Barulhento.
Esta é a única palavra que descreve perfeitamente a sala de Lilian neste momento. Não que ela os culpasse. Eles já estavam quase no último bimestre do segundo ano, maioria ali tinham a certeza que passariam de ano e outros já estavam esquematizando um elaborado sistema de cola para poderem desfrutar as férias de final de ano - ou ao menos para terem chance de fazer a prova de recuperação. No entanto ainda assim ela gostaria que seus colegas calassem a boca. Não era pedir muito, ela só queria ler algumas páginas do romance que pegou emprestado na biblioteca.
-Haa… Por que não convidamos o professor Stevan pra nossa festa? - comentou a garota atrás de Lilian, Clarisse, para as amigas.
-Seria uma boa, mas será que ele iria?- disse outra, Carla.
-Não sei, mas mais importante que isso: quem o convidaria?
As três garotas deram risinhos nervosos.
-Hey, cara, você viu o jogo de ontem?- comentou Pietro com o amigo na carteira a frente de Lilian.
-Vi. O juiz tava roubando na cara dura.
O barulho não vinha somente das conversas aleatórias, mas também de algum joguinho que alguém do fundo tinha trago e outros estudantes no corredor, sem contar que em algum lugar alguém ouvia música.
-Muito bem, quietos! A aula vai começar. - era o professor de matemática, Stevan. Ele tinha acabado de chegar e já estava fechando a porta.
Lilian poderia ter agradecido, mas isso não fora feito pelo seu bem. Com a ordem e quietude que agora se instalava na sala vinha a aula, ou seja não teria como continuar a ler a história de Ana Terra.
Quem se importa? Certamente ninguém ali, além dela mesma.
Devido a vários motivos que não se cabe enumerar, os alunos gostavam deste professor (que os acompanha desde o último ano do fundamental) e por isso respeitavam a aula dele, mesmo sem gostar da matéria em si. Afinal quem gosta de matemática? Certamente ninguém desta sala.
Stevan começou a passar a nova matéria no quadro e Lilian começou a copiá-la, mas as garotas as costas dela ainda sussurravam sobre o quão bom seria se o professor fosse a festa da turma e como ele era bonito e…
-Professor! - chamou Lilian.
-Sim?
-O senhor gostaria de ir na festa de final de ano que nossa turma vai organizar?- lápis, canetas, lapiseiras, celulares… tudo foi largado e todos esperavam a resposta dele, enquanto encaravam incrédulos a coragem da garota.
-Hm… Não acho que seja certo…
-Por que não? Além de ser muito querido por todos, o senhor também nos ajudou muito.
-... Mesmo assim…
-É claro que chamaremos outros professores.
-...Vou pensar.
O professor voltou a dar aula e uma colega as costas de Lilian sussurrou:
-Uau, não sei se teria coragem pra tanto, mas valeu!
-Não me agradeça, agora vocês terão que convidar outros professores.
-Mas isso é fácil. - respondeu alguém que Lilian pouco se interessava em saber quem era.
“Se é fácil, então porque não o convidaram?” foi um pensamento involuntário que trazia consigo uma resposta óbvia.
A aula transcorreu sem problemas, ou melhor dizendo somente com os problemas rotineiros de uma aula de matemática. A próxima aula era história e isto Lilian julgava menos importante do que Ana Terra e devido a seu histórico de notas exemplares a professora permitiu que ela lesse o romance, mesmo que toda vez que os olhos dela passassem pela aluna ela fizesse um beicinho de contrariedade. E por fim as aulas do dia acabaram.
Nossa heroína detestava ter que estudar horário integral, mas de fato ela se sentia melhor numa sala de aula do que em casa… na verdade qualquer lugar era melhor do que a casa em que vivia. Em sua opinião aquela estrutura de tijolos, cimento e vigas nunca poderia ser chamada de lar.
Ao final da aula ela caminhou de volta para casa. Não que ela não tivesse dinheiro para o ônibus, ela só achava um desperdício de dinheiro pagar passagem para fazer uma distância que ela fazia em meia hora de caminhada. Se ela desse sorte, conseguiria carona de um dos colegas até certo ponto, mas hoje não. Hoje era certeza que ela caminharia sob o crepúsculo sozinha (a turma havia marcado de ir ao ginásio ver o time de vôlei feminino jogar). Lilian até pensou em pegar um desvio, passar pelo asilo e ver sua avó. Todavia resolveu esperar até o dia seguinte, pois assim poderia passar mais tempo com ela, já que não teria o último horário.
Ela caminhou tranquilamente até em casa, cumprimentando conhecidos, ignorando cantadas. Nada além do normal. E assim como o de costume ela travou no portão de sua casa. Ela observou o espaço entre o portão e a porta, que a pessoa que desenhou a planta da casa queria que fosse um jardim, mas na verdade é quase que um altar enaltecendo os “ganhos” de seu irmão ( que aparentemente ainda não chegou).
Ela abriu o portão e passou pelos “troféus” que mostravam a trajetória de seu irmão - em certo aspecto era verdade, isso ela não podia negar - e adentrou a casa. Seu pai estava fazendo comida e pelo cheiro era macarronada, ou algo assim; sua mãe aparentemente ainda não tinha chegado, assim como o irmão.
- Cheguei! - anunciou ela passando pela cozinha. Não houve resposta do pai. Talvez ele não estivesse escutado, mas a garota duvidava que este fosse o caso.
Lilian foi direto para o quarto e ligou o notebook ( que comprara com o dinheiro que conseguiu juntar nas férias de janeiro do ano anterior) e foi logo abrindo seu e-mail. Um enorme sorriso cobriu seus lábios e um calor aconchegante a envolveu ao ver que seu ex-namorado, Lucca, havia respondido o e-mail que enviara esta manhã.
Olá Lily,
Tô morrendo de sdds d vc! Finalmente comecei a me acostumar aos negócios da família e tal, mas qria q vc me visse chegar ao topo. Ao msm tempo tô feliz q esteja ai (q espero q seja mais seguro).
O velho qr q eu arranje alguém nem q seja só pra desfilar com ela por aí, loucura, né?
To qse comprando sua passagem pra Itália ( a Giulia aprova a ideia). Sei q disse q era perigoso aki, mas to preocupado c vc…
Por falar nisso sua família já surtou ou vc ainda não contou q eu te apadrinhei? Cara, qro muito ver a cara do seu irmão qndo descobrir. Kkkkkk
Aé a Giulia disse q tá adorando o curso de moda e o de teatro. E disse q assim q ela tiver tempo ela vai responder suaz msgs.
Me avise de qq nvdd.
Bj,
Lucca
Em plena euforia ela respondeu ao e-mail com tudo o que achou importante de seu dia, disse que ele devia tomar mais cuidado com o que escreve para ela e que ele devia logo achar uma garota. No “P. S.” ela disse como achava incrível Giulia conseguir fazer dois cursos ao mesmo tempo e que a amiga não deveria se sentir pressionada para respondê-la.
Esclarecendo um pouco a relação de Lilian, Lucca e Giulia: Lilian conheceu Lucca quando ele ainda morava no país, ele e a irmã foram legais com Lilian desde o princípio; coisas aconteceram e nossa protagonista descobriu que o cara com quem saía era herdeiro de uma máfia italiana. Mais coisas aconteceram e eles tiveram que terminar para que Lucca e Giulia voltassem para a Itália. No entanto eles ainda são amigos e para Lilian eles são os únicos que realmente a conhece.
Voltemos a história.
- Que nojo. Aposto que tá falando com aquele idiota!
-O que você quer?- ignorou o comentário do irmão. E isso confirma que ela não contou a família sobre a atual situação de seu ex.
-O jantar ta pronto.- disse saindo e mostrando o dedo médio.
“Quanta maturidade…” pensou Lilian revirando os olhos.
Lilian foi para a cozinha pegou um prato e se serviu; depois foi para a mesa, junto a sua família e começou a comer, enquanto ouvia o irmão se exaltando e os pais parabenizando-o por algo que ele não merecia. A existência de Lilian somente não era ignorada, pois havia a comparação( “olhe como seu irmão é bom nos esportes…”, etc) e a obrigação( “quando receber seu salário me avise, seu irmão quer uma chuteira nova e não posso parcelar”).
Lilian ouviu várias coisas que não gostou ou concordava, mas fazer o quê? Falar seus pensamentos em voz alta só lhe traria problemas, disso ela tinha certeza. Era preferível ficar quieta e conversar com a avó Linda no dia seguinte.
***
Os pais de Lilian, Sandra e Paulo Cardoso, não escondiam o fato de não gostarem da filha mais velha. Na opinião deles ela só servia para estragar seu plano de vida.
Qual plano de vida?
… Após voltarem da lua de mel Sandra e Paulo se viram com uma pequena dificuldade financeira devido a crise que afligia quase todo o mundo. Neste momento eles perceberam o quão importante era ter um bom planejamento econômico e familiar, assim sendo eles planejaram tudo. Eles dividiriam o salário em três: uma parte para poupança, outro para as contas e outra parte para gastos pessoais. A parte da poupança seria destinada a educação do filho que teriam, as contas… para pagar contas (óbvio) e o pessoal era mais para gastos mútuos ou qualquer necessidade que surgisse no dia-a-dia.
O planejamento familiar foi menos complexo: depois que terminasse de pagar a bela casa que iriam comprar eles teriam um menino que seria o orgulho da família. O garoto não precisava ser bons nos estudos, mas eles queriam poder dizer que o filho deles era bom em algum esporte, queriam que ele quando chegasse na adolescência passasse as noites em festa até que encontrasse a garota perfeita; então eles se apaixonariam e o resto eles decidiram.
Porém nasceu uma garota… Eles se viram forçados a jogar esse plano fora. Teriam que gastar mais com ela, pois, afinal garotas dão mais trabalho e mais despesas do que rapazes.
Por um tempo nenhum dos dois quis aceitar isso, mas eles acabaram se dando por vencidos. Por volta de um ano depois Sandra engravidou de novo. Segundo ela foi o destino tentando concertar o erro que ele havia feito… e não é que desta vez o destino trouxe um menino? Agora eles poderiam realizar todos os sonhos deles e mais! Pois a garota podia ajudar com as despesas quando chegasse a certa idade! É, o destino mandou a garota primeiro para que eles conseguissem mais dinheiro e pudessem dar uma vida melhor ao seu pequeno garoto!
E foi com pensamentos distorcidos assim que Lilian foi criada, até que a avó descobrisse sobre isso e começasse a tomar conta dela.
O problema é que com o passar do tempo Linda ficou senil e ter perdido o filho mais novo não a ajudou muito, por isso Sandra a jogou num asilo tentando, assim, se livrar da mãe e tentar pegar o máximo possível do dinheiro da mulher mais velha. O problema é que Sandra não achou dinheiro para ser tomado, na verdade encontrou a conta bancária de Linda quase zerada, mas com algumas prestações dos próximos meses para pagar ( que ela se recusava a pagar, até que o advogado de Linda sugeriu uma saída tangente agradando-a) e acabou direcionando a frustração para a filha…
***
No dia seguinte, após a aula, Lilian foi ao asilo ver sua amada avó. Ela estava tão contente por isso que resolveu relevar certas nuisances.
Ela pegou o ônibus e desceu perto do ponto final. Cumprimentou alguns conhecidos (de vista) durante a pequena caminhada até a instituição. Lá ela anunciou sua presença e o desejo de sua visita para a nova funcionária da recepção.
-Lilian, a quanto tempo! - era a voz de um homem.
-Caio! - ela abraçou o recepcionista - Como vai?
-Bem e você?
-Melhor agora. - Lilian tinha certa intimidade com alguns dos funcionários dali, não muita, mas os mais próximos a ela tinham um palpite de como era a vida doméstica da garota, depois do escândalo que a mãe dela armou pouco depois de internar a avó dela ali e nunca mais voltar.
-Estava com saudades. E a Dona Dalva também! Quando você vai vir pra alegrar os bons velhinhos daqui?
-Assim que tiver tempo, eu prometo.
Lilian puxou conversa com a nova garota até que recebesse permissão para ir ver a avó.
É meio triste isso, mas Linda precisa de medicação constante e ela acha que todos os outros membros de sua família morreram. Por um tempo os funcionários e a própria Lilian tentaram dizer o contrário, mas quando ela perguntava “E quando eles vem me visitar?” todos ficaram sem reação, então meio que para todos os efeitos a velha só tem uma parente viva.
-Vovó! - disse a jovem correndo para um abraço. - Senti sua falta!
-Também sentia a sua, minha flor.
As duas ficaram conversando sobre o dia-a-dia delas até a hora que a enfermeira trouxe a refeição de Linda. Nesta hora houve uma pequena despedida para que ambas pudessem comer alguma coisa.
A avó foi tratada pela enfermeira e a neta foi até a cantina procurar algo para comer. Lá ela encontrou uma outra enfermeira que aparentava estar doente.
-Tudo bem, Laura? - a mulher meio que grunhiu um “tudo”, enquanto a jovem se sentava ao lado dela. - Ressaca de novo?
-Uhum.
-Por que você bebeu tanto se hoje você tinha trabalho?
-Arranje um namorado ou entre na faculdade que você descobre…
-Mah, não me assuste assim. Quando eu namorei o Lucca não enchi a cara nenhuma vez e não acho que vá ter tempo pra isso na facul.
-Espere só a calourada… Quando essa época chegar você vai me agradecer por ter te ensinado a fazer sopa anti- ressaca.
-Talvez… mas se ela funcionasse eu não te veria neste estado.
-Urg! Não necessariamente, pra ela funcionar eu teria que ter tido tempo de fazê-la e depois bebê-la, não acha?
-Claro, claro. - a mais jovem tirou uma aspirina da bolsa e a ofereceu para a mais velha.
As duas conversaram mais um pouco (apesar da enorme dor de cabeça e o estômago de Laura não estar bem) antes de tomarem seus distintos caminhos.
Lilian voltou para o quarto da avó e lá as duas discutiram qual dos vestidos do catálogo da revista elas deveriam usar na formatura, se elas quisessem algo bonito e elegante, Lilian teria que juntar bastante dinheiro - apesar do vestido não ser o grande problema, mas sim a locomoção de Linda, essa parte é absurdamente cara e talvez um cursinho... Linda insistiu que a neta usasse um vestido azul curto, mas ao olhar o preço a neta disse não gostar tanto do modelo e que talvez elas devessem procurar um outro com uma saia maior. A avó reclamou que a neta dela era muito puritana para os tempos modernos, antes de continuarem a discutir pelo que pareceu horas sobre o que vestir para o grande dia, todavia, como sempre, nada foi decidido.
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