Por mais que a resposta fosse óbvia, Lilian ainda sentiu uma pontada no peito quando ninguém se preocupou em saber a verdade, que sua família só sabia reclamar sobre como Linda e Lilian quase estragaram o final de semana do Rafael…
O velório de Linda seria realizado na manhã da segunda-feira e ninguém se preocupou em perguntar sobre ele: quando seria, se tinham que pagar…
Por isso Lilian não optou por pagar um padre ou pastor - ela nem se quer olhou seus preços, nenhum outro familiar compareceu e por mais que fosse próxima dos cuidadores do asilo, eles não podiam perder horas de trabalho porque um de seus clientes morreu. Por isso a cerimônia não durou muito. Um dos funcionários do cemitério ficou o tempo todo na sala, sem saber o que fazer. Era a primeira vez que ele via um velório assim, por isso decidiu por ficar lá e se necessário dar apoio a jovem. No final da hora alugada, o homem afogado em pena, “esqueceu-se” de oferecer a opção de cremação por um pequeno acréscimo no pacote adquirido pela própria defunta.
No caminho para a escola, o mundo era parecia o mesmo. Nada havia mudado! Nem mesmo na escola, com exceção do ocasionais olhares de tristeza que Stevan direcionava a ela - os quais a irritavam profundamente. Se ele não tinha intenção de tentar confortá-la, por que dirigir-lhe tais olhares? Porém ela aceitava quieta, já que nada de bom poderia vir ao desacatar um professor. Tolerando tudo e todos ela tentou se focar nas aulas, dando 120% de si, ela até recebeu elogios dos demais! Contudo ela não sentiu vontade de assistir as aulas da tarde, por isso ela foi pra casa.
Chegando, não sentiu vontade de anunciar sua presença, por isso ela foi direto para o quarto. Na cama, ela encontrou um envelope - aberto - em seu nome. Até onde sabia, era crime abrir correspondência alheia, mas ela não acreditou que algum policial prenderia os pais por isso. Com um suspiro ela leu a correspondência violada. Era uma carta do advogado de Linda pedindo que a jovem comparecesse no escritório dele na quarta-feira às 9 horas para resolver algumas pendências sobre a morte da cliente.
Sem mais nada para fazer, Lilian decidiu-se por avisar Lucca sobre o falecimento de Linda (coisa que vinha evitando).
Ela pensou e pensou, mas não sabia como informar o ocorrido. Ela sentiu como se houvesse ficado um dia inteiro na frente do monitor, só que o relógio informou que foram apenas 23 minutos. Por fim escreveu:
Desculpe, a vovó morreu.
Lucca adorava Linda. E por mais que fosse certo, por mais que devesse, a jovem não conseguiu inventar um texto para prepará-lo para a notícia. Afinal, nem presente nos últimos momentos da avó ela estava! Qualquer coisa que escrevesse, além disso, seria mentira e ela não queria mentir para uma das poucas pessoas com quem se importava.
A estudante encarou o monitor por mais um minuto antes de adicionar o e-mail de Giulia. A amiga não gostava de gente velha, mas Lilian achou melhor avisá-la. Ela enviou o e-mail e passou o resto do dia deitada na cama apenas olhando para o teto, esperando o tempo passar e, quem sabe com alguma sorte, o teto cair sobre ela?
Algum tempo depois Rafael entrou no quarto da irmã.
-Amanhã eu tenho prova. - disse jogando um celular na direção da irmã, acertando-a na barriga. Lilian não se importou e quase não sentiu - De matemática. Terceiro horário. O jantar está pronto. - disse com uma raiva súbita.
“Ah, jantar.”, pensou ao perceber que já havia se passado horas desde a sua chegada.
Ela se juntou a família para a refeição, mas estava claro que a atenção dela estava em outro lugar. Ninguém pareceu notar que Lilian se encontrava diante de uma encruzilhada: fazer ou não a prova do irmão? Se ela optasse por fazer, ela seria apenas uma ferramenta desta família de crápulas pelo resto da vida; se não… ela não conseguia pensar em nada de ruim agora, depois da morte de Linda.
-Vi que recebeu uma intimação para pagar as contas de sua avó. - comentou o pai. A jovem acenou - Nós não temos dinheiro para essas coisas, fique sabendo. - “essas coisas”, Lilian quase riu. O jeito como o pai falava parecia que se estava com nojo.
-Não se preocupe, eu vou pagar. - ela nunca chegou a cogitar que os pais fariam algo de bom grado - Nem que eu tenha que me prostituir para isso.
O pai ficou vermelho, enquanto a mãe se perguntava onde errou na educação “desta menina”, o irmão a encarava com desgosto. Em geral, o divertido cenário esperado. E antes que pudessem retrucar qualquer coisa, a jovem se retirou.
Ela foi para o banheiro escovar os dentes e tomar banho. Lilian não se demorou muito. E apesar de ter tomado um bom banho gelado, sua mente não se acalmou, muito pelo contrário. A mente da garota foi a mil! Ela se preocupou com o que o advogado lhe falaria e como lidaria com a dívida…
Tais pensamentos lhe tomaram a mente de tal forma que mal conseguiu dormir, piorando as marcas sob os olhos. Dito isto, Stevan não mudou seu comportamento do dia anterior e para relaxar ela usou a imaginação de uma leitora ávida para vê-lo pagar por estes olhares. No terceiro horário, o telefone que Raphael lhe entregou no dia anterior vibrou com a chegada de três imagens.
Ela pensou em não responder, mas a ideia não a agradou. Então ela resolveu as questões da prova da forma mais absurda que conseguiu imaginar e ao enviar as fotos com a resposta… ela não conseguiu esconder o sorriso.
Haveria consequências? Provavelmente o irmão a mataria.
Ela se incomodou? Não o bastante para lhe fazer lamentar a decisão.
O resto do dia passou como deveria ser. Ninguém percebeu seu luto ou sua travessura.
O dia estava lindo! Principalmente para desmascarar um idiota.
Em casa ela olhou sua conta bancária pelo site e constatou que tinha uma boa quantia de dinheiro, talvez o suficiente para pagar boa parte da dívida da avó e se assim o fosse. Porém, se não fosse o suficiente, ela pediria ajuda a Lucca. Mesmo que pedir ajuda lhe parecesse estranho, se fosse ele talvez não tivesse problema, talvez ele pudesse ajudá-la… Talvez não num futuro próximo, mas ela o pagaria, afinal já o devia muito.
No dia seguinte acordou no horário de costume, se arrumou para ir para a escola, tomou café, foi até o ponto de ônibus e esperou pacientemente uma condução que a levaria até o centro da cidade.
Não estava com pressa. A jovem tinha quase o dia todo para tratar sobre a dívida e ela tinha a doce ilusão de que quanto mais ela se demorasse para falar com o advogado, menos real seria.
A condução chegou e ao sinal da garota, o motorista parou para ela embarcar e logo deu a partida. Lilian pegou o cartão de meio-passe estudantil e pagou a passagem. Por ter saído em horário de pico o ônibus estava cheio, mostrando que dois corpos podem sim ocupar o mesmo espaço.
A garota foi se espremendo entre os passageiros, passando quem havia tomado banho de perfume ou desodorante, até parar perto da porta, onde tirou a mochila vazia - exceto por sua carteira, uma imagem impressa do Google Maps de como chegar até o endereço e um livro novo que pegara na biblioteca da escola - Do Levantar a Queda -, colocando entre as pernas. Um garoto, pouco mais velho, escutava Numb alto o suficiente para as pessoas ao redor também ouvissem a música.
Fixando o olhar pela janela a menina se perguntou se ela se sentia entorpecida ou vazia.
Depois de três paradas, constatou que não sabia a diferença.
As pessoas foram desembarcando, mas somente no ponto perto do parque a maioria desceu - inclusive Lilian. A garota deu uma olhada em volta tentando se situar, reconhecendo alguns poucos pontos de referência, ela tentou trilhar seu caminho.
Ela se perdeu, mas preferiu perguntar ao vendedor de água ambulante onde ficava o endereço, a olhar no mapa. A princípio o homem não queria lhe falar, mas mudou de ideia quando ela comprou um copo e uma garrafa d’água em sua mão.
Ela bebeu o copo ali mesmo, enquanto ouvia as instruções. Depois de guardar a garrafa num bolso lateral da mochila, agradeceu ao estranho e seguiu as direções indicadas. Ela chegou na rápido no endereço desejado, mas ponderou se deveria protelar mais um pouco, antes de decidir entrar.
O porteiro não quis deixá-la entrar, primeiro alegando que todos deviam mostrar um documento com foto para entrar, porém assim que a jovem mostrou sua identidade, o homem disse que não queria nenhuma criança matando aula no seu prédio, principalmente garotas. Mesmo ouvir taia palavras a jovem não se irritou, ela apenas sorriu e disse que suas aulas eram à tarde e que agora ela tinha hora marcada com o advogado Benjamim Guimarães. O porteiro pediu desculpas e a informou que a sala de Benjamin era no sétimo andar.
A jovem pegou o elevador e observou seu reflexo no espelho, percebeu que, tirando o olhar abatido, ela parecia bem. Sem aguentar olhar a si mesma, desviou o olhar do reflexo. Viu que, segundo o relógio digital em cima das portas do elevador, chegara com 1h de antecedência.
As portas do elevador se abriram no sétimo andar. Ela desceu e procurou a sala. O escritório estava fechado, então ela se sentou ao lado da porta, tirou o livro da mochila e pôs-se a ler.
Páginas depois um par de pés femininos pararam em frente a jovem. Ela os ignorou.
-O que tá fazendo aqui? - perguntou a moça.
-Esperando o escritório abrir. - respondeu sem tirar os olhos do livro.
-Tem hora marcada? - Lilian olhou a moça com um olhar que dizia “Imagina! Só gosto de matar aula aqui”, mas disse:
-Claro. - a mulher ponderou.
-O escritório já está aberto. Basta tocar a campainha. - disse ela mostrando o aparelho - Na parte da manhã só atendemos com hora marcada. - ela pegou um molho de chaves cheio de chaveiros ornamentados, habilmente escolheu uma e abriu a porta - Senhorita…?
-Lilian. - disse se levantando.
-Lilian Cardoso? - a mais nova afirmou com a cabeça - Me desculpe, pela falta de educação mais cedo. Pensei que a senhorita fosse... mais velha.
-Sem problemas.
A mais velha liderou o caminho e instruiu a outra a se sentar, enquanto a anunciava.
Não demorou muito para Benjamin aparecer na recepção e lhe cumprimentar com caloroso aperto de mão seguido por um abraço e palavras de consolo. O homem que devia estar por volta dos seus 45 anos, tinha cabelos castanhos, pés de galinha na pontas dos olhos castanhos, usava terno cinza com uma gravata azul marinho e exalava mais saúde do que a secretaria dele, ela mesma ou metade dos colegas de turma dela.
Ele chamou Lilian para sua sala e ofereceu a ela um pouco de café e pediu para que se sentasse. Recusando o primeiro, ela se sentou.
-Antes de mais nada, gostaria de confirmar se você sabe do que Linda morreu.
-Falência interna de múltiplos órgãos. - disse com dificuldade ao lembrar da conversa com o médico.
-Sim. - o advogado afirmou com a cabeça - Quando os rins dela começaram a falhar, eu fiz uma visita...
O homem fez uma pausa, se lembrando da cena:
-Tudo o que ela conseguia falar era sobre o quão boa garota você se tornou; como você sempre a visitava e como ela estava preocupada com você. Então a sugeri e ela concordou, como sua responsável legal, em te emancipar.- Lilian sempre achou que os pais tinham pego a guarda dela de volta - Foi um pouco complicado conseguir uma cópia de seus documentos, mas já está tudo pronto. - disse com um pouco de orgulho e tristeza - Eu só queria que eles fossem desnecessários.
O homem abriu uma gaveta e procurou algo, pegou um envelope pardo, tirou de dentro a certidão de emancipação e entregou o documento. O único relato que Lilian havia ouvido sobre o advogado de Linda havia vindo da boca de Sandra. Tudo o que ela havia escutado havia ajudado a pintar uma pessoa mal e aproveitadora, agora a jovem se perguntava se sua imagem dele só um pré-conceito.
-Alguma dúvida?
Dúvida? Ah, Lilian tinha um monte, ido de “O quê?”, passando por “Por que ninguém me falou disso antes?” até “Como conseguiu meus documentos?”, sinceramente, era a primeira vez que sentia sua cabeça tão cheia, desde o falecimento da avó.
-Obrigada. - foi tudo o que conseguiu dizer.
-Não por isso. - respondeu o homem com um sorriso. - Se precisar de ajuda Legal é só me contatar. - a garota acenou com a cabeça.
Benjamin se levantou e pediu para a jovem segui-lo, mas, ao contrário do que esperava, não eles não foram para a sala de espera. O advogado a conduziu até um carro cinza no estacionamento do outro lado da rua.
-Onde estamos indo?
-Desculpe, um cliente chato estava agendado para amanhã, mas ele insiste em vir hoje. Então estou com a agenda um pouco apertada. - ele abriu a porta do carro para a garota e a fechou depois que ela se sentou. Em seguida tomou o seu assento - Você sabe como andavam as finanças de sua avó?
-Quando ela foi internada, estava sem um tostão e tinha várias prestações pra pagar… Então não muito bem?
-Hm. Linda teve seus altos e baixos, mas sempre soube cuidar do dinheiro. - ele os guiavam para fora do centro - É verdade que quando ela foi internada ela estava com prestações, mas nada que ela não pudesse pagar!
Um motorista os cortou fazendo o advogado frear e praguejar.
-Na época ela tinha feito um investimento e quando começou a dar lucro ela se empolgou e comprou um apartamento num bairro um pouco melhor do que onde vocês moravam.
-Mas Sandra disse que a vovó não tinha nada além de dívidas. Por isso, ela teve que vender a casa pra pagar as despesas da casa de repouso.
-Foi o que eu disse a ela! - disse o homem com orgulho - Eu devo muito a sua avó e conheço bem a sua mãe. Se eu tivesse falado que Linda tinha uma bala e um chiclete, ela os teria vendido e pegado o dinheiro. - Lilian concordou - Então menti para ela. Depois que ela vendeu a casa pedi uma quantia para quitar parte das dívidas, mas na verdade, o valor que recebi cobriu quase todas as parcelas. Além da aposentadoria, sua avó tinha uma pequena porcentagem de uma multinacional, a qual, ela comprou as ações meses antes da internação...
-Aí ela comprou o apartamento?
-Exato. Ela até chegou a comprar alguns móveis, mas depois… achei melhor deixar quieto. - ele deu de ombros - Assim evitava da sua mãe ficar sabendo, mas paguei todas as contas e prestações.
-Obrigada. - suspirou ela. Ela estava pronta para pagar qualquer dívida que Linda pudesse vir a ter, mas descobrir que não havia nenhuma fez com que ela se sentisse mais leve.
-Não me agradeça. É o mínimo que eu podia fazer. - o advogado parou em frente a uma prédio e abriu o porta-luvas, procurou alguma coisa lá dentro e tirou de lá algumas chaves e um controle de portão. Apertou um botão do aparelho e nada aconteceu, ele sorriu com vergonha e o apertou novamente e, desta vez, o portão eletrônico se abriu. Benjamin entrou no prédio, levando menos de dois minutos para achar a vaga do apartamento e estacionar o veículo. - Vamos? - ele abrindo a porta.
Durante o percurso até o apartamento, o advogado quase não parou de falar. Ele contou mais detalhes sobre a herança, porém a jovem não entendeu muito. Ela só sabia que agora tinha um apartamento, menos de um por cento numa multinacional e alguns meses da aposentadoria da avó como herança, além de crédito do tesouro direto.
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