Cada andar tinha quatro apartamentos e o novo futuro lar de Lilian era grande e espaçoso. A sala tinha um sofá novinho (Linda vivia reclamando que o antigo estava cheio de calombo); a copa tinha uma mesa de vidro com cadeiras de acento alaranjado, cheia de arranhões que Lilian ajudara a criar, ao arrastar as cadeiras; a cozinha tinha um barzinho vazio, uma pia de granito, geladeira e fogão, tudo novo, no armário ela encontrou algumas vasilhas e panelas; na área de serviços uma pia inox, com produtos de limpeza usados na parte de baixo e a antiga máquina de lavar, que Lilian esperava ainda funcionar; dois dos três quartos tinham camas e guarda-roupas, o outro estava vazio, o banheiro estava completo, com uma decoração peculiar do sistema solar, sendo óbvio que Linda o reformara (ou será que ela escolheu aquele apartamento pelo banheiro? Difícil dizer).
-Então, o que achou? - perguntou o homem curioso.
-Eu… amei. - a menina não tentou esconder a voz de choro ou as lágrimas, pois pensou que sua avó queria ver a reação dela. - Muito obrigada! - agradeceu olhando-o nos olhos.
-Não precisa agradecer, era o mínimo que poderia fazer por vocês. Com o dinheiro de Linda eu contratava uma diarista para arrumar uma vez por mês, vou chamá-la amanhã.
-Obrigada.
O alarme do telefone do mais velho começou a tocar, ele o desligou e disse que estava na hora de ir embora. Durante a descida até a garagem Benjamin explicou-a que ela deveria assinar alguns papéis e, se tudo ocorresse conforme o planejado, na sexta-feira ela já seria proprietária de tudo o que Linda deixou. Depois ele compartilhou memórias em que Linda estava presente, e, uma ou outra, que Lilian também estava e se lembrava vagamente.
O tempo de volta pareceu menor, talvez pelo tema da conversa, e no escritório o advogado retirou alguns papéis da primeira gaveta da mesa dele e pediu para que a garota os lesse e assinasse. Meio envergonhada e levemente em pânico, por estar assinando um documento de tal importância, a jovem correu os olhos pelos parágrafos sem detectar nenhuma contradição ao que lhe fora previamente explicado. Assinou-os assim como a carteira de identidade. E quando estava para se retirar do escritório, uma ideia aleatória lhe ocorreu.
-Err… Mais uma coisinha... teria como eu mudar meu sobrenome? - perguntou sabendo a resposta, ao passo que tentava não nutrir suas esperanças.
-Bem, ter, tem. Mas não acho que você vá querer fazê-lo. Como ainda é menor, precisaria de uma explicação plausível, o que pode acabar atraindo atenção de quem estiver ouvindo (o que pode ser nada ou poderia levar a uma investigação), além de ter que pagar uma taxa relativamente alta, que faria seus pais perguntarem sobre o dinheiro. Mesmo que você saia da casa deles hoje mesmo, acho que tem grandes chances de tanto Sandra como Carlos procurarem meios de te dar muita dor de cabeça por isso, não concorda?
Lilian meneou com a cabeça inconscientemente.
-Mas e depois do meu aniversário?
-Pagando, você poderá fazer quase qualquer coisa nesse país. - disse com um sorriso presunçoso e, ao mesmo tempo, temeroso, ao se lembrar de casos que volta e meia ouvia seus colegas comentando e das notícias do jornal da noite anterior.
-Obrigada! - disse com um sorriso tímido e sincero, ao ir embora.
Para seu espanto, ainda era cedo (ainda não era meio-dia!), viu que poderia ir a escola, porém optou por matar aula no parque lendo seu livro, embora reconhecesse que logo perderia a bolsa se continuasse assim… todavia agora o importante era achar uma lanchonete, comprar algo para comer, achar um lugar sossegado no parque e pôr-se a ler.
Foi fácil para a pequena terminar de ler o livro num lugar tão relaxante. Por ela, teria ficado mais tempo, mas não queria pegar o ônibus no horário de pico, então se despediu-se daquele ambiente cheio e relaxante, com o pensamento de que logo poderia estar perto de Linda novamente.
Para voltar para casa, ela pegou o ônibus antes dele dar a volta no centro. A condução estava cheia, mas esvaziou pouco depois, portanto ela conseguiu um lugar para se sentar e quando o ônibus tornou a se encher… bem, ela já estava sentada.
Na casa de seus pais ninguém comentou ou perguntou por nada. Os demais moradores da residência provavelmente não perceberam que ela passou quase todo o dia no centro da cidade.
Pensou em contar a novidade para seu ex-namorado, mas mudou de ideia. Achou que seria melhor esperar algo mais definitivo. E sem nada para fazer ela foi dormir.
Durante a quinta-feira, Lilian se sentiu dividida: por um lado sentia alívio, por ter a chance de sair da casa dos pais; mas, por outro, sentia um pesar não só pela morte da avó, mas por ter achado um benefício que a notícia trouxe. E Stevan não ajudava muito, ao menos dessa vez ele veio falar com ela.
-Está tudo bem? Precisa de ajuda com alguma coisa? - perguntou ele, discretamente, quando foi devolvê-la um trabalho.
-Tudo bem. - respondeu ela pegando o maço de folhas.
-Se precisar de alguma coisa, qualquer coisa, é só me procurar.
Lilian tinha uma resposta na ponta da língua, mas, como ela ainda tinha um futuro a considerar, ela apenas acenou com a cabeça.
Sendo franca consigo mesma Lilian estava começando a odiar aquele professor sem uma razão coerente, afinal tudo o que ele queria era ajudar e mesmo assim ela ficava irritada.
Lilian atribuiu sua irritação à morte de Linda mais o stress causado ao súbito interesse dos professores (sim, Luana tentava lhe arrancar a verdade toda vez que se encontravam no corredor - e foi assim que ela descobriu que elas se encontravam mais que o recomendado) a sua vida.
Na sexta-feira não houve grande diferença, mas, pouco antes de sair de casa para o trabalho de freelancer, o telefone fixo tocou e ao atender percebeu que era Benjamin perguntando quando ela queria receber as chaves de seu novo imóvel. Sem conseguir evitar o sorriso, a jovem chamou o advogado para uma refeição no local onde ela trabalhava, por conta da casa. O advogado aceitou o que ele chamou de “proposta indecente” e apareceu na futura ex-pizzaria por volta das 21h, com uma bela mulher, o homem pediu a acompanhante que pegasse os documentos e as chaves do prédio e apartamento pertencentes a mais nova e os entregou a garota. A jovem os atendeu com o seu mais belo sorriso, agradeceu ao homem até ele ficar envergonhado, disse a caixa que os pedidos da mesa dele, Lilian é que pagaria e no final do expediente pediu algumas caixas de papelão na cozinha.
Sábado de manhã ela começou a mudança. Começando por suas decorações e bens que não utilizava com muita frequência, Lilian empacotou seus pertences. As duas caixas que conseguiu na futura lanchonete ( as únicas que serviriam para este tipo de serviço ) foram rapidamente preenchidas por seus livros de literatura e presentes recebidos. Sorrateiramente, pegou o telefone reserva de Rafael, baixou um aplicativo para chamar um carro e colocou os endereços. Desceu com as caixas e esperou o veículo no portão. O carro não demorou muito e ela fez um acordo com o motorista para que a ajudasse na mudança o máximo possível, no final do dia faltaram apenas as roupas para serem levadas.
A noite ela estava um caco, mas Daniel finalmente anunciou o fechamento da pizzaria (que ocorreria na segunda-feira) e, devido a alguns reparos extras que o pedreiro convencera a mulher de Daniel a fazer, o estabelecimento ficaria fechado por duas semanas. Lilian aproveitou a deixa e disse ao chefe que ela estava para se mudar e que ficaria um tempo sem telefone, mas que assim que conseguisse um ele seria o primeiro a ficar sabendo. Feliz pela novidade, Daniel deu à jovem um vale cupom para a futura lanchonete.
Provavelmente por causa do falso boato, a pizzaria estava cheia com os clientes mais fiéis e que já eram quase que da família. Alguns deles ofereceram parceria a Daniel, outros perguntaram se havia alguma forma de ajudar, outros simplesmente aproveitaram a refeição com suas famílias e amigos, contudo, dos clientes mais… tradicionais, todos se demoraram. Fossem porque estavam batendo papo, assistindo a televisão ou porque resolveram comer bem lentamente naquele dia. E isso fez com que, não somente Lilian, mas todos os funcionários ali quisessem contar à verdade para aqueles clientes.
Uma das garçonetes quase confessou o truque para um dos clientes mais assíduos e que não parava de perguntar como ele podia ajudar ou aparecer com ideias mirabolantes para atrair uma maior clientela ou mesmo ideias para fazer os atuais clientes gastarem mais… Daniel, por sua vez ouviu cada ideia atentamente, fazendo uma nota mental para as melhores.
No final da jornada de trabalho, Lilian estava mais cansada que o habitual. Em contrapartida, ela estava contente com a mudança que seria finalizada em algumas horas e não mais se sentia culpada por se livrar de seus progenitores as custas da morte de Linda.
Não. Ela sentia culpa ainda.
Ela só estava cansada demais para notar.
E quando não estivesse, ela iria negar o sentimento.
Por isso, em sua mente somente restava a tarefa de anunciar a seus progenitores e agressor que estaria saindo de casa. Apesar de ter sentido uma pequena vontade de sair sem avisar, só para ver quando eles iriam perceber a ausência dela… provavelmente na próxima prova de Rafael? Ou seria quando o menino recebesse o resultado da prova de matemática? Quem sabe, quando eles quisessem comprar alguma coisa com o dinheiro dela?
Era triste, mas ela sentiu vontade de sorrir com o pensamento. Para aquela casa ela não era nada além de um atalho ou um caixa automático.
Bem, isso não a importava mais. Pela primeira vez em muito tempo ela poderia viver por ela mesma!
Ironicamente a primeira coisa que lhe passou à mente foi que ela deveria tomar mais cuidado na escola.
Finalmente a vida de Lilian parecia estar melhorando!
Comments (0)
See all