Uma semana havia se passado desde o fim da guerra, desde a execução pública do último inimigo de Hraelund. Darl esperava, assim que retornasse a Weidmar, retomar sua rotina antiga e aproveitar cada momento ocioso com a princesa por quem era tão afeiçoado.
Os últimos dias, entretanto, mostraram-lhe mais uma vez que a realidade raramente buscava respeitar suas expectativas.
Eirkia passava grande parte da tarde a andar pela cidade com Skeivarr, ou às vezes até dedicava um tempo dentro de sua casa com sua família. Ela levava Darl consigo nessas ocasiões, mas sua proximidade com o rato cada vez mais fazia o menino dragão sentir-se deslocado. Quase indesejado.
Ambos conversavam um com o outro com tal fluência que o novo Hraekhan via-se forçado a tentar introduzir-se nas conversas de tempos em tempos em um esforço para não ser esquecido, como uma sombra que seguia os dois ao longo das ruas pavimentadas. Ainda assim, mesmo quando julgavam seus comentários relevantes o suficiente para responder de alguma forma, logo outro tópico era introduzido e o garoto deixado de lado outra vez.
Outrora, ele pudera aproveitar a companhia da princesa despreocupado. Afinal, mesmo que apenas concordasse com o que ouvia, ela continuaria a introduzir assuntos e a entreter seus ouvidos como uma serena melodia que se acabaria no fim da noite apenas para recomeçar no dia seguinte. Agora, contudo, via que sua incapacidade de levar conversas adiante era um detrimento grande em sua relação com Eirkia.
Mas seria ele mesmo o maior culpado, ou Skeivarr, por surrupiar toda a atenção para si?
Darl deixava o salão principal e se movia para a varanda do castelo enquanto refletia sobre o assunto. Ele havia almoçado não muito atrás, precedido ― como de costume, para evitar a companhia excessiva ― pelos demais habitantes do castelo. Contudo, ao invés de deixar o interior do edifício, Eirkia havia retornado à sala onde recebia aulas de Szeidung.
Normalmente, suas lições apenas aconteciam durante a manhã. Porém, desde a semana anterior, por razões desconhecidas, também passaram a se estender mesmo após o almoço. Isso significava que, assim que estava livre, como restava pouco tempo até o fim do dia, imediatamente partia para a cidade ver Skeivarr, o que resultava em ainda menos tempo exclusivo para Darl.
Era realmente frustrante.
― Aí tava você! ―, de repente, chamou a voz que só podia pertencer a uma pessoa.
Darl se virou a sua direção e viu que, do portão do castelo, vinha saltitante a princesa que tanto ocupava sua mente.
― Estava pensando em passar no mercado hoje. ―, ela continuou. ― Skeivarr também disse que ia procurar trabalho lá.
― Skeivarr...
― Vamos!
Sem esperar por uma resposta, a alegre princesa, agora livre dos grilhões da responsabilidade, fez seu caminho em direção ao portão da muralha que dava à cidade abaixo. Foi então que, ao notar que não estava sendo seguida, virou-se de volta com uma expressão confusa.
― Não vai vir?
― ... Não. ―, Darl encarou o chão. ― Pode ir sem mim hoje.
― Tem certeza?
Eirkia retornou e pegou a mão do amigo, que se viu forçado a erguer os olhos outra vez e lhe encarar.
Por um momento, Darl pensou que talvez pudesse ser uma boa ideia ir junto. Contudo, logo lhe veio o pensamento de que, caso acompanhasse a princesa, o mesmo de sempre apenas aconteceria outra vez.
Ele meramente seguiria a dupla como uma sombra, até ser inteiramente calado pela própria frustração..
― Sim... ―, por fim, respondeu, e teve de desviar o olhar mais uma vez.
Hesitante, Eirkia soltou sua mão, deu dois passos para trás, virou-se e seguiu novamente para a saída. Por um momento, quase pareceu melancólica, mas não havia razão para tal.
A presença ou ausência de Darl faria diferença nenhuma para a princesa e seu amigo, afinal. Se tivesse ido, apenas acabaria por ser subjugado pela intimidade dos dois.
Se fosse sincero consigo mesmo, podia dizer sentir que aquele jovem ex-soldado estava a roubar sua noiva.
Mas, no fim, não importava. Mesmo que eles fossem bons amigos agora, chegaria a hora que os deveres de Eirkia falariam mais alto, e ela retornaria aos seus braços. Era para isso que Darl estava lá, afinal ― para estender o legado da Família.
Assim, Darl se conteve a descansar as costas contra a parede da varanda e admirar a vista daquele pequeno paraíso que se estendia ao redor do castelo até as sólidas muralhas que o separavam da cidade abaixo. A primavera havia começado, a neve derretia e, aos poucos, e verde e colorido jardim mostrava-se como uma lembrança de que, mesmo após o mais frio inverno, cor ainda viria a renascer no início de um novo ano.
...
O fim do dia se aproximava. Por trás das montanhas, se escondia o brilhante sol que pintava em um profundo vermelho o céu do crepúsculo.
Foi na solidão dessas cores que Darl se lembrou de que não apreciava muito longos períodos apenas consigo mesmo. Mas essa era a única companhia que ele tinha conforme andava sobre as trilhas de pedra que cortavam a baixa vegetação.
A grama que se esticava sobre as últimas camadas de neve cariciava seus pés. Botões que em breve desabrochariam em flores coloriam e pontuavam o mosaico verde e branco.
Darl se curvou e esticou a mão. Então, arrancou da fina haste um desses botões, que se partiu entre seus dedos em pequenos fragmentos amarelos que poderiam um dia haver crescido e se transformado em belas pétalas. Mesmo que seu futuro pudesse ter sido promissor, continuava a ser uma existência tão efêmera, tão frágil, que um mero soprar do vento poderia arrebatá-lo de si.
Quando o garoto estivera na expedição, a todo momento ocupavam sua mente abundantes fantasias do dia que retornaria a Weidmar e gozaria da companhia de Eirkia. Agora que estava na volta na cidade, entretanto, havia recusado essa oportunidade. O que ele estava fazendo com sua vida, exatamente?
Era mesmo preferível a solidão objetiva à que sentia quando lhe restava pouco senão observar em silêncio outra pessoa aproveitar a companhia que queria para si?
Incapaz de encontrar respostas satisfatórias às perguntas que fazia a si mesmo, Darl deixou escapar um longo suspiro.
― Não foi com a princesa hoje? ―, perguntou outra voz familiar que se aproximava.
Quando se virou e viu sua fonte, o garoto identificou a forma do general de cabelos e barba grisalhos que andava em sua direção.
― Ah... Não... Hoje não.
― Hmm...
Aston fechou os olhos, cruzou os braços e assentiu para si mesmo, como se pensasse profundamente em algo. Até que retornou ao mundo físico com um leve sorriso no rosto. Algo dava ao garoto um mau pressentimento sobre aquilo.
― Você parece preocupado com algo. Que tal praticar esgrima um pouco?
― Ah, não precisa... ―, Darl não via qualquer ligação entre as duas coisas.
― Vamos! ―, agarrou-lhe o braço e seguiu para a área de treino. ― Você tem nada para fazer, de toda forma.
O garoto se sentiu prestes a perguntar se o general, ao contrário de si, não tinha seu trabalho, mas se conteve.
Aston desembainhou um par de espadas que descansavam apoiadas contra a baixa cerca de madeira, uma das quais entregou a Darl.
― Ainda se lembra da postura?
― ... Mais ou menos.
Com um pouco de dificuldade, o garoto posicionou sua espada entre si e o inimigo, pé direito à frente, mão esquerda nas costas.
― Bom. ―, assentiu o homem. ― Vamos devagar dessa vez, hein?
― Uh... ―, Darl se lembrou da vergonhosa performance que foi sua prática uma semana atrás. ― Uhum.
Ele não necessariamente queria mostrar-se melhor desta vez. Na verdade, ele tinha nenhuma vontade de praticar, mas via poucas opções além de fazer como esperado de si. Assim sendo, ele podia ao menos permanecer na zona de conforto defensiva.
Aston foi o primeiro a se mover. Ele fez um corte horizontal não muito veloz, claramente não a dar tudo de si. Darl, por sua vez, conseguiu defletir o ataque, apesar de com movimentos um pouco desajeitados.
O mesmo se repetiu algumas vezes, e o garoto aos poucos sentiu que se acostumava mais com o peso a espada, ao ponto de também deferir alguns ataques próprios esporádicos que, mais facilmente ainda, também eram combatidos. Os tinidos que ecoavam sempre que as duas lâminas se encontravam eram como uma simples troca de cumprimentos.
― Este foi seu décimo segundo inverno ―, observou Aston. ―, não foi, Darldollum?
― ... Sim senhor.
― Me diga... O que significa ser adulto para você?
A espada do general, aos poucos, parecia procurar brechas na defesa do adversário.
― Adulto...? Não é o que acontece com quem vive treze anos?
― Sim. Essa resposta não está errada. ―, riu. ― A partir dos treze anos, é esperado que você já siga algum ofício, tenha decidido se vai se mudar da casa dos pais, tenha uma noiva ou pretendente, e até pode responder por seus crimes, caso venha a cometer algum. Imagino que já saiba disso, certo?
― Sim, eu diria... E um Hraekhan também ganha uma espada ou coisa assim, não é?
Conforme os ataques do inimigo tornavam-se mais ágeis, Darl se viu forçado a recuar aos poucos.
― Exato. Vejo que já te disseram. Mas por que treze, exatamente?
― ... Eu... não sei...?
― Bem, nem sempre foi assim. Até algumas gerações atrás, você era considerado adulto aos quinze. A mudança foi feita na época de Khanlof Quarto, como um jeito de lidar com a crise de recursos do fim do império, e nunca voltamos atrás mesmo depois que Os Impérios se foram. Mas nem tudo mudou junto.
Ao ver que já beirava os limites da área de treino, e que logo bateria com as costas no cercado que a delimitava, Darl começou e tentar contornar o adversário.
― Um soldado, por exemplo, ainda termina seu treinamento aos quinze. Dois anos fazem muita diferença na capacidade de um guerreiro, afinal. Muitas pessoas escolhem se casar nessa idade também. É claro, se sua família assim escolhesse, você já podia nascer com uma noiva arranjada, mas cada caso é um caso.
― E... qual seria o caso dos Hraekhan?
― Bom ver que ainda está prestando atenção. Veja, Hal não queria forçar a irmã, e deixaria que um dos dois fizesse a proposta quando sentisse que chegou a hora. Mas, se nenhum dos dois tomar a iniciativa até lá, talvez arranje o casamento de vocês para quando os dois fizerem quinze.
O décimo segundo verão de Eirkia seria o próximo, o que significava...
― Isso seria... Em mais de três anos...?
― Decepcionado? ―, o general gargalhou. ― Bem, dependendo do quão desesperado fique, talvez até antes. Mas espero que não tenha se esquecido do que eu te disse na outra vez que praticamos.
― O que me disse...?
O novo Hraekhan vasculhou suas memórias por alguma significado para as palavras de Aston, quando foi interrompido por uma voz estranha.
― Senhor Darldollum! ―, ela chamou.
Ambos baixaram suas espadas e o garoto se virou para a direção do castelo. Foi quando notou que de lá vinha um homem que identificou como um servo.
― Senhor Darldollum ―, o homem parou diante do campo de treino. ―, peço que venha comigo. Lorde Hallerik confiou a mim prepará-lo para o jantar.
...
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