Silêncio... Aparte do canto de pássaros à distância, você não era capaz de distinguir
qualquer outro som. Com teus olhos ainda fechados, você podia sentir uma leve brisa em teu
rosto, a qual te lembrava do cheiro de orvalho. Ao abri-los vagarosamente, imagens e formas
começam a se distinguir: Acima de você há o teto, feito de carvalho, um pouco velho e
rangente, porém firme como pedra; à tua esquerda de onde a brisa sopra, há um lampião em
cima de uma pequena mesa de madeira com uma janela atrás; a qual é coberta por uma cortina,
mesmo assim um pouco da luz da manhã consegue ultrapassá-la e atingir, finalmente o espelho
no lado oposto do quarto.
Enquanto você vagarosamente acorda, a tua visão continua mirando à direita, onde, agora cansado de olhar para os raios refletidos de sol, você admira uma criatura de demasiada beleza: Com sua face e braço direto em cima do teu peito, e respirando com tanta tranquilidade, que um faria bem de questionar se realmente respira, ali está ela. De cabelos longos e dourados, uma face de inimaginável perfeição e um corpo que nem mesmo o grande escultor de Firenze poderia replicar em suas obras. Seu nome era Irene, bela e sabia como a Deusa dos Olhos Verde-Marinhos, você não consegue entender como tal angélica criatura poderia ver bastante bem em você para ser a tua mulher.
Ainda submerso em pensamentos, você se levanta, e começa a se vestir. Ao sentar-se à beira da cama para pôr os teus calçados, você vê abaixo uma velha caixa de madeira, com ornamentos de prata, coberta em litografias antigas e uma insígnia na forma de um dragão, o que causa a tua mente a brevemente se perde em memórias das quais você gostaria de esquecer.
Evitando abrir velhas feridas, você se levanta e sai do quarto silenciosamente. Uma vez lá e caminhando pelo corredor que leva à sala de jantar, à tua direita encontra-se outro quarto, onde - deitado em um berço feito por você mesmo – está o teu filho. Por mais que não fizesse muito tempo desde a sua chegada, você já pode imaginar o grande caçador que ele um dia se tornara e as grande ações pelas quais será famoso. Afinal, em suas veias, corre teu sangue, o sangue do lendário caçador Orion, famoso por ter abatido algumas das mais ferozes e astutas feras que a natureza criou e por ter tomado parte na guerra contra o Império Dourado, onde mesmo não podendo lutar até o fim, tua ajuda foi de demasiada importância para o banimento dos invasores. E como você, um dia o teu filho tomará parte na história e fará o seu nome ser de grande importância.
Antes que possa se distrair ainda mais com sonhos e projetos para o futuro, a tua mente rapidamente lembra-te do presente, e você logo volta a se direcionar à sala de jantar. Um ambiente no qual, durante um período injustamente mais rápido que o que te levou a preparar, você saboreia o teu café.
Terminado, você desperdiça segundo nenhum e parte para o trabalho. Lá fora, nos campos, sem muita idéa do que fazer, você os prepara para a colheita. A vida como um fazendeiro é monótona e entediante, porém o simples pensamento de que - diferentemente da caça - tal atividade não apenas permitia que esteja perto de tua família o tempo todo - caso perigo venha - mas também é próspera o bastante para se sustentar, a tornava aturável.
Em torno do meio-dia, enquanto você se prepara para o almoço, Irene vem em tua direção, carregando o teu filho em seus braços. Ao se aproximar para te beijar, com um olhar de felicidade em sua face, ela completa o teu “ritual” matinal:
- Bom dia.
- Bom dia. (você responde, seguindo com um beijo).
Enquanto você olha para o bebê, a pequena criatura rí, como se ele estivesse feliz em te ver. Logo Irene procede, em um tom alegre:
- Ainda não consigo acreditar que você realmente voltou.
- Não? Mas Por quê?
- Você era um caçador lutando em uma guerra, uma guerra de verdade, Orion... Contra pessoas que passaram quase a vida inteira treinando para matar outras pessoas, vo-você poderia ter morrido...
- Bom... até então eu apenas lutei contra animais selvagens.... Mas em tempos de guerra, as pessoas não se diferenciam muito deles, não? Ao menos, certamente não os que lutei, haha. (Você tenta ser engraçado).
- ... Ademais, quem senão eu, o ensinará a caçar? (Você continua, apontando para o teu filho com o teu olhar).
Ela então rí, te corrigindo:
- Ele não será um caçador, ele será um fazendeiro. Já é o bastante ver você saindo em tuas caças e voltando quase morto dizendo que foi apenas um arranhão... Ele trabalhará no campo, ao menos desse jeito não estará em perigo.
- Ah, então foi por isso que você insistiu tanto que eu parasse de caçar, hein?! Sabe, eu poderia trabalhar como um ferreiro ao menos, o lucro é melhor...
- Mas nessa você estaria trabalhando com armas que poderiam fazer apologia à violência. (Ela protesta).
- Não necessariamente... (você falha em pensar em uma boa resposta a tempo).
-... Digo, a maioria das pessoas que as compram, as penduram na parede ou usam como decoração. Ademais, eu não necessariamente forjaria armas o tempo todo. (Você adiciona, sem muito sucesso, aceitando tua falta de habilidade com palavras).
- Certo... depois eu preciso que você vá a vila comprar um pouco mais de sal, e depois
me ajudar a preparar o almoço (ela diz enquanto se dirige de volta para dentro de casa).
Rapidamente você começa a guardar as tuas ferramentas e parte em direção à vila. O caminho que conecta a tua casa a ela não é de grande graça e logo a tua mente começa a se perder em distrações mais uma vez: Alguns meses atrás, enquanto lutava contra os soldados do Império Dourado sob o banner do Dracul, uma carta havia chegado, uma assinada pela tua esposa (que naquele tempo estava grávida), relatando um incêndio que havia consumido a vila que vocês chamavam de casa e, como rumores de um demônio espreitando nas sombras havia levado as pessoas à loucura.
Em um parágrafo, ela contou sobre o senhor da vila ter tirado a própria vida em um ato de desespero após ter perdido toda sua fortuna ao fogo, em outro ela explicou como a comida tinha se tornado escassa graças as mortes de boa parte dos fazendeiros e como as pessoas recorreram à violência e furto, até mencionado a morte de um dos teus velhos amigos pelas mãos de um assaltante enquanto defendia a sua plantação. No final da carta ela chama pelo teu retorno, preocupada com a segurança da sua vida e à do bebê, notando que não precisava ser permanente, pois sabia o quão importante era a guerra em que você lutava.
Como todo homem honrável, segundos após receber a carta, você partiu para salvar a tua família. Ao chegar na vila, a situação era de demasiada severidade em comparação ao que esperava, a maioria das casas tinham sido completamente queimadas; ladrões de toda a região haviam invadido a vila em busca das fortunas que ainda não foram roubadas pelos próprios moradores, e, a tua esposa... Ainda na velha casa de vocês, havia encarado perigo muito mais perto do que você jamais ousou imaginar: A porta da frente havia sido aberta à força, a mobília estava toda revirada e destruída, até os dias de hoje você se lembre do som de tiros sendo disparados no andar de cima, de correr como nunca antes e esbarrar em um ladrão coberto por sangue e com uma expressão de medo em sua face... Você se lembra de, sem se preocupar caso ele carregava uma arma ou não, se levantar e então o agarrar pela cabeça, empurrando-a repetidamente contra a parede a até ouvir o som do seu crânio ser esmagado entre a tua mão e a parede, algo causou um outro ladrão (o qual corria de volta para o andar superior) a praguejar. instintivamente, você agarrou a tua faca e pulou em direção à ele, cortando sua garganta com um único – mas preciso – golpe. Momentos depois de o corpo do segundo ladrão cair ao chão completamente sem vida, a porta no final do corredor em que as escadas terminavam abriu cautelosamente e de lá, com lágrimas em seus olhos, Irene saiu correndo, derrubando o teu velho rifle de caça no chão e vindo ao teu encontro para um longo abraço.
Nunca, em toda a tua vida você segurou alguém tão fortemente em teus braços como naquele dia. Em seguida, você e Irene rapidamente pegaram o que restava dos seus pertences e fugiram. Por sorte, um dos teus amigos estava se mudando e havia os dado sua velha fazenda que se localizava à alguns minutos de distância da vila, na época você não estava feliz com a idéia de permanecer por esta região, mas infelizmente o pouco de dinheiro que os restava não era o bastante para algo melhor.
Algumas semanas depois, a situação não era muito precária, a terra era fértil o bastante para plantar, a casa era mobiliada e, por mais que não fosse muito distante do perigo, ninguém veio incomodar. Alguns messes depois, as colheitas eram o suficiente para até mesmo começar estoques, a casa começava a ficar mais organizada e o teu filho havia nascido. Nunca em toda a tua vida você se sentiu tão orgulhoso, e apesar de que a situação da vila não havia mudado muito e todo dia novos desafios se apresentavam, o amor da tua mulher te mantia seguindo em frente.
Então, dois meses atrás, pela primeira vez em um longo tempo, você recebeu notícias sobre a vila: Um soldado da Guarda do Reino veio à tua porta e leu um decreto real que anunciava o total purgamento dos ladrões e que um novo lorde seria designado em breve, até lá o Conselho dos Habitantes estaria responsável por manter a ordem. Você e Irene celebraram a boa notícia, por mais que não tinham planos de voltar a morar entre os muros da vila, o decreto simbolizava que não mais seria necessário temer pela segurança tua e da tua família.
De volta ao presente, percebendo ter gastado muito tempo revivendo o passado, você chega ao teu destino. Os novos portões de ferro e as muralhas de pedra são uma grande melhoria em comparação aos de madeira que eram usados anteriormente; muitas das casas que foram consumidas pelo fogo, agora erguem-se fortemente; as pessoas parecem estar mais felizes, e, para todas as direções que olha, há soldados da Guarda do Reino. Você continua então a caminhar em direção ao velho mercado, passando em frente à taverna quando velho amigo teu vem te cumprimentar:
- Haha! Olha quem voltou dos mortos.
- É bom te ver também Jean. (Você para o e aperta a sua mão).
- De volta para olhar a nova e reerguida vila? Talvez até considerando voltar a morar aqui?
- Haha, não dessa vez, mas devo admitir, é impressionante como conseguiram restaurála depois do que aconteceu...
- É loucura, certo?! Espere até ver a nova taverna, ela foi aberta semana passada e têm uma das melhores cervejas do mundo!
- Eu me pergunto como você sabe disso...
- O que eu posso dizer... Caça e cerveja, as duas melhores coisas do mundo.
-Haha, e mulheres?
- Elas encaixam em caça... se você intende o que estou dizendo, ehehe. (Ele sorri maliciosamente e sem vergonha).
- Ha! Jean, se você for tão bom em "caçar" mulheres como em caçar animais, o nome da tua família morre com você, hahahaha.
- Ha. Ha. Muito engraçado... (sua voz se contorce com um tom sarcástico). Mas e você? Desde o teu casamento, você foi para uma guerra e agora trabalha como um fazendeiro?! Eu não sei dizer qual é pior... É quase como se você tivesse desistido da vida.
- Ei, eu ia caçar o grande espírito rajado do oriente, foi por isso que viajei para além dos reinos do Leste, é que assuntos mais importantes apareceram no meio do caminho...
- Bom, eu respeito essa história da guerra e tal, apesar de nunca ter ouvido falar do Império Dourado ou o chamado Dracul. Mas vamos lá, trabalhar como um fazendeiro, sério?!
- Um dia você entenderá meu amigo, o trabalho talvez não é tão divertido como caçar, mas se faz Irene feliz, então eu também estou feliz.
- Cara... eu tenho pena de você.
- Isso se chama casamento, Jean. E como teu amigo, eu honestamente torço para que um dia você arranje uma mulher também. Eu preciso ir agora, nos falamos depois. (Você retorna a andar).
- Ir? Ir à onde?! Ta bom, mas faça o que fizer, não me diga que você vai participar da
dança na feira de hoje anoite, essa história de casamento será a tua ruína! (ele grita com o seu
tom humorístico).
Enquanto você se dirige ao mercado, a tua mente questiona o que o Jean quis dizer com "a feira de hoje anoite". Você não sabia que teria uma feira esta noite, apesar que se tal for verdade então explicaria o porquê de todas as decorações espalhadas pela praça e de todas as pessoas carregando caixas para lá e para cá.
Tendo finamente cruzado a praça e chego ao mercado, você compra o sal que Irene pediu - mais alguns suprimentos -, até que a conversa de dois guardas te cativa:
- Você ouviu o que o capitão disse? É verdade que outras vilas na região também foram atacadas?
- Acho que sim, um amigo meu disse que o batalhão inteiro do irmão dele foi dizimado enquanto checavam as florestas que cercava uma vila não muito distante daqui... Ele disse que o batalhão foi literalmente retalhado em pedaços, como se algum tipo de animal os tivesse atacado. - Isso é perturbador, você acha que foi feito pelo mesmo demônio que as pessoas viram aqui durante o incêndio?
- Demônio? Quê?! Eu aposto que foi algum lunático querendo chamar atenção...
- Não sei não cara, eu já vi umas merdas estranhas na minha vida, mas isso... isso é outro nível.
- De qualquer forma, você escutou o capitão, fique de olhos abertos para qualquer coisa
suspeita. Até onde sabemos, pode ser aquele grupo de ladrões de novo... malditos bastardos!
Apesar de não ser muito interessado nesse tipo de conversas, o tom em que os guardas
falava é o bastante para te deixar preocupado, dado que, você nunca soube quem ou o que havia
causado o incêndio, e apesar da vila estar mais uma vez segura, a idéia de que ladrões
caminham livre é o bastante para te preocupar.
Durante a plenitude da caminhada de volta para casa, você não consegue espantar o
pensamento de que há algo suspeito em relação à ajuda real: Desde a queda do Conquistador,
a realeza e a Guarda do Reino não vinham sido muito presentes em relação às vilas de menor
importância, de certa forma, toda a atenção era voltada às capitais, deixando o resto a própria
mercê. Logo, ao menos que o incêndio tenha sido causado por algo questionável, não há
precedente para a ajuda deles, especialmente considerando que haverá uma feira hoje à noite...
É quase como se eles estivessem encobrindo algo.
Uma vez que você chega em casa ainda perdido em pensamentos, a tua esposa te questiona em um ton carinhoso:
- Você voltou. Conseguiu comprar o sal que lhe pedi?
- Sim amor, aqui está.
- Ótimo! A comida está quase pronta, você poderia arrumar a mesa enquanto isso?
Após colocar a sacola com o sal em cima da mesa da cozinha e pegar alguns pratos, você segue para a sala de jantar e começa a organizar a mesa.
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