A semana passou num piscar de olhos e antes que Lilian pudesse perceber já era sexta novamente. Hoje era a grande noite, a noite que seu irmão teria a festa dos sonhos da maioria dos adolescentes e que ela ficaria como garçonete, mas que muito provavelmente ela também ficaria responsável pela arrumação da bagunça depois da zorra. E para fazer o dia ainda melhor, pouco antes de ir para a aula Rafael a parou e lhe passou um de seus telefones para ela. Ele não disse nada. Nem precisava. Tendo vários anos em experiência, ela já sabia que isso significava que o caçula teria prova e se ela quisesse que sua vida continuasse fácil do jeito que estava -sim, ela podia ficar pior…- era função dela fazer com que ele se saísse bem no teste. Ela não sabia de que era a prova, normalmente Rafael avisava, mas passara anos de sua vida lendo o mesmo conteúdo duas vezes, não para ter certeza de que aprendera. Não. Era por causa de seu irmão mais novo. Quando Linda tomou sua guarda ela se viu livre disso, mas quando voltou a casa dos pais… O único ponto bom que ela conseguia pensar era que, ao menos assim, havia à possibilidade dela não precisar de cursinho no próximo ano.
No início do segundo horário ela sentiu o telefone vibrar. Era uma mensagem com a foto da prova de química. Quatro questões. Com um suspiro ela deixou o telefone ao lado do caderno, olhou para o quadro que ainda só tinha o título da matéria e o começo de um desenho esquemático de um olho, um espelho e vetores, depositou a caneta ao lado do caderno, virou a página e começou a resolver as equações e problemas propostos. Por sorte a matéria de logaritmos tinha acabado e Rafael só à veria no ano seguinte, mesmo tendo demorado quase toda a aula para resolver as questões, uma sensação de orgulho encheu o seu peito quando enviou a foto com as respostas. Ela se lembrava de como resolver problemas de sistemas lineares! Mas para evitar uma cena como a da semana passada desta vez ele deu as respostas corretas, ou pelo menos achava que sim.
No meio do terceiro horário Sidelma (uma funcionária da escola que ninguém sabia realmente qual era a função dela, mas que muitos alunos - e alguns professores - a consideram um espírito protetor da moral do século XIX) chamou Lilian para a sala da Sinhá (a coordenadora que muitos achavam ser a diretora - professores incluso). A agitação tomou conta da sala, Lilian que nunca fazia nada de errado e que sempre tirava notas boas estava sendo chamada na sala da Sinhá! Todos se acalmaram aos poucos, com o pedido do professor e ao verem a calma no olhar da aluna em questão. Olhar adquirido em anos de prática. Olhar que em nada refletia seu estado mental. Porque o sua inquietação era quase absoluta: sua mente vagava entre Stevan e Luana terem contado a “diretora” o incidente passado; os professores terem descoberto que ela passava cola para o irmão; terem descoberto seu vínculo com a máfia italiana… Sua mente estava prestes a entrar em curto quando estava na porta da coordenação.
-Licença, Sinhá. - disse com a voz fraca, revelando seu medo.
-Entre.
Ao entrar na sala, ela encontrou a “diretora” sentada em sua cadeira confortável em frente ao computador, sem o freecell aberto - o que significava problema.
- Sente-se. - pediu a coordenadora. O telefone tocou e a mais velha atendeu, fazendo um sinal com a mão livre para que a aluna esperasse um minuto.
Enquanto ouvia a mulher a sua frente responder inúmeras respostas monossilábicas, a mente de Lilian quase alcançava o ponto de ebulição. Fato que apenas piorou sua condição mental, apesar de aliviar algumas opções, foi a chegada de Rafael a sala. Ela rezou pedindo para que todos os anos em que ela teve que fingir estar bem, enquanto sofria uma enorme dor - aparentemente por causa de algumas costelas quebradas, segundo o bom médico o qual já esqueceu o nome - a ajudasse a esconder como ela realmente se sentia naquele momento.
O garoto não esperou ser convidado, ele logo foi entrando e se sentando. E apesar de sua cara calma e tranquila, como a de um garoto inocente, ele deixava transparecer um pouco do seu nervosismo ao bater a ponta do dedo indicador na perna. O ato involuntário, mas que causava calafrios à irmã mais velha.
Lilian mal conseguia ouvir as palavras da “diretora”, mas ela seguiu o irmão quando ele se levantou e saiu da sala.
-Que droga! Aposto que aquela velha escolheu morrer hoje só pra atrapalhar meu aniversário. - disse Rafael com ódio evidente, ao se aproximar da escada.
-Você acha mesmo que isso é possível? - disse Lilian incrédula. - O quanto você acha que o mundo gira ao redor do seu umbigo?
Rafael a encarou como se estivesse prestes a lhe quebrar o nariz, mas Lilian não se intimidou.
-O nosso mundo com certeza gira. - talvez fosse pelas palavras ou pela intonação, mas Lilian suspeitava que o irmão quisesse lhe ferir através delas, embora, neste momento, ela estava perdida demais para ter certeza. Até que a confirmação veio: - Tanto faz. Pelo menos assim ganhei uma desculpa pra ir pra casa mais cedo. - disse subindo as escadas, deixando a irmã pra trás.
Pasma com a atitude do irmão a garota se sentou num banco entre as escadas que levavam as salas de aulas e a saída e pôs-se a pensar. A mente da garota estava a mil! Diversos pensamentos lhe passou pela mente, coisas de como ela sentiria saudades à como sua vida seria um inferno daqui pra frente - ela chegou a pensar em suicídio. Ela não achava possível existir um futuro para ela sem a avó ao seu lado, então pra que continuar viva?... A menos que a “diretora” estivesse mentindo, aí quem seria abandonada seria Linda e isso seria imperdoável. Mas por que Sinhá mentiria? Ela não sabia.
“Já sei! A vovó deve estar com muita saudade e deve ter convencido algum enfermeiro (talvez Caio ou Laura) a contar uma mentira pra escola pra me liberar! Deve ser isso.”- pensou. Ela ignorava a parte de sua mente que dizia que talvez fosse verdade e que ninguém contaria este tipo de mentira, principalmente o pessoal da casa de repouso onde Linda ficava. Ela se agarrava esta esperança com unhas e dentes.
-Lilian? Tudo bem? - era aquela voz de novo.
-Uhum. - disse erguendo a cabeça.
Stevan não acreditou nem por um segundo nesta resposta oca. Por motivos óbvios, ele não comentou, mas como ela estava agora, fazia parecer que na semana anterior ela apenas tinha escorregado e caído, mesmo assim, agora, ela parecia ter visto o fantasma do natal futuro e o que lhe fora mostrado estava beirando o fim do mundo.
A garota enfiou a mão no bolso da calça e retirou algumas moedas e uma nota, ela contou o dinheiro, fechou os olhos e pareceu pensar. Stevan quis dizer alguma coisa, animá-la, mas o que poderia dizer? Até semana passada ele achava que a aluna tinha uma vida boa e bem equilibrada… ou talvez muito voltada aos estudos, mas nada preocupante. Porém agora ele mal conseguia olhá-la sem sentir dó, piedade.
-Professor, o senhor pode me emprestar R$0,55? - perguntou a garota sem se preocupar muito com o que o professor acharia, ela estava muito ocupada negando a realidade.
-Pra quê? - a pergunta foi meio instintiva, mas ele não tinha intenção de negar o dinheiro.
-Sinhá me liberou e eu vou ter que passar num lugar antes de ir pra casa e falta R$0,55 pra passagem de volta.
-Não dou aula neste horário e depois é o intervalo, eu te levo pra onde você quiser. - ele estava preocupado em deixá-la pegar um ônibus naquele estado.
A menina não tinha forças para contra-argumentar, melhor ela estava grata pela oferta, pois de carro seria mais rápido.
-Obrigada. - a sombra de um sorriso se formou - Vou pegar o meu material.
A garota subiu as escadas o mais rápido que conseguia e foi para sala pegar seus pertences. Os colegas, curiosos, perguntaram o que havia acontecido, mas a menina só disse que precisava ir embora. Enquanto isso o professor foi perguntar a Sinhá se Lilian havia sido realmente liberada e em sua confirmação a coordenadora deixou escapar que a avó dela morreu e que havia liberado os irmãos, ao ouvir a mulher a sua frente, ele disse que ele não acreditar que Lilian estivesse em condições de ir a qualquer lugar e que por isso a levaria até sua casa, mas estaria de volta até o final do intervalo. A coordenadora não se opôs.
Ele esperou pela garota no final da escada e quando eles passaram pela portaria para ir em direção ao estacionamento que o professor costumava usar, a recepcionista comentou, por alto, que Rafael já havia ido embora. Lilian estremeceu de raiva, o que não passou despercebido ao homem e mulher ali presentes, felizmente ambos foram educados o suficiente para não comentarem.
Lilian se surpreendeu ao descobrir que iriam de moto, mas ela logo se lembrou de um grupo de garotas falando sobre tentar se aproveitar que a moto do professor tinha estragado e que ele estava vindo de carro, para pedir carona. Então não comentou.
Lilian guiou Stevan pelo caminho que achava ser o mais rápido. Ela nunca fora lá de carro (ou moto), então o percurso não divergiu muito do que o transporte público faz. Tirando as instruções, eles permaneceram em silêncio, dando tempo a jovem para remoer seus pensamentos. E, involuntariamente, ela apertou mais o abdômen do professor ao se aproximar da casa de repouso, ele se incomodou, mas deixou estar.
Não demorou muito para chegarem e, talvez por causa do horário, o estacionamento estava vazio. Não que a garota se importasse ou percebesse. A mente dela estava a mil. Pesadelos rondavam-na em forma de pensamentos e possibilidades.
Ela desceu apressada da moto e foi correndo até a recepção, Caio estava lá e disse que Linda ainda estava no quarto. Contra as regras da instituição, Lilian saiu correndo pelos corredores em direção ao aposento da avó, alguns gritaram com ela, mas a maioria sabia o que estava acontecendo e deixou a bronca para a pequena infração para depois, se houvesse um depois.
As lágrimas em seus olhos queimavam, mas ela não as deixava escorrer, afinal ainda poderia ser uma brincadeira de mau gosto, não é? Mas infelizmente não era. E uma parte dela já sabia disso. O que não impediu o choque e desespero da garota ao ver a única pessoa de sua família, com quem se importava, morta. As lágrimas que ela tentava impedir de escorrerem faziam caminhos pelas bochechas da jovem.
-Vovó...?- ela disse fracamente, depois de congelar na porta - Vovó! - ela correu para abraçar o corpo da velhinha, frio. - Vovó acorde! Não precisa mais fingir, eu já cheguei! - mesmo com o corpo gélido em suas mãos como prova, a garota recusava a realidade. - Vovó, isso não tem graça!
-Se acalme, Lilian. - disse Caio ao colocar a mão em seu ombro. Quando ele chegou alí? Ela não fazia ideia, mas levando em consideração que ela correu até o quarto e que ela estava gritando… não seria surpreendente se o diretor da casa aparecesse.
-Eu estou calma! É só que... a vovó não está acordando. Por que ela não está acordando?
-Lilian, sua avó, ela… - o professor começou a falar.
-Ela está viva! Afinal de contas, ela disse que iria na minha formatura e que me veria com aqueles vestidos ridículos…- a voz da garota começou a falhar - né, vovó? Você disse que me daria uma pulseira quando entrasse na faculdade… - ela estava chorando feito uma criança. - Ela disse que tricotaria luvas pra mim…
Outros funcionários e idosos apareceram para bisbilhotar o que acontecia.
-Senhorita Lilian, - chamou o médico que era responsável por Linda - eu preciso acertar algumas coisas com os responsáveis pela sua avó. Você sabe me informar se sua mãe está vindo?
Lilian quis gritar com o médico, dizer que sua avó estava viva e que tudo isso não passava de um infeliz engano, que eles a haviam examinado errado, porém a pele fria em contato com a dela esbofeteava-lhe a verdade.
-Eu…- a menina juntou todas as suas forças para se levantar e começar a falar. - Eu sou a única parente dela viva. - declarou a menina secando os olhos com força, deixando o professor confuso e os enfermeiros constrangidos.
-Agora não é hora pra isso. Precisamos de um adulto para arcar com a papelada.
-Faço aniversário em Dezembro, logo serei maior de idade. Posso pagar pelas despesas. - acrescentou ao ver o médico abrir a boca. Ela não queria envolver os pais nisso, seria humilhante demais. Sua avó acharia estranho um casal de desconhecidos cuidando da papelada da casa de idosos. E, se o problema fosse dinheiro, ela tinha uma reserva, se não fosse o suficiente ela trabalharia mais, pediria emprestado para Lucca, faria qualquer coisa; mas não deixaria estranhos fazerem algo que ela não sabia se os deixaria feliz ou tristes.
-Ainda assim, não está qualificada como representante legal.
Tremendo, Lilian finalmente soltou a mão de sua avó e encarou o médico de jeito que não tinha coragem de fazer com o irmão.
-Minha avó é minha representante legal e não há mais ninguém aqui. - sua garganta tremia em emoção, em raiva, em agonia, em medo - Se eu não cuidar da papelada… ela ficará aqui, até… - é, realmente ela não conseguia imaginar um cenário onde Sandra viria dar baixa nos papéis - quando?
O médico soltou um suspiro, algo como se se lamentasse que chegasse a este ponto, mas ao mesmo tempo soubesse que era assim que terminaria.
-Certo. Por favor, me siga. - a menina se despediu do professor, que disse que viria buscá-la quando terminarem as aulas da tarde. Antes de sair da sala, um senhor, que estava internado naquele lugar a mais tempo do que Linda, deu um abraço bem apertado - ou tanto quanto ele conseguia - na jovem. Ao retribuir o gesto, Lilian se lembrou de uma vez que a avó comentou que o senhor Silveira - o homem que a estava abraçando - estava cortejando-a. Na época ela, Lucca e Giulia acharam uma gracinha, todavia não acreditaram, e agora a jovem se arrependia de ter duvidado.
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