Pulemos as horas gastas na trajetória até a clínica médica e o tempo de espera.
O médico que atendeu Lilian era um homem que não aparentava ter mais do que 35 anos, mas a quantidade de fios brancos em sua cabeça dizia o contrário ( ou ao menos que ele vivia uma vida muito estressada). O médico providenciou uma maca para a paciente e pediu vários exames que Lilian não se deu o trabalho de gravar quais eram, já Luana e Stevan deram um jeito para que a maioria dos exames fossem feitos quase que imediatamente, lá mesmo.
Depois de um raio-x, deixaram Lilian descansar num quarto com mais duas pessoas. Lá, sem adultos conhecidos, ela se permitiu chorar baixinho, para não incomodar quem quer que estivesse ali. Ela queria chorar até quase desidratar, mas por algum motivo as lágrimas não queriam sair, só uma ou outra se atreveram a tal, e de todos barulhos que ela podia fazer o único que saiu foi um suspiro.
Isso a surpreendeu e a deixou triste.
Ela não sabia estar tão conformada com a situação.
Pouco depois o médico apareceu carregando um envelope e ninguém precisava olhar para a cara de Luana para saber que eram as chapas que Lilian havia tirado.
-O QUE DIABOS ACONTECEU COM VOCÊ?! - Luana quis saber.
-Luana estamos em um hospital, fale baixo. - advertiu Stevan.
-Senhorita, tomei a liberdade de conversar com os seus professores para tirar algumas dúvidas, mas aparentemente eles estão tão confusos quanto eu. - o médico tirou as chapas dos envelopes e as colocou contra a luz - Felizmente seu acidente não parece ter causado danos aos seus órgãos ou ossos, mas há várias fraturas pequenas por toda a sua caixa torácica. - ele apontou alguns trincados - Nenhuma delas representa perigo, felizmente. Todavia elas podem não ser tão recentes para terem sido feitos hoje, mas algumas delas são recentes o suficiente para terem menos de um mês.
-E isso levanta a pergunta, como a senhorita se machuca tanto?
-Caçando briga com quem é mais forte. - respondeu sem exitar.
-Você não me parece o tipo de comprar brigas.
-Só quando meu orgulho está em jogo.
-E quando, exatamente, o seu orgulho está em jogo? - quem perguntou foi Stevan. A menina abriu a boca para responder, mas seu cérebro foi mais rápido, fazendo-a fechar a boca. - Lilian, eu te dou aula todos os dias e não me parece que você entraria numa briga à toa. Tão pouco consigo imaginar algum aluno querer te bater, por que você não nos conta o que está acontecendo para podermos te ajudar?
-Me ajudar…? - seus olhos se encheram d’água. Ela não estava acostumada com a gentileza sem segundas intenções de outros que não sua avó. - Então me deixe ir embora. Ficar aqui só vai piorar as coisas.
-Lilian.... - Stevan estava usando uma voz mais profunda, a que ele usava para repreender os outros alunos.
Alguns segundos de silêncio se passaram enquanto uma batalha de olhares era travada.
-Lilian - o médico tomou a palavra - mesmo que convença seus professores a deixar este incidente passar, eu, como médico, não posso deixar.
-Qual incidente? - ela olhou pela janela - Só consigo me lembrar de ter caído.
-Esta vai ser sua desculpa? Vai deixar seus agressores se safarem?
-Que agressores? - ela olhou o médico com olhos que imploravam compreensão.
O médico suspirou e lamentou ter pego mais um caso que os jovens acham saber o que é melhor para eles e não o responsável. Isso a machucou, mas Lilian tinha plena consciência de que se abrisse a boca tudo iria piorar.
Demorou até que Lilian fosse liberada. Mas ao menos ela conseguiu carona até em casa. Ela agradeceu ao professor e adentrou naquela fria construção.
-Tá atrasada. - ela foi recebida pelas frias, porém alegres palavras do pai. - Onde você esteve?
-É, onde você tava? - perguntou Rafael.
-Quando estava saindo do colégio alguns professores me chamaram pra conversar.
-Hunf. Espero que não tenha que ir a escola por causa de mau comportamento seu. Você devia seguir o exemplo do seu irmão.
-Não se preocupe. O senhor não vai ser chamado. - ela esperava que não.
-Que bom. Agora vamos ao que é importante: o aniversário do seu irmão já está chegando. E sua mãe e eu queríamos fazer uma festa pra compensar o fiasco do ano passado….
Com “fiasco do ano passado” ele queria dizer: nem todos os amigos de Rafael terem comparecido a festa.
Paulo começou a tagarelar sobre o que já estava decidido e algumas ideias que Sandra tivera. Volta e meia Rafael abria a boca para fazer comentários dispensáveis ou exigir alguma coisa a mais. E quando o relógio de parede mostrou seis horas Lilian se despediu dizendo que eles deveriam separar a parte dela, pois ela tinha que ir trabalhar. O que foi uma desculpa conveniente, porém não exatamente o que ela precisava no momento.
Com certo pesar a menina foi até a pizzaria a dois quarteirões de distância e se apresentou para o trabalho. Ela costuma trabalhar como garçonete, mas às vezes ajudava na preparação da massa. Hoje, como o sorriso dela estava um pouco afetado pela dor, ela ficou na cozinha. Fazer a massa e montar as pizzas era um processo repetitivo que depois de três ou quatro vezes vira mecânico, mas mesmo assim ela não teve tempo para pensar. Devido a uma promoção maluca que o dono do estabelecimento inventou (peça uma e ganhe outra), o local estava cheio, melhor dizendo lotado. Estava saindo quatro vezes mais pizzas que o normal. Clientes reclamavam do tempo de espera, da cerveja que demorava, de tudo. E por algum motivo todas as queixas iam parar no ouvido dos cozinheiros, mesmo a de uma mulher que reclamou sobre a falta de papel higiênico no banheiro feminino…
Por volta das dez horas da noite, ela sentiu fome e, por algum motivo, as palavras do médico (sobre consumir mais cálcio e alimentos saudáveis) lhe veio à mente.
Ela aproveitou que estava na cozinha e preparou uma mini-pizza vegetariana com muito queijo e colocou para assar num espacinho vazio no forno. Não que esse fosse realmente seu jantar. Ela só estava com vontade de comer pizza. Mais tarde seu chefe viria com suas frutas (apesar de que ela se sentiu tentada pedir alguma coisa mais… reforçada de janta hoje).
Ela saiu da pizzaria, eram quase três da manhã, caindo de sono. Mas sua culpa vencia por pouco a vontade de dormir, por isso, após um banho gelado, ela revisou a matéria que vira nas aulas daquela manhã, por no máximo 40 minutos. Depois ela desmaiou em cima do caderno de biologia. Na manhã seguinte ela releu todo o conteúdo de biologia como punição, para em seguida olhar seus e-mails. Tirando os spams somente dois lhe chamou a atenção: um de Giulia e outro de Ingrid (a representante de turma). Giulia lhe contava que logo ela teria um descanso da faculdade e, então, ela poderia ser uma amiga “decente”. Lilian respondeu dizendo que estava tudo bem e que esperava um dia, também, ficar ocupada com a faculdade. Já Ingrid escreveu uma mensagem prática, passando as páginas e os exercícios que deveriam ser feitos para as próximas aulas e perguntando o porquê de Lilian ter matado as aulas da tarde, embora esta última parte tenha sido só por educação, ainda assim, Lilian respondeu que caiu feio da escada e os professores que viram o ocorrido acharam melhor levá-la ao médico. Mesmo que não fosse verdade, ajudaria à construir o cenário imaginado. Afinal, não dizem por aí que uma mentira contada mil vezes vira verdade?
Durante o almoço Sandra explicou para sua primogênita o que foi decidido para a festa do caçula: na próxima sexta-feira, a noite, eles dariam uma festa “surpresa” (sim, ela disse surpresa), a qual não teria adultos e nesta festa Lilian deveria atuar como garçonete. Depois, no Domingo, eles fariam um churrasco para a família, e, nesta festa Lilian compraria os refrigerantes, carvão e, também, seria garçonete. Lilian, por sua vez, tentou negociar para não trabalhar como garçonete na festa, e, sim num trabalho de freelancer; mas as cabeças de seus pais já estavam feitas e seus argumentos não valiam mais do que pérolas atiradas aos porcos. Por esta razão a garota passou boa parte da tarde tentando inventar uma desculpa para não poder trabalhar na sexta e no domingo, pois ir até o seu chefe e dizer: “Boa noite. Aqui, semana que vem eu não vou poder trabalhar na sexta e no domingo, porque é o aniversário do meu irmão mais novo e meus pais querem dar duas festas pra ele” parecia muito com uma desculpa esfarrapada.
Por sorte, o grande problema com relação ao trabalho foi resolvido. O chefe de Lilian, Daniel, deu a notícia aos funcionários que haviam chegado mais cedo na pizzaria, que, não por um acaso eram os mais antigos de lá.
-Vamos fechar a pizzaria! - disse ele com um sorriso escondido. Ao ver a cara de pasmo e as interjeições dos funcionários, o sorriso dele se alargou. - Não por muito tempo, mas vamos.
-Como assim? - perguntou um pizzaiolo.
- Minha mulher e eu estávamos discutindo e achamos que seria melhor termos uma lanchonete.
-E por isso vamos fechar? - perguntou a menina do caixa.
-Mais ou menos. Vamos fechar no final de semana que vem. No sábado para trazer o designer de interiores e o mestre de obras, no domingo para treinar os cozinheiros a fazer outros pratos. Obviamente, ninguém será obrigado a nada.
-Vamos fechar só por um final de semana? - perguntou a menina do caixa.
-A princípio, sim. Queremos dar a ideia de estamos passando por dificuldades e estamos desesperados. - quase foi possível ouvir um click vindo na cabeça de muitos ali. Agora eles entendiam a promoção maluca que tiveram no dia anterior - Por isso estamos espalhando uns boatos por aí.
-Depois fecharemos para reforma. O que acredito que não deve ser mais que uma semana e meia. E então teremos novos uniformes, novo visual, novo cardápio… Novo tudo! - em momentos como este, quando Daniel ficava eufórico, Lilian não conseguia deixar de pensar que talvez ele não fosse hétero. Quero dizer, todos ali já haviam visto sua esposa e filhos, mas seus gestos extremamente afeminados a faziam achar que ele jogava no outro time. Mas ela já perguntara a Daniel e recebeu um “não sou gay” como resposta.
-E as pessoas pensarão que também terá nova direção, o que vai atrair clientes novos e trazer alguns dos antigos... - Lilian verbalizou seus pensamentos.
-Exatamente! - disse Daniel com entusiasmo e um brilho inocente nos olhos.
Daniel explicou que estava pesquisando um novo cardápio que, ainda teria as pizzas mais populares do estabelecimento, pediu ajuda para não deixarem nenhum dos free-lances que não estavam ali presentes saberem da novidade e discutiu com os cozinheiros se eles iriam querer continuar a trabalharem para ele ou se queriam ir para outro lugar, para trabalharem só com pizzas. Um deles disse que queria continuar ali, o outro disse que precisava pensar.
Assim que os funcionários começaram a se dissipar, Lilian perguntou ao chefe se poderia tirar a sexta de folga, pois era aniversário de seu irmão mais novo e seus pais queriam fazer uma festa surpresa. Foi inevitável, mas mesmo assim Lilian não queria isso, o olhar que Daniel dirigiu a ela foi como se esperasse mais dela e por isso a havia contado o plano. Ao receber este olhar ela quis lhe contar a verdade, mas o problema era dela e nada de bom vem quando alguém tenta ajudá-la, por isso se manteve calada com a dor de desapontar alguém que a havia ajudado de diversas formas, sem ao menos saber como.
Para compensar por sexta-feira, a menina decidiu dar 120% de si todos os dias em que ainda pudesse trabalhar ali, neste ambiente acolhedor facilmente confundido com seu lar.
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