As aulas antes do intervalo estavam prestes a acabar, só restava o último sinal que tocaria em pouco mais de um minuto. Assim que o intervalo começasse Lilian seguiria direto para a biblioteca, onde devolveria o livro que pegara emprestado e - se tudo desse certo - pegaria outro. Após algumas conversas com o bibliotecário da escola, ela cogitou a ideia de comprar um leitor digital, mas rejeitou a ideia por gostar muito da sensação de segurar um livro, sentir seu cheiro e passar páginas. Afinal, se não fosse assim, O Nome da Rosa não teria graça. Por isso, sempre que o funcionário tocava no assunto, ela desconversava.
O sinal soou e os alunos de toda a escola começaram o mata-mata para ver quem fugiria das salas primeiro, nossa protagonista fazia parte deste grupo. Em meio a multidão ela acabou esbarrando eu seu irmão mais novo, o que fez um calafrio percorrer sua espinha.
Ele sorriu para ela e ela retribuiu com um aceno de cabeça. Um dos colegas dele fez algum comentário que se perdeu em meio a tantas vozes e eles logo foram separados pela multidão.
Lilian foi para a biblioteca, no entanto todos os títulos que lhe interessava estavam emprestados ou em péssimo estado. Por isso ela se aproximou do bibliotecário, para conversarem. Durante o debate sobre a última obra que Lilian lera, o bibliotecário deixou escapar a chegada de um título contemporâneo, mas que era uma obra de arte. Lilian agradeceu ao bibliotecário e esperou pacientemente o final do intervalo. Não teve que esperar mais do que um minuto, mas este pequeno espaço de tempo se transformou numa eternidade quando seu irmão a viu e disse que precisava conversar com ela após o término das aulas. Por fora ela parecia calma e tranquila - ao menos não muito diferente do normal -, mas sua mente gritava: “MERDA! MERDA! MERDA!” de modo que ela jurava que os outros podiam ouvir. Durante as aulas restantes, ela se esforçou ao máximo para prestar atenção no que era dito e anotar tudo e mais um pouco, ela precisava manter a mente ocupada, para não pensar em coisas desnecessárias.
Ao soar o último sino, com um pesar no coração, Lilian guardou o seu material e antes de sair da sala verificou se havia esquecido algo. Se despediu do maior número de pessoas possível, prolongou as conversas que teve a fim de crescer uma esperança que ela sabia ser impossível de se realizar.
Perto do depósito onde os faxineiros guardavam o material de limpeza havia um corredor que levava ao jardim onde os alunos do primário plantaram as sementes de feijão ou girassol, que eles tiveram que cuidar ao longo dos meses. Este corredor ficava vazio na maioria das vezes (uma vez um grupo de alunos foi pego vandalizando o jardim, desde então qualquer um que é pego ali é… visto com maus olhos pelos funcionários da escola), por isso Rafael escolhia este lugar para se encontrar com Lilian, os alunos não iriam aparecer ali a menos que quisessem arrumar encrenca e os professores não faziam nada que não fossem obrigação deles… O único inconveniente seria os faxineiros, mas era horário de almoço. E, mesmo que, por ventura, Lilian conseguisse fugir dali, em casa eles teriam todo o tempo do mundo, por isso, ela preferia que conversassem ali. No melhor/pior do casos alguém poderia aparecer para ajudá-la.
- Está atrasada! - disse Rafael insatisfeito.
-Desculpe, alguns colegas de sala queriam falar comigo...
-Falar com você?! - interrompeu-a rindo - O que alguém poderia querer falar com você?!
-Eles queriam que eu ajudasse com os estudos…
-Ha, claro. Só podia ser. - um instante de silêncio foi estabelecido e durante este tempo, ele encarou a irmã com raiva - Mas me pergunto o porquê deles quererem sua ajuda quando nem ao menos você consegue fazer um trabalho de sociologia direito.
-.... - ela encarou o chão.
-É sério, olha aqui! - ele pegou um trabalho com o nome dele, que tinha uma nota 97% escrita em tinta azul, com uma pequena mensagem parabenizando-o pelo incrível texto e pesquisa realizados. - Eu disse: olha aqui! - ele puxou o cabelo da irmã para levantar seu rosto e esfregou o maço de folhas na cara dela.
-97% é uma ótima nota. - tentou argumentar.
-Verdade, mas pelo que sei você tirou total no seu.
-O tema do meu foi mais fácil, eu não tive culpa.
-E acha que eu ligo?! - Rafael alterou sua voz, sem gritar - Não ligo pra porra nenhuma dessa merda. O que eu ligo é que as pessoas achem você melhor do que eu em alguma coisa. - ele lambeu os lábios, em irritação - Ah, mas isso me deixa puto! - ele pousou as mãos nos ombros da irmã. - E agora, como você vai assumir a responsabilidade por isso? - as mãos dele escorreram pelos braços dela.
-E-eu não sei. - respondeu tremendo.
Ele a encarou e percebeu que ela estava tremendo sob suas mãos. Ele respirou fundo e a soltou.
-Que isso? Por que tá tremendo? Acha que eu vou fazer alguma coisa contra você? - era uma armadilha. Se ela o respondesse, apanharia; se não apanharia. Eles já haviam passado por isso inúmeras vezes. Ah, como ela queria poder ter alguma coisa para se defender! Ela poderia usar Lucca, mas ninguém acreditaria e mesmo que acreditassem, usar um nome para se defender… uma hora eles acabariam percebendo que Itália e Brasil estão longe o bastante para eles a fazerem mal e esconderem as evidências, não que a máfia haja como a polícia…, mas pedir a morte deles era de mais. - Hahahaha, que foi? O gato comeu a sua língua? - ela fez que não com a cabeça. - O quê? Tem certeza? Porque eu continuo sem ouvir sua voz. Ou será que é um milagre?
-Não, eu só não sei como me redimir. - a mente dela gritava “VÁ PRO INFERNO” tão alto que por um segundo ela acreditou que o irmão poderia ouvir.
Em resposta ela recebeu um meio sorriso e um soco na boca do estômago.
-Como cê consegue usar ‘redimir’ numa frase normalmente, mas não consegue fazer a droga de uma pesquisa? - completou enquanto via a irmã cair de joelhos, segurando o lugar socado, tentando respirar normalmente. - Eu te fiz uma droga de pergunta! - desta vez foi uma joelhada na cara, evitando o nariz para não deixar provas. Quando a garota perdeu o equilíbrio e caiu no chão, o garoto começou a chutar-lhe o abdômen, enquanto sussurrava palavras de ódio. Ao terminar de extravasar sua raiva, ele se despediu com um te vejo mais tarde.
No momento que se seguiu, Lilian se perguntou se valeu a pena provocar o irmão daquele jeito. Levar uma surra por orgulho e não se arrepender não parecia muito lógico, por isso ela percebeu (mais uma vez) que ela não fazia sentido. Porquê, lá estava ela, com um sorriso distorcido em meio a lágrimas e sangue, sentindo-se vitoriosa.
Em meio a uma distorcida sensação de vitória, a mente de Lilian a alertava para os perigos de continuar ali deitada ( funcionários da escola a parte, Rafael poderia voltar para lhe bater mais).
-Já volto, só vou fumar esse.
Lilian tentava acalmar a respiração quando ouviu a voz levemente familiar. De quem? Ela tinha coisas mais urgentes para se preocupar.
-Tá. - passos vinham na direção de Lilian, enquanto ela tentava se erguer. - Vê se não demora.
Os passos pararam enquanto Lilian ainda estava de quatro, testando se ainda tinha força o suficiente para confiar em seus músculos.
-Por Pitágoras! O que aconteceu?! - a voz familiar disse seguido de mais passos e um leve tec, tec de um sapato de salto.
-Meu Deus! Você está bem?
Uma mão forte a segurou pelo cotovelo a ajudando a se levantar.
-Eu estou bem. - mentiu a garota.
-Você não está nada bem! Temos que chamar os seus responsáveis.
-NÃO! - a menina não queria ter soado tão desesperada. - O que aconteceu foi culpa minha, sabia que ia acabar assim e não me importei, meus pais não têm nada haver com isso.
Os dois professores trocaram olhares preocupados, como se tentando confirmar a melhor rota a seguir.
-Pode ser, mas você está visivelmente ferida. Não tem como ignorarmos isso. - disse Stevan.
-Olha, falar com os meus pais não vai ajudar a mudar o passado. Eu só preciso de alguma coisa pra dor e vou ficar novinha em folha.
-Meu bem, nós não podemos fazer isso. - disse Luana, professora de ciências.
Ainda com o amparo do professor Lilian pegou a mochila, tentando esconder a imensa dor que irradiava pelo corpo, e encarou a mulher. Lilian não chegara a ter aula com ela, mas todos os colegas de sala falavam muito bem dela. E agora ela sabia o porquê. Esta estranha a olhava com a mesma preocupação que Linda, não era uma simples representação de professora preocupada como já vira vários profissionais do ramo fazer. Mesmo assim não cedeu. Ceder seria piorar o que já estava ruim. Com o olhar ela pediu a compreensão da professora e ela soube que ficaria tudo bem quando a outra suspirou.
-Está bem, mas temos que te levar ao hospital, pelo menos.
-O quê? - Stevan não entendeu o porquê da súbita mudança de pensamento da outra.
-Caso contrário chamaremos seus pais. Ok?
-Okay. - disse a jovem meio que a contragosto.
-Stevan, você está de carro hoje, também, não é? Se importa em nos dar carona até o hospital? Não acho que seria uma boa irmos de ônibus.
-Claro.
Lilian teve vontade de sorrir. Neste tipo de situação, ela pode ver um reflexo da hippie que todos diziam que a professora Luana já fora, também vira, mais uma vez, a preocupação que seu professor de matemática demonstrava para com os alunos. Logo em seguida a garota se sentiu culpada por não gostar de matemática.
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