― Por que não Darldollum? ―, sugeriu Murvard. ― Certamente, o Hraekhan a casar-se com a princesa merece um assento adequadamente importante.
Darl sentiu que ia engasgar-se com a comida, mas, com os olhos já lacrimejantes, conseguiu alcançar seu copo de vinho e deu um grande gole a tempo de não começar a tossir constrangedoramente.
― Não ―, riu Eiser enquanto observava o garoto ao lado com o canto dos olhos. ―, tenho certeza de que nossa majestade deseja mantê-los bem perto.
― Vocês abusam de minha boa vontade, senhores. ―, brincou o jovem rei. ― Pensei que devêssemos escolher alguém capaz de mudar nossa imagem ao sul.
― Eles agora são parte de Hraelund ―, acrescentou Aston. ―, mas ainda precisam deixar de nos ver como inimigos.
― Especialmente quando são súditos de quem juraram exterminar. ―, o barão esguio apontou para o negro cabelo que crescia sobre a própria cabeça.
― Talvez nem todo Hraekhan tenha o dom para discursar. ―, riu o gorducho. ― De toda forma, eu queria recomendar meu primo, Tristan.
― Você quer mesmo tomar o reino com sua família, Murvard. ―, debochou Eiser. ― Mas devo reconhecer que o homem sabe falar em público. Ele foi o mestre de cerimônias nos últimos jogos, não foi? Lembro do grito que soltou quando sua égua ganhou. Pareceu até legitimamente surpreso.
― Receio que as habilidades necessárias para gerir uma cidade não sejam as mesmas para narrar competições de cavalos. ―, ressaltou Szeidung.
― Quando o assunto é gestão, ninguém é suficiente para você, Maleovik. ―, indagou Murvard enquanto lentamente balançava a cabeça. ― Não é à toa que vive mergulhado até a cintura nos cofres do reino.
― Pelos boatos que circulam, ultimamente o ouro não deve passar mais dos tornozelos. ―, comentou o outro barão, que enchia seu copo novamente de vinho. ― E eu que estava pensando em finalmente cobrar pelos soldados que emprestei nos últimos anos, agora que entramos em tempos de paz.
― Vamos! Você não está sugerindo ser recompensado com favores, está?
― Você me magoa, Murvard. ―, bebeu um gole. ― Apenas pensei em indicar um sobrinho meu. Nada mais.
― Sempre podemos subir ao cargo alguém da corte do rei antigo. ―, sugeriu Aston. ― O povo estaria mais inclinado a confiar em um rosto conhecido ao de um estrangeiro.
― E deixar que eles mesmos se governem? Já temos uma província independente entre nós e Alkerfell. Sabos já pode estar conspirando contra nós neste exato momento, até onde sabemos.
― Este inverno foi duro para Lendal. ―, disse Szeidung. ― Da forma como a cidade foi deixada, agora é nada além de um alvo fácil aos reinos vizinhos. Tudo indica que Vizar Sabos considera submeter-se a Hraelund em breve.
Darl, que cutucava com a faca sua última fatia de carne enquanto se perguntava se a comia logo ou continuava a esperar, já não podia acompanhar aquela conversa que parecia trocar de tópicos tão frequentemente quanto de interesses. De toda forma, não mais aparentava possuir qualquer atenção direcionada a si, então ele nada tinha para se preocupar. Afinal, os assuntos do reino não eram assuntos seus.
Com nenhuma escolha senão aguardar pelo fim do banquete, pois sentia que não seria adequado deixar a mesa antes dos demais, o garoto buscou um vislumbre da princesa sentada à sua direita. Ela, pouco diferente de si, corria com uma fatia de cenoura espetada pelas pontas do garfo no fundo do prato em círculos.
Até então, o garoto meramente se contentava com formas aleatórias. Contudo, ao notar a perfeição dos círculos que a cenoura ao lado marcava nos restos do molho no fundo do prato, pôs-se a fazer triângulos. Se algo podia equiparar-se à curva sem começo nem fim, seria a simetria do esbelto trio de linhas.
Quando olhou para o lado novamente, contudo, viu que a cenoura de Eirkia havia se tornado uma adversária mais formidável do que esperava, e traçava um inigualável quadrado sobre o fundo da louça. O rosto da princesa, enquanto isso, exibia apenas um olhar desafiador. Havia uma forma de entendimento silencioso entre os dois.
Em uma última tentativa de manter sua posição, Darl tentou prosseguir e traçar uma figura de cinco lados cujo nome nem mesmo conhecia. Contudo, seus esforços resultaram somente em formas abstratas pouco regulares. Por fim, soltar o garfo foi sua forma de admitir derrota. Ainda assim, haver perdido aquela batalha pouco lhe desalentava, pois agora podia ver o sorriso que timidamente se estampava na boca de sua rival.
O garoto estava para se dar de satisfeito com a curta troca, quando viu o garfo da princesa se mover outra vez. Diferente de antes, entretanto, a forma como agora repetia linhas organizadas no fundo do prato aparentava ter mais significado do que as vagas formas geométricas anteriores. Ela parecia desenhar runas.
Darl nunca tivera a necessidade de ler antes, e assim jamais usara o conhecimento da escrita que Eirkia havia lhe ensinado no inverno, mas sentia que reconhecia os símbolos que se formavam. Era uma palavra curta, uma saudação casual.
"Olá", ela escrevia.
Logo ele também se viu impelido a responder, e vasculhou suas memórias pelas runas adequadas para as palavras que queria dizer. Entretanto, sua falta de prática logo se mostrou um empecilho e teve que se contentar com outra palavra tão simples quanto a que havia acabado de ler.
"Oi", escreveu com sua fatia de carne.
Em seguida, mais runas formaram-se do rastro imaginário deixado pelo legume na ponta do garfo.
"Tédio", dizia a cenoura.
"Sim", concordou a fatia de carne.
"Quero ir."
"Também."
Darl já se orgulhava de sua capacidade de ler e reproduzir runas, especialmente daquela forma, até que viu uma expressão confusa no rosto de Eirkia. Poderia ele ter cometido algum erro?
Ele queria simplesmente perguntar o que havia acontecido, mas até mesmo um sussurro poderia vir a ser indesejável naquele momento. Sem muitas escolhas, o garoto tentou escrever a mesma palavra mais uma vez, mas a mão da princesa parou a sua.
Em busca de respostas, ele ergueu os olhos em sua direção, quando notou que o jovem rei sentado à cabeceira tinha o olhar sobre si. Aparentemente, haviam sido descobertos em sua comunicação silenciosa.
Enfim, Darl acabou por levar à boca e comer a fatia de carne que por esse curto período de tempo acompanhara-lhe em árduas batalhas e complexas trocas de informação.
― Seja como for, o ano apenas começou. ―, Hallerik deixou escapar um suspiro e retornou à conversa com os barões. ― Temos tempo para decidir. Asseguro-lhes que levarei em consideração as sugestões de ambos, senhores.
― Esperarei ansioso pela resposta. ―, sorriu o barão gordo.
― É uma nova era para Hraelund. ―, disse o outro. ― Tenho certeza de que histórias sobre esses últimos anos ainda serão contadas por muitas gerações.
Hallerik arrastou sua cadeira para trás e pôs-se de pé. Como os pratos de todos também estavam vazios, aparentemente, o banquete havia chegado ao fim.
― Agora que todos estamos satisfeitos, por que não descansamos? ―, sugeriu o rei. ― Nossos servos irão mostrá-los o caminho para seus aposentos.
...
O castelo tinha vários quartos vazios, um dos quais Darl estivera a ocupar desde o dia que chegara na cidade. Aparentemente, os dois barões ficaram hospedados em cômodos como esses durante a noite.
De toda forma, fora no jantar a última vez que lhes vira. Quando, na manhã seguinte, o garoto desceu as escadas para ter seu dejejum, a dupla de convidados já havia partido às suas respectivas cidades. Mesmo que estivessem fisicamente distantes, porém, e mesmo que houvesse entendido pouco das conversas que se deram durante o banquete, um ponto levantado ainda se recusava a deixar a mente do garoto.
Que papel ele viria a exercer naquele mundo?
Houvera uma porção de sua vida em que toda perspectiva que tinha pelo amanhã era a de viver o mesmo dia com a família outra vez e rezar para que não sucumbissem à fome no inverno. Então, desde o momento que esses dias foram perdidos, criara-se a expectativa de tomar o mesmo ofício de Gundar, o homem que lhe acolhera, e se tornar um soldado. Afinal, era obrigatório em Nouwer que todo homem servisse ao rei.
Contudo, até mesmo essa versão do futuro perdera-se quando se viram sem opções senão fugir em direção ao norte. Desde que chegara a Weidmar, enfim, tudo que parecia esperar-se de Darl era que os poderes do deus que falava consigo viessem a ser úteis, e que, graças à cor de seu cabelo, auxiliasse na perpetuação da Família Hraekhan. Mas, além disso, o que ele era naquele mundo?
Guardas protegiam os muros da cidade em troca do pagamento que garantiria a subsistência de si e sua família, assim como cozinheiros viviam de seus pratos e alfaiates de suas roupas. Os membros da corte, por sua vez, viviam de impostos, até onde podia dizer, mas ainda ativamente cumpriam atividades que lhes mantivessem onde estavam.
Hallerik regia suas terras, Szeidung lidava com finanças e aconselhava suas decisões e Aston tratava com assuntos relacionados a guerra. Heisondr lidava com forças menos objetivas, mas também trabalhava em pró do reino ao treinar os magos de batalha ― os quais Darl jamais vira em ação ― e fazer pesquisas como a do tipo que procurava compreender e fazer uso do poder do deus que vivia no corpo do garoto.
Até mesmo Eirkia, que tinha poucas obrigações senão comparecer esporadicamente a encontros que diziam respeito à Família, era lecionada por Szeidung diariamente em diversos assuntos que talvez pudessem vir a ser úteis no futuro. Como uma Hraekhan, afinal, ela lidaria com política no futuro, além de ser a próxima na linha de sucessão caso algo viesse a acontecer com seu irmão.
Mas e quanto a Darl?
Se não fosse pela boa vontade da própria princesa, ele nem mesmo saberia ler. Basicamente nenhum conhecimento era confiado a si, como se esperassem que ele jamais fosse precisar assumir qualquer papel complexo. Ele apenas era usado quando podia tornar-se conveniente, e deixado para fazer o que bem entendesse no tempo restante.
Quando deixava o castelo com Eirkia, apenas a princesa era repreendida e sua responsabilidade cobrada, como se Darl nem mesmo estivesse lá.
Mas, por que, afinal, aquilo sequer lhe incomodava?
Por que ele desejava tanto ver-se a ocupar um lugar um lugar naquele mundo do qual, não muito atrás, apenas queria abandonar? Até mesmo sua identidade como um dos Hraekhan era nada mais que uma mentira.
― Dal?
Ele se introduzira àquela Família como um parasita, e seus integrantes ainda buscavam utilidades para si.
― Dal?
― E-Eu? ―, ao notar a familiar voz que chamava por seu nome, o garoto se virou em sua direção.
Eirkia tinha uma sobrancelha erguida enquanto encarava Darl por alguns instantes, até que relaxou sua expressão e retornou a falar.
― Estou saindo agora. Não quer vir junto?
O fim da tarde estava próximo, o sol logo se ocultaria por trás dos muros e montanhas no horizonte. A princesa havia acabado de retornar das lições de Szeidung, o conselheiro e gerente do rei. Era óbvio aonde ela pretendia ir.
Darl estava diante do mesmo dilema do dia anterior.
Mas, de toda forma, diante da grande escala de seu futuro, aquilo de pouco importava.
Quando o rato finalmente conseguisse um emprego, Eirkia também pouco tempo teria para dedicar a ele. Afinal, sem um pai e sem direito a benefícios por seu ferimento de guerra, ele talvez precisasse trabalhar todo o dia .
E, mesmo que isso as coisas não viessem a ocorrer de acordo com o melhor cenário, em três anos, no máximo, chegaria o dia em que seus destinos se consumariam. O dia de seu casamento.
Assim, diante da expressão interrogativa da princesa, Darl pôde apenas suspirar.
― Certo. Eu vou.
Um sorriso se formou naquele rosto coberto de sardas. Brilho retornou àqueles olhos verdes. Sem dúvidas, ela queria sua companhia mesmo quando se encontrava com o rato.
Então, pela mão, Eirkia guiou o novo Hraekhan para a cidade.
Mesmo sem um local claro, ou fixo, naquele, ele ainda tinha uma função para exercer. Suas preocupações pouca fundamentação tinham. Como seu futuro era inevitável, o caminho que percorria até ele de pouco importava.
Assim sendo, ele não precisava dizer "não". Poderia apenas se deixar ser levado.
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