— Quem...Quem é? — Lamír tentou buscar refúgio atras das mãos espalmadas a frente.
De um arbusto lateral, em um ponto ainda mais ingrime do declínio, outro vulto surgiu. Mas este veio até próximo a fogueira, sem fazer questão de ocultar a lâmina de aço da espada curta que empunhava.
— Não somos ninguém importante garoto, agora mantenha a boca fechada como estava. Até que eu mande falar alguma coisa.
As vestes de algodão tingidas em cor escura, o colete, braçadeira e grevas feitas em couro fervido indicavam ser mais uma dupla de batedores do que caçadores. Ao menos aos olhos de Álik. Quando a luz do fogo deu cores ao rosto do que se aproximou, revelou a faixa de pano grosseiro que lhe cobria a face. Somente os olhos estavam a mostra, verdes e tão afiados quanto sua própria lâmina.
— Vou fazer uma pergunta de cada vez, e vou apontar para quem quero que responda. Se alguém não falar, ou pior, falar na hora errada, meu companheiro vai espetar aqula flecha igual fizeram com esse frango.
Os três se entreolharam com olhos arregalados e bocas tremulas. Nesse momento, Álik teve a perna tomada pela dor, e tombou, retorcendo como se arrancassem pela ferida as veias de sua perna.
— Quase te acerto no susto garoto... — O arqueiro respondeu risonho, alcançando o local onde se reuniam entorno da fogueira. — Mais uma dessa e não seguro minha mão.
Lamír o olhava com nítida intenção de ajuda-lo, Sadésh alternava o olhar entre a flecha e a carroça.
— "Maldito Théoph!"
— Agora que ficaram confortáveis, vou começar com as perguntas. — O homem puxou para trás o capuz e exibiu os cabelos alongados e negros, que cobriam quase toda a face, somados a mascara.
Apontou a pontiaguda espada na direção de Álik, fazendo os três endireitarem o corpo com o susto.
— Quanto somam os guardas dessa cidade?
— Eu... — A voz se transformou em um bloco na garganta, passou a um som fraco e insuficiente, feito com tanto esforço que parecia ter esquecido todas as palavras que existiam.
— Você sim. — O arqueiro riu mais uma vez. — Não esta vendo a lâmina na sua direção?
— Não faz parte da guarnição dessa cidade garoto? — Gesticulou com a espada. — Não é um recruta?
Isso era exatamente o que Álik sempre quis ser, sempre se imaginou sendo. Tal como o pai era antes de ser exilado, antes de ser só um caçador de moedas. Mas parentescos eram mais importantes que aptidão na escolha dos recrutas e se dependesse do seu, os únicos guardas que veria seriam os que guardavam as gaiolas.
— Não... — Respondeu quando a mente suspendeu do próprio corpo pela frustração. — E não são mais do que 70 cães nessa merda de cidade.
Ambos os batedores se surpreenderam, mesmo que discretamente. Se entreolharam, e em seguida o que empunhava a espada se abaixou na frente dos três garotos.
— Quantas montarias tem prontas para os mensageiros? Quais são? — Apontou a lâmina para Sadésh
O garoto tencionou tanto que parou até mesmo de tremer a faca e cebola que tinha em mãos, não olhava para o questionador e sim para a espada a sua frente.
— Por favor.... por favor... — Balbuciava com lagrimas descendo dos olhos.
Lamír se espantou de tal forma com a reação desesperada do amigo, que não conteve a voz.
— Sadésh?
O ranger da madeira que compunha o arco fez com que os três olhassem para ele imediatamente, se deparando com o arqueiro sorrindo com a flecha preparada. Mas no mesmo momento viu a mão do outro batedor se erguer, em sinal de aguarde.
— Ele não esperava que o amigo fosse tão medroso, gostei de ter visto isso. Talvez saiba responder a pergunta que fiz.
— Não sei nada sobre montarias, nem mensageiros senhor... — A voz saiu esganiçada de medo e Lamír manteve os olhos arregalados na direção do arco. — Sou só o ajudante do curandeiro.
— Ajudante do curandeiro? — Trocou a direção da lâmina para o garoto, que voltou o olhar para a espada. — Certo. Se não sabem nada sobre os mensageiros, talvez saibam sobre os magos. Quantos são? A que ordem pertencem?
— Não tem magos aqui senhor, só o curandeiro sabe um pouco de magia. E é tão pouco que tem dificuldades até para me ensinar.
Os batedores se olharam novamente com risos nos olhos.
— Não tem problema garoto, você vem mesmo assim. — Se levantou apoiando na espada que fincou ao chão.
A flecha zuniu quando disparada, e mais assustador que este ruído, foi o som seco do impacto ao se enterrar no flanco direito de Sadésh.
— "Ele não fez isso..." — Álik nem mesmo piscava, olhava o corpo de seu amigo em leves espasmos enquanto golfava sangue.
— Por Maalêm, misericórdia... — Lamír parecia em transe, sua bexiga se soltara e tão nítido quanto seu pavor era o cheiro da urina que formava uma poça ao seu redor.
Apesar de ter outra flecha pronta na corda do arco, o que empunhava a arma não a tinha erguida. Gargalhava por baixo da mascara, mas os olhos lacrimejando não deixavam dúvidas de sua diversão.
— Não se preocupe mijão, você vai ficar vivo. Quanto mais curandeiros tiver em uma guerra melhor.
— Ele não servia para nada rapaz... — O outro batedor encarou Lamír com os olhos verdes ainda mais reluzentes que a espada em mãos. — Não vale o desespero.
Álik ainda olhava o amigo agonizando, com a flecha adentrando as costelas, a mancha de sangue empapando as vestes, o cheiro de merda e o som de morte que emanavam de Sadésh. Se arrastou para mais próximo do amigo, o máximo que sua perna permitiu e até que o arqueiro interrompeu, ainda sorrindo.
— Quieto aí, não me apresse. Você é o próximo e ninguém te tira isso.
— Espere... espere. — Álik ergueu uma das mãos, espalmada na direção do arqueiro.
Observou a corda do arco perder um pouco de tensão, enquanto o outro batedor se afastava alguns passos, indo na direção da carroça. Aproveitou um instante em que o arqueiro buscou confirmação com seu líder em uma troca de olhares, e tomou a faca que Sadésh usava para cortar as cebolas de sua mão. Escondendo-a sob o braço em que apoiava.
— Tem mais alguma coisa para contar garoto? — O líder mexia nas coisas que haviam na carga da carroça. — É sua ultima chance.
— Minha perna esta ferida... — Mostrou doloridamente a faixa no joelho ao arqueiro. — Mas se me ajudar a ficar de pé perto da descida, posso apontar onde ficam os primeiros estábulos.
Os batedores se entreolharam novamente, mas dessa vez o arqueiro só sorriu.
— Você não parece gostar de nenhum deles garoto, mas como não sabemos o quanto seu ódio te motiva contra seus conterrâneos, não podemos correr os riscos. — O líder se pôs a montar os aparatos na pequena mula que pastava próxima a carroça.
— Estamos um pouco longe da cidade, mas um grito bem dado pode chamar a atenção. — O arqueiro completou.
Não havia mais o que fazer. Lamír ainda parecia em transe, Sadésh amolecera ao seu lado com os leves espasmos das tentativas de respirar.
— "Desculpe... Desculpe, por favor" — O crânio de Álik esquentou internamente, sentia suas veias pulsarem no pescoço e os dentes quase se partirem de tão cerrados.
Quando o arqueiro deu um ultimo sorriso antes de erguer o arco em sua direção, Álik impulsionou o corpo com o braço em que apoiava, e deixando-se cair sobre Sadésh, lhe cravou a faca na testa.
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