações.
― Dizem que foram os duendes que deram a madeira pro rei. ―, comentou Skeivarr.
― Duendes são nada! ―, exclamou Eirkia. ― Eu diria elfos ou fadas.
― Mas esses dois não são a mesma coisa?
― Tanto faz. Mas eles conhecem magias que ninguém mais conhece.
― De onde tirou isso? De algum velho mago?
― Isso mesmo! E ele me disse também que duendes não existem.
― Não que eu ou qualquer um já tenha visto um elfo.
― Claro que não! Eles vivem muito longe daqui.
― O que são eles? ―, intrometeu-se e questionou Darl, perdido. ― Alguma coisa como goblins?
― Não muito. ―, respondeu Eirkia. ― Goblins, orks... Eles são como qualquer animal selvagem. Só que andam em duas pernas igual pessoas.
De repente, os dois que conheciam o caminho pararam diante de uma casa, e o que lhes seguia também fez o mesmo. Talvez houvessem chegado, pensou, mas ninguém parecia que ia tomar a iniciativa de abrir a porta.
― Se duendes não existem ―, replicou Skeivarr. ―, goblins também não. Eles são quase iguais.
― Mas a gente foi atacado por eles, eu e Gundar, quando viemos pra cá. ―, o menino dragão reclamou sua superioridade de conhecimento. ― Foi nas florestas em volta de Alkerfell, eu acho.
― Você viu um goblin?! ―, Eirkia estava surpresa, naturalmente. ― Como ele era?
― Bem... Andavam igual pessoas, mas eram bem feios. Foram vários pequenos e um grandão.
― Então também tinha um hobgoblin? ―, perguntou o ex-soldado.
― Mas o grandão não é o ork? ―, indagou a princesa.
― Orks com certeza não existem. Seria como dizer que existe um tipo de cachorro sabe falar e vive em cidades de cachorros.
― Não sei se ele falava ―, adicionou Darl, que pouco via coerência naquela lógica. ―, mas ele vestia uma armadura e tinha uma espada.
― Certeza que não era um elfo? ―, perguntou Eirkia, interessada.
― Mas os elfos não são pequenos? ―, continuou a retrucar Skeivarr. ― Menores que goblins?
― Esses não seriam os duendes? Se ele usava armadura, devia ser um elfo.
― Gundar disse que era um hobgoblin. ―, explicou Darl. ― Os elfos não parecem com pessoas? O hobgoblin era bem feio.
― Talvez um ogro! ―, exclamou Skeivarr.
― Cala a boca! ―, comandou ainda mais alto Eirkia. ―, Ele já disse que era um hobgoblin.
― Mas quem é esse Gundar, afinal? O que ele sabe.
― Mais que você, aposto, que acredita em duendes!
― Ei! Você não pode me insultar na minha própria casa!
― Ainda estamos no lado de fora. As ruas são propriedade do rei, e eu sou irmã dele. Então, eu posso sim.
― Droga! Faz sentido.
Ambos gargalharam. Apenas então Skeivarr recolheu o braço que descansava sobre os ombros de Eirkia, puxou uma chave do bolso, destrancou a porta diante de si e, por fim, abriu-a.
Aparentemente, aquela pequena casa de paredes com emplastro escurecido e desgastado espremida por outras duas nas laterais pertencia ao jovem.
― Vem, entrem! ―, ele gesticulou.
Darl mesmo havia passado a maior parte de sua vida em uma cabana ainda menor nos bosques. Contudo, após se acostumar com a vida no castelo, o contraste que aquela residência modesta causava tornava-se um incômodo considerável.
Uma questão que se fazia destacar em sua mente era sobre como alguém tão íntimo da princesa podia morar em um local daquele.
Quando se deu conta, tanto Skeivarr quanto Eirkia já haviam entrado na casa. Ao notar que mais uma vez havia ficado para trás, Darl também cruzou a porta ao mal iluminado interior.
Logo se revelou uma mulher adulta em um vestido simples e um avental. O palpite mais natural seria acreditar ser a mãe do jovem soldado.
― É uma honra ―, ela se curvou o disse. ― recebê-los aqui, princesa...
― Corta essa tia. ―, interrompeu Eirkia. ― A senhora sabe que respeito pra mim não é puxar o saco! Até parece que não me vê há anos.
A mulher pareceu assustada por um instante, mas sua expressão relaxou-se em seguida e se permitiu um riso.
― Nesse caso, sintam-se em casa, Eirkia e Darl... dollum. Skeivarr disse que viriam.
Ver uma estranha pronunciar seu nome corretamente na primeira tentativa era, de certa forma, emocionante. O sorriso materno que tinha no rosto, mais ainda, trazia um novo tipo de ansiedade ao peito do garoto.
― O almoço está quase pronto. Esperem só um pouco, por favor.
Então, a mãe do jovem soldado partiu, deixando os visitantes à companhia do filho.
Até que, repentinamente, correu até o trio uma criatura baixa de cabelos escuros que talvez pudesse ser descrita como uma miniatura de Skeivarr, se não pelo fato de ainda possuir ambos os braços.
― Parados aí, invasores! ―, apontou uma espada de madeira para Eirkia e Darl. Faltava vários dentes na frente de sua boca. ― Rendam-se!
― Renda-se você, baixinho! ―, retrucou Eirkia, com as mãos na cintura. ― Você tá armado mas somos três contra um!
― Três? ―, ele parou e contou nos dedos. ― Ah, não! Fui traído pelo meu irmão!
― Isso mesmo! ―, entrou Skeivarr na brincadeira. ― Eles tinham uma coisa que ninguém mais poderia me dar. Agora larga sua arma e enfrente o fim!
― NÃÃÃO! ―, ele gritou enquanto desabava de joelhos.
O trio, em seguida, gargalhou alto. Darl, por sua vez, só podia permanecer atônito diante da troca.
Nem mesmo parecia que aquela mesma família havia acabado de perder um integrante na guerra, enquanto outro tivera um membro amputado. Era assim comum naquela cidade pessoas lidarem tão bem com a tragédia?
E a própria Eirkia, que não devia haver pisado naquela casa há mais de um ano estava tão confortável. Era quase como se aquela fosse, mais do que a corte com a qual vivia todos os dias, incluindo o próprio Hallerik, sua família.
Por mais que houvesse tentado com todas as suas forças, momentos atrás, tomar a dianteira e não deixar que a proximidade de Skeivarr com a princesa tomasse seu lugar, Darl já não encontrava mais forças para tentar falar. Ele seria um mero intruso se desse um passo para fazer parte daquele grupo tão caloroso.
Seu canto frio era o único ao qual ele pertencia.
Como nada em particular requeria sua atenção, o garoto se pôs a analisar com mais cuidado o interior da casa. A sala devia ser tão grande quanto a de Gundar, com uma lareira, uma mesa cercada por cadeiras no centro e outros móveis dispostos às paredes. Ainda assim, a quantidade de vida nela parecia tornar o local ainda menor.
Nesse ponto, ela era definitivamente diferente daquela onde vivera soldado, tão vazia que parecia enlutar a família que lá um dia vivera antes de ser separada pela Praga.
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