Intermissão
O Aeroporto é um lugar interessante para se passar um bom tempo lendo.
O check-in é como visitar uma elegante casa, aonde lhe oferecem um maravilhoso chá e o mordomo fica te vigiando para ter certeza que não vai roubar a colherinha de prata.
A segurança dos aeroportos modernos possui uma série de medidas com a intenção de ao mesmo tempo te assustar e fazer com que se sinta seguro. O tempo médio só para essa parte é de quinze a trinta minutos.
Um amigo uma vez me perguntou porque tanta gente leva livros se podem ver filmes durante os voos. Respondi que em voos internacionais, pedem que se chegue três horas antes do horário marcado em sua passagem.
Após a hora marcada ainda leva um bom tempo até todos embarcarem e o avião decolar.
É um bom tempo para se passar lendo.
Em muitos países do terceiro mundo, (Brasil incluso infelizmente) as pessoas esperam horas por um ônibus cheio, aonde vão passar mais algumas horas espremidas até chegarem ao seu destino. E raramente se tem conforto o suficiente para passar esse tempo lendo.
Como tenho ambas as experiências eu diria que reclamar da espera no Aeroporto seria o que chamam de “problemas de primeiro mundo.” E deveria deixar isso para lá. Mas não consigo.
Acho que os confortos da vida metropolitana moderna me estragaram.
Eu deveria passar um tempo em um paraíso tropical, dormindo em um quarto todo de bambu construído em cima de árvores, lutando para sobreviver contra os ataques de mosquitos e torcendo para que a água local não me dê nada mais sério do que hepatite.
Mas eu não tenho dinheiro para isso.
Tento me distrair com a minha sobrinha-neta correndo para lá e para cá, importunando os outros passageiros.
Sabe aquelas pessoas horríveis que levam aquelas crianças que gritam e chutam as costas da sua cadeira? Pois é, sou uma delas.
Eu me pergunto se era assim nessa idade. E se era por que eu não me lembro? Não me parece o tipo de experiência que se bloqueia.
Uma coisa interessante é que crianças estão confortáveis. Acho que deve ser por isso que tantos pensam que a época da infância é boa. Não temos que nos conter ou fazer pose.
Se estiver cansada, se esparrame na cadeira.
Se estiver em uma fila, dance, exercite as pernas.
Se estiver alegre, saltite.
Se estiver animada, corra.
Por que diabos nós paramos de fazer esse tipo de coisa?
Nossa sociedade é extremamente estúpida neste ponto.
Passamos nossa infância escutando que não devemos correr e quando chegamos a certa idade, o médico nos manda pagar uma fábula em academias para correr tudo o que não corremos e devíamos ter corrido.
Reparo que tem uns garotos me encarando. Sabe como gatos se comportam perto daquelas pessoas alérgicas e que odeiam gatos? Eu sou meio assim com alguns tipos de crianças.
“Você me parece familiar.” O menino coça o queixo.
“Ele é um escritor.” Mimi, minha sobrinha me entrega.
“É isso mesmo.” O menino aponta. “Você estava na orelha de um livro que a minha mãe me obrigou a ler de castigo.”
“Sua mãe devia ganhar o prêmio de mãe do ano.” Comentei tentando segurar o meu sarcasmo. Eu só queria era entrar no avião.
Um guarda avisa que já está chegando minha vez.
Falo para Mimi parar de brincar, pois é hora de partir e Mimi continua criançando feito criança. Acabo puxando ela, que fica emburrada por ter que entrar na fila. Fico com remorso e ao mesmo tempo satisfeito por ela ficar quieta.
Após todo o processo, entramos no avião. Mimi se senta ao lado da janela e vê toda a paisagem no mínimo inspiradora.
Adoro a sensação do avião levantando voo.
A aeromoça (ou comissária de bordo) nos avisa que o sistema de vídeo não está funcionando e não terá filmes.
Fico muito incomodado, pois estamos no século vinte e um. Esse tipo de coisa não deveria acontecer no futuro.
Mimi fica bem desapontada pois, ela é do tipo de criança cinéfila que fica hipnotizada por horas se tiver algo interessante para ver.
Não vou mentir, eu queria ver aqueles filmes também.
Tento me distrair me perguntando por que a aeromoça tinha um lenço rosa choque cobrindo a cabeça e óculos escuros em um avião.
Mimi me olha com um olhar de desaprovação e me lembro que esqueci de separar um tablets, celular ou para o voo. Deixei até mesmo o livro grande e grosso que pretendia ler nas bagagens, por me distrair com Mimi brincando. Só trouxe uma pequena bolsa com remédios, meus óculos de leitura e um cachecol para o assento.
“Vou tentar dormir.” Ela recosta no assento. “Me conta uma estória.”
“Tudo bem, que estória quer ouvir?” Perguntei. “O urso que gostava de avião?”
“Cansei dessa.” Ela gira na cadeira como quem não têm a mínima intenção de dormir. “Conta uma nova. Mamãe disse que vocês iam para outros mundos com mágica e dragões.”
“Ela te conta essas coisas?” Perguntei. “Quer uma estória com magia e dragões?”
“E em outro mundo.” Ela complementou. “Com uma bruxa e como é para criança tem que ser beeeeem complicada. Mas não pode ser muito infantil.”
“Como assim, não pode ser infantil? Você é criança.”
“Infantil bobo, não. Quero como as estórias antigas que não tinham problema em queimar bruxas ou matar ogros com requintes de crueldade.”
“Como assim, requintes de crueldade?”
“Como na história original da Cinderela, em que a madrasta é obrigada a dançar em sapatos de ferro incandescente até a morte.”
“Uma estória assim.” Pensei.
“E comprida.” Ela olhou para mim. “Esse voo é bem longo.”
“Sei exatamente o que você quer.” Me ajeitei na poltrona. “Em minhas viagens pela nebulosa do leite achocolato encontrei um planeta com humanos e um clima bem parecido com o nosso chamado Propasa. Possui quatro luas e vários anéis, o que faz com que seu céu seja muito interessante de se observar. Mensalmente astrólogos descobrem alguma curiosidade sobre seu sistema solar.”
“Mesmo?” Ela ficou interessada e se arrumou no banco.
“Graças a um monte de fatores, incluindo a abundância de mágica, a física funciona de modo diferente em Propasa, por isso é possível à existência de ilhas flutuantes e dragões maiores do que baleias.”
“Essa é a estória.” Animada, ela bateu palmas.
“Esse caso aconteceu em um arquipélago de clima tropical, semelhante à América do sul chamado de Licorne . Talvez aja algum contato entre nossos mundos no passado e ouve uma troca de habitantes, pois os povos de Licorne são bem semelhantes às civilizações indígenas. A maioria das pessoas por lá têm a pele marronzinha como a sua.”
“Já gostei desse lugar.”
“Aliás acho que em alguma época ouve um grande entre nossos mundos, pois antigas lendas pré-colombianas falavam muito sobre tribos de pessoas capazes de se transformar em animais e a maior parte da população em Propasa são teriantropos com essa curiosa habilidade. Sem falar que no país de Licorne falam línguas parecidas com Tupi , Guajajara e Quéchua .”
“Terio o que?” Mimi faz uma careta.
“Teriantropos.” Eu dou uma risada. “É o nome se dá às pessoas que se transformam em animais.”
Ela fica mais animada.
“Theion é grego e significa: animal selvagem. Antropos significa ser humano. O termo zoantropia também pode ser usado.”
“Esse eu conheço do zoológico.” Ela fala cheia de orgulho. “Vem da palavra grega zoion que significa: ser vivo ou animal.”
“Eu estou orgulhoso de você.” Fiz cafuné nela.
“Rinoceronte vem do grego rhinos, nariz e kéras que significa chifre.” Ela ergueu os bracinhos em sinal de vitória. “Significa chifre no nariz. A definição científica das coisas não passa de uma descrição bem boba em grego antigo.”
“Mas você é um gênio.” Eu a cutuco e ela ri. “O que você fez com a verdadeira Mimi?”
“Então essa é uma estória sobre gente que vira bicho. Todos eles viram bicho?”
“Nem todos. Mas os que podem têm três formas.” Eu contei nos dedos. “A humana, a venna que e uma mistura entre a gente e bicho, e a primus em que se transformar em animais, só que bem maiores que os animais normais.”
“Sobre o que é essa estória?”
Olho a minha volta e percebo vários rostos voltados em minha direção. Arrumei meu paletó e sentei de forma mais confortável. “É sobre uma aprendiz de feiticeira sendo resgatada de dragões.”
Mimi sorriu e se sentou.
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