― O almoço está pronto! ―, ecoou uma voz de outro cômodo, provavelmente da mãe de Skeivarr na cozinha. ― Podem esperar na mesa!
Logo o trio que brincava próximo à lareira partiu em direção à mesa, onde tomaram seus lugares. Darl, que via pouca razão para permanecer de pé onde estava, fez o mesmo. Pouco depois, veio a mãe de Skeivarr, que aos poucos trouxe panelas, uma garrafa, pratos, copos e talheres e, por fim, sentou-se também.
Considerada a dieta que tinha na época que morava com Gundar, o garoto esperou ver algo como um ensopado de batatas e outros vegetais. O conteúdo da refeição, contudo, superou suas expectativas.
― Uau! Peixe! ―, exclamou o irmão de Skeivarr.
Darl estava a ponto de concluir que a dieta em Nouwer e Weidmar apenas era diferente, mas o comentário da criança mostrou que realmente estavam diante de algo extraordinário. Afinal, aqueles eram ingredientes que jamais vira em qualquer mesa além daquela do castelo.
Não só peixe, mas havia legumes de ótima aparência, e Darl também suspeitava que o líquido com o qual a dona da casa preenchia o copo do filho caçula era iogurte. Mais de uma vez ouvira como a guerra dificultava até mesmo a aquisição de alimentos. Aquilo certamente não era natural para uma família humilde que sofria com as tragédias do mundo.
Quando buscou pistas nos olhos dos outros ao redor da mesa, viu que Skeivarr fitava sua mãe severamente em silêncio. Eirkia, por sua vez, apenas indiscretamente enchia seu prato. Logo também fez Skeivarr, com um pouco de dificuldade por ter apenas uma mão para usar.
― Por favor, sirva-se, Darldollum. ―, incitou a mãe de Skeivarr.
― A-Ah... Sim...
Na verdade, Darl esperava ser o último a pegar sua porção, mas parecia ser alguma forma de cortesia a dona da casa, que havia preenchido o prato do caçula apenas, deixar que os convidados se servissem antes dela.
Então, ele fez como instruído, usando as porções dos demais como referência para si, e com cuidado especial com o quanto da posta do peixe retirava.
Todos comeram em silêncio por um tempo, até ele ser quebrado por um comentário da mãe de Skeivarr.
― Ouvi que devemos o fim da guerra a você, Darldollum. Que trouxe o muro de Alkerfell ao chão com chamas.
― O pessoal no exército conhece ele como "menino dragão" agora. ―, acrescentou o filho mais velho. Ele segurava o garfo com dificuldade, como o esquerdo claramente não era seu braço dominante.
― É verdade que você vira um dragão?! ―, entusiasmou-se o caçula.
O garoto não esperava tornar-se o tópico da conversa. Especialmente o primeiro após o longo e desconfortável silêncio.
Era justamente para evitar situações desconfortáveis que, no castelo, ele sempre ia à mesa comer depois que todos os demais já haviam tido sua refeição, afinal.
― Erm... Bem, não exatamente... ―, tentou encontrar uma forma de dar uma resposta satisfatória à pergunta, mas era verdadeiramente difícil. Ele não podia simplesmente falar sobre o deus, afinal.
― Ora, ora! ―, exclamou Eirkia, com a expressão no rosto de quem estava para dizer algo questionável. ― Talvez ele seja, e só não saiba ainda!
― Verdade! ―, empolgou-se ainda mais o garotinho. ― Dragões podem virar gente, né?
― Com certeza. ―, respondeu seu irmão mais velho. ― É assim que fazem filhos.
― Como assim?
― Skeivarr, por favor, não. ―, suplicou a princesa com uma risada abafada.
― Sabe o primeiro Hraekhan? Ele era filho de um dragão com uma humana, mas ele nasceu humano! É porque o pai dele tinha se transformado em humano quando...
― Cala a boca, seu rato malicioso! ―, Eirkia não controlava mais seus risos.
― Mas eu quero saber! ―, queixou-se o caçula.
― Todos pensavam que os Hraekhan estavam condenados. ―, comentou a mãe, que ignorava suas bochechas infladas de frustração. ― Foi uma surpresa saber que o encontraram, Darldollum, de um ramo distante da Família, e o trouxeram para a segurança da cidade. Agora a princesa tem com quem se casar.
Um repentino baque foi ouvido, e todos se viraram para sua direção. Aparentemente, Skeivarr havia deixado seu garfo cair, espalhando parte de sua comida pela mesa, suas roupas e sobre o chão.
Todos permaneceram imóveis e em silêncio por algum tempo, até a senhora tentar dizer algo.
― Deixe que eu...
― Eu limpo. ―, cortou-lhe o filho.
― Não precisa, eu... ―, ela se levantou da cadeira e andou até Skeivarr.
― Eu limpo! ―, insistiu o jovem soldado com a voz talvez um pouco alta demais.
Sua mãe lentamente retornou ao seu lugar na mesa enquanto ele, por sua vez, levantou-se e partiu para a cozinha, de onde trouxe um pano umedecido, o qual usou para, apesar das dificuldades que seu estado trazia, limpar a sujeira que havia feito.
A expressão severa em seu rosto parecia refletir-se nos demais ali presentes, que permaneceram calados por um período desconfortavelmente longo, até o jovem finalizar a limpeza e retomar a refeição em conjunto.
― Então, Skeivarr, tia... ―, Eirkia começou a falar, uma pesada cautela em seu tom. ― Se não for uma intromissão muito grande minha, o que vão fazer agora? Ah, e meus pêsames.
― Muito obrigada pela consideração, Eirkia. ―, respondeu a dona da casa, com um profundo curvar da cabeça que parecia pouco combinar com uma mesa de jantar. ― Ainda não sabemos. Não existem muitos trabalhos para mulheres por aqui, mas eu não sou a única viúva nessa guerra. E eu também posso... me casar outra vez.
― Não precisa disso tudo. Quem sabe eu viro ajudante de padeiro. ―, comentou Skeivarr enquanto erguia seu braço. ― Dá pra rolar massa com uma mão só.
― Eu posso tentar falar com Aston. ―, sugeriu a princesa. ― Skeivarr pode não ter terminado o treinamento, mas se feriu na guerra. Seria justo poder se aposentar, ou pelo menos receber um auxílio a mais.
― Não precisa. ―, retrucou outra vez o jovem em questão. ― Eu não sou o único na carroça. Muita gente teve que se retirar sem terminar o treinamento. Sem direito a nada.
― Qualquer ajuda seria muito bem-vinda, princesa. ―, insistiu a mãe.
― Eu disse que não precisa...
― Skeivarr, por favor.
― ... Tá...
A tensão só parecia aumentar naquela conversa, mesmo quando todos se calaram novamente. A família brincalhona e despreocupada de momentos atrás parecia haver dado lugar a outra completamente diferente.
Darl não entendia como funcionava a vida na cidade, mas estava claro que seria difícil manter aquela família dali em diante. Havia apenas uma viúva, um jovem que dificilmente poderia encontrar outro trabalho, e uma criança que talvez fosse nova demais para trabalhar.
Ainda assim, eles eram amigos da princesa, uma das pessoas mais importantes na cidade. Talvez não fosse pedir demais contar com a ajuda da realeza.
Em um momento, todos pareciam haver acabado de comer. Foi quando Eirkia ergueu a voz outra vez e, dessa vez, sorriu.
― Muito obrigada pelo almoço, tia.
― Oh, não há de quê. Todos são bem-vindos aqui a qualquer momento.
A dona da casa prosseguiu para recolher a mesa, enquanto o filho mais velho, em silêncio, ajudava-lhe, mesmo que não pudesse carregar muitos objetos por vez e nem com muita destreza.
Era um pouco aliviador poder, finalmente, levantar-se daquele tenso ambiente.
― A mãe do Skeivarr é bem legal, não acha? ―, Eirkia perguntou, e Darl demorou para notar que a pergunta era dirigida a ele.
― ... Ah, bem... Sim...
― O pai dele também era bem falador. Vivia dizendo umas besteiras sobre honrar Hraelund e os Hraekhan... Acho que era quem mais ficava feliz de me ver aqui, apesar de... bem, por eu ser a princesa e tudo mais.
Talvez fosse um pouco irônico, mas Eirkia parecia ter mais memórias felizes do pai de Skeivarr do que de seu próprio. Darl não se lembrava de alguma vez haver ouvido-lhe falar bem do severo rei quando ainda estava vivo, e menos ainda após seu fim.
De toda forma, ele mesmo nunca falava da família com a qual viveu mais de onze anos, mesmo mencionando Gundar frequentemente. Na verdade, as memórias de seus pais já pareciam tão turvas que às vezes via-se a se perguntar se não estava a tentar esquecer deles propositalmente.
― Sabe ―, ela continuou. ―, a maioria dos nobres pode passar a vida toda sem nunca passar por essas ruas. Muito menos entrar em uma casa dessas.
― Por quê? ―, inseriu-se na conversa o curioso irmão de Skeivarr.
― Por quê...? Bem, porque nobres são medrosos. Por isso eles se escondem junto do castelo.
― Mas você não tem medo?
― Eu? Nem um pouquinho. Mas sabe quem devia ter medo?
― Quem?
― Você!
Eirkia saltou sobre o garotinho e começou a fazer cócegas em seus lados. Logo os dois rolavam despreocupadamente no chão da sala, como se completamente alheios ao ar pesado que pairava sobre todos há pouco na mesa de jantar.
Novamente deixado apenas com sua própria companhia, Darl andou sem rumo ao longo do pequeno cômodo que compunha a sala de jantar e a área adiante da lareira. Foi quando, ao passar diante da porta aberta da cozinha, ouviu vozes.
― Mãe, o que foi aquilo?! ―, questionava uma. ― Quanto custou aquela comida?!
― Não importa quanto custou. ―, respondia outra. ― A princesa veio almoçar em nossa casa. É claro que a gente precisa oferecer o melhor possível e passar uma boa impressão.
O garoto, então, virou-se para sua direção e viu que a discussão acontecia entre Skeivarr e sua mãe, na cozinha.
― Você sabe que a Eirkia gosta das suas batatas! ―, insistia o jovem. ― Ela já comeu aqui várias vezes e não se importa com comida simples. Sem falar que a gente nem recebeu a pensão do pai ainda!
― Me ouve, Skeivarr. Se não quiser ver sua família se mudar pro Gueto, agora mais do que nunca, a gente precisa da simpatia da princesa. Essa é a oportunidade perfeita, não vê?!
― Sim, mas...
― Você e a princesa se dão bem desde pequenos. Ela passou tanto tempo sem dar notícias, e só agora, quando mais precisamos, apareceu outra vez. Essa é a oportunidade que Yahlov nos deu! Em um pouco mais de um ano ela também vai ser adulta, então por que não se consagra logo como seu amante e...
A senhora pareceu notar a presença de Darl à porta e emudeceu. Aparentemente, o garoto ouvira algo que não devia.
Skeivarr, sem cerimônia, deixou a cozinha, ignorou o visitante mesmo ao passar por ele tão próximo que seus ombros quase podiam esbarrar e voltou à mesa, de onde continuou a coletar as louças.
― D-Deseja alguma coisa, Darldollum? ―, perguntou a mãe com um sorriso desajeitado. Apenas então o garoto notou que estivera parado à sua porta o tempo todo em silêncio, mesmo após ser descoberto.
― Ah, não... Não, não preciso de nada... Desculpa incomodar.
Darl imediatamente se afastou e procurou aproximar-se dos outros dois diante da lareira.
A cada minuto que passava naquela casa, o garoto apenas se sentia mais inquieto. Ainda assim, via a princesa e o irmão de Skeivarr a brincar tão descontraídos que não tinha mais certeza de qual versão do mundo que via devia acreditar.
Suas lembranças de haver ouvido por trás da porta, naquela mesma manhã, Eirkia chorar inconsolável pareciam ecoar agora como nada além de uma mera ilusão.
― É melhor a gente voltar logo ―, subitamente, disse a princesa enquanto se levantava e limpava o vestido com tapas. ―, antes que o Hal mande os guardas me procurarem.
― Mas já? ―, reclamou o irmão de Skeivarr.
― Eu volto, seu malandro. ―, apertou suas bochechas.
― Mas da outra vez você demorou tanto pra voltar.
― Dessa vez vai ser diferente. ―, suspirou e pôs a mão sobre sua cabeça de negro cabelo espetado. ― Eu prometo.
Logo a mãe dos irmãos apareceu, vinda da cozinha.
― Oh, já estão indo? ―, ela questionou, aparentemente decepcionada.
― Sim. Obrigada de novo pela comida, tia.
― Nós que agradecemos por sua presença. Por favor, venham outra vez.
Enfim, veio Skeivarr escoltar em silêncio os visitantes até o lado de fora. E, nesse mesmo silêncio, ele e a princesa se encararam por um instante, até que o jovem deixou escapar um suspiro.
― Até mais, princesa, menino dragão.
― ... Até ma... ―, Darl tentou responder, mas se interrompeu ao ver Eirkia dar um abraço repentino no amigo.
Esse gesto pareceu surpreender até mesmo o jovem soldado, porém ele logo ergueu seu braço às costas da princesa também.
Darl, que já se sentia excluído o bastante, pensou em desviar os olhos e não observar aquela cena que tanto estrangulava seu peito. Mas foi então que notou o olhar do próprio Skeivarr fixo sobre si, como se lhe perfurasse com uma adaga.
Parecia um olhar repleto de significado, talvez do tipo que dificilmente era traduzido em palavras. Talvez fosse um de simpatia, talvez de desafio, talvez de hostilidade. Ainda assim, o que aqueles olhos realmente diziam continuaria um mistério.
...
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