01° Estrofe
Já conheceu uma daquelas pessoas alienadas que parecem ter passado a vida toda no topo de uma montanha isolada do mundo?
Arima era uma delas.
Não que fosse só uma alienada, ela realmente passou vida toda no topo de uma montanha.
Durante toda sua vida morou na cidadela do templo de Mora na cordilheira da Fulguração.
Três vezes por semana pelo menos uma caravana passava pela trilha da cordilheira trazendo produtos e novidades, pois era o caminho mais rápido para se atravessar do leste ao Oeste. Acampavam em uma praça que chamavam estacionamento das carruagens. Algumas pessoas davam doações para pernoitar nos quartos dos templos e outros acampavam na praça na entrada da cidade.
As vezes ela saia com seu tio Prudente Barriga Amarela. Ele era sacerdote do dragão Barriga Amarela. Andava curvado o que dava a impressão de ser baixinho e falando de um modo esquisito, com os dentes fechados.
Frequentemente ele atravessava toda a cordilheira da espinha da Fulguração para visitar sua irmã que era sacerdotisa do dragão Vento Azul e as vezes a levava para dar uma volta.
O que ela mais gostava de fazer, era de falar com os viajantes que montavam barracas e estiravam toalhas para vender produtos. Por ficarem o dia todos sentados no mesmo lugar, adoravam ter alguém com quem falar e contar as histórias de suas viagens.
Eram os viajantes e suas histórias que instigavam o espírito de aventura na pobre menina. Ela comera frutos do mar, mas nunca vira o mar. Todos os dias, via carnes e vegetais no mercado, mas nunca tinha visto um pasto ou uma plantação. A vista dos mirantes do templo era inspiradora e de tirar o folego, mas ela nunca vira outra paisagem que não fosse em quadros ou figuras em livros.
Seus favoritos eram os magos universalistas que viajavam pelas cidades do interior vendendo poções e dando aulas de como fazer feitiços simples.
Infelizmente ela era uma nugac, uma mestiça que nasceu com uma deformidade causada pela magia incompatível entre seus pais. As pessoas tinham muito preconceitos contra nugacs, por isso ela se disfarçava.
Um dos seus olhos era azul, sem a parte branca como uma ave. Tinha alguns espinhos saindo da cabeça por isso usava o cabelo bem comprido. Uma de suas mãos parecia uma garra, seus pés lembravam patas, tinha duas asinhas alaranjadas e seu rosto era uma bagunça só.
Sua sorte era que a cultura do país de Licorne possuía muitas semelhanças a centro-sul Americana, e máscaras eram usadas em todo tipo de festividades. Perto dos templos e em feiras sempre se viam barraquinhas vendendo máscaras artesanais e não era raro ver alguém usando uma por ai, principalmente as crianças.
Naquele dia ela usava um vestido azul e laranja bem acima do seu número, um longo poncho que quase cobria todo o seu corpo, um lenço cobrindo a cabeça e uma máscara esculpida em madeira do rei Pampé , o lendário rei careca.
Era um rosto feminino delicado com uma pintura colorida que lembravam asas de borboleta saindo dos olhos.
Passando pela vila do Teto do Fulguração Arima se aproximou de uma barraca montada em um vagão com uma placa escrita “Circo de cavalinhos do Pica-pau Amarelo.” Era um famoso grupo show itinerante de saltimbancos. Estavam vendendo todo tipo de produtos e um mago chamava as pessoas para degustar uma poção.
Ela nunca havia visto um mago tão grande. Era como um dos guerreiros nômades, só que bem-arrumado. Não tinha cicatrizes visíveis, nem cabelo longo e desgrenhado. Usava uma roupa impecável, botas e bombachas, uma azul folgada e um grande lenço no pescoço. Tinha uma beleza brutal, e olhos penetrantes.
Ela pegou um dos frascos que estava escrito: “Tônico de recuperação do Pica-pau Amarelo sabor frutas vermelhas.” Então curiosa tomou uma amostra.
“Isso é delicioso.” Ela até bateu palmas. “Arima nunca viu uma poção de cura com gosto bom.”
“Você é a senhora das borboletas?” Ele brincou. “Qual é a dessa Máscara?”
“O imperador Pampé. O rei careca.”
“Mesmo? Parece o rosto de uma moça.”
“Dizem que o rei Pampé tinha uma aparência feminina. Até se fantasiou de mulher.”
“E toda essa roupa? Está com tanto frio assim?”
Arima se abraçou e tremeu. “É que faz muito frio no alto da cordilheira.”
“O tônico já deveria ter dado um jeito nisso.” Ele coçou a cabeça.”
“É mesmo! Arima até está quente. Quem é que fez esta poção fantástica?” Arima leu o rotulo. “Feito pelo professor Gavião Negro.”
“Foi um erro de impressão. Professor Cauã Galvão Preto ao seu dispor.” Ele fez uma reverência. “Aqui. Experimente o sabor guaraná.”
“Arima Barriga Amarela.” Ela se apresentou um pouco envergonhada mostrando um cetro quebrado, enfeitado com uma fita e com um gesto fez uma pequena nuvem de estrelinhas. “Arima também sabe fazer feitiços.”
“Onde você aprendeu a fazer fogos de artifício?” Ele perguntou curioso.
“Arima leu no almanaque dos magos.” Ela tirou uma edição da bolsa.
“Que tipo de menina lê o almanaque dos magos?”
“Arima não sabe. Quantos tipos têm?” Ela deu de ombros.
Uma velha com cara de poucos amigos os interrompeu. “Mas que raio de cheiro é esse?”
“Frutas vermelhas. O tônico de recuperação do Pica-pau Amarelo vem em três sabores, guaraná, graviola e frutas vermelhas. Garanto que o gosto é delicioso.”
“Poção de cura em gosto ruim feito cabo de guarda-chuva. Na estação passada comprei um óleo de cobra cocota tão bom que te fazia vomitar com uma cheirada.” Ela abriu um frasco e balançou na cara dele.
“Argh! Lamento dizer que a senhora foi enganada. O óleo de algumas cobras d’água possui propriedades anestésicas e anti-inflamatórias, mas o óleo de cobra cocota é inócuo.”
“Você que está tentando me enganar. A cunhada da minha vizinha curou a artrite dela com este óleo de cobra cocota.”
“Só se foi graças ao miraculoso efeito placebo, com diagnóstico errado. O princípio ativo de óleo de cobra cocota é o de nada com coisa nenhuma.”
“Chega! Só vou comprar sua poção porque estou ficando sem óleo de cobra.”
“Contanto que não leia os ingredientes na embalagem, para mim tudo bem.”
“Eu não sei ler misinfio.”
“Então estamos combinados.” Ele deu de ombros. “Quantas garrafas de poção vai querer?”
“Umas quarenta. Sabe se lá quanto tempo vai demorar pra aparecer outro mago.”
“É muito raro de se ver magos na cordilheira?”
“Nem tanto. Mas andam rareando dispois que os abadari montaram o país deles lá no oeste. Todo mundo que sabe magia está indo pra lá.”
Enquanto observava a discussão Arima via os outros produtos.
“Arima vai querer um tônico gostoso de cada sabor.”
“Um brinde para você.” O mago entregou uma varinha. “Uma varinha de levitação. É só dizer '‘levitar’' e mover o objeto que quiser. Ótimo para pegar coisas em lugares altos e limpar embaixo do sofá.”
“Obrigada!” Arima saiu saltitante com a varinha na mão e foi se encontrar com seu tio Arrepio.
“Arima minha princesa!” Ele a cumprimentou com um sorriso. “Vamos até a lagoa quosa encontrar sua tia Índigo. Ela já deve estar chegando.”
“Quer um gole? É o tônico de recuperação do Pica-pau Amarelo.”
“Tônico? Isso é uma poção de cura? Arima se precisa de uma poção de cura sua tia Índigo pode fazer a melhor do mundo. Por que gastou dinheiro em uma coisa dessas?”
“As poções da tia têm gosto de castigo. Esse tem sabor de frutas.”
Ele pegou um frasco e tomou tudo. “Poção de cura com gosto bom? Quanto você pagou por isso?”
“Um vintém cada.”
Ele começou a gaguejar. “Um vintém? Por uma poção de cura que tem gosto de doce? Esse é um dos golpes mais astuciosos que já vi para enganar as pessoas. Só falta ser óleo de cobra.”
“Não é óleo de cobra. E o tio tomou tudo, me deve um vintém.”
“Te devo um vintém? Eu devia é tirar sua mesada para não gastar dinheiro em bobagem. Com a sua idade se eu quisesse comer algo doce tinha que lutar contra um enxame de abelhespas só com as minhas unhas e dentes.”
Os últimos dias de Arima no templo de Mora foram daqueles típicos dias estranhos, onde parece que acontece de tudo.
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