Lilian tinha poucos bens e mesmo levando todos para o apartamento eles cabiam em apenas um cômodo, porém ela quis espalhar suas coisas pela casa. Não que tivesse feito bagunça. Não. Ela… só espalhou seus pertences por onde podia: roupas no guarda-roupa; livros empilhados num canto da sala; no banheiro um bonequinho do Yoshi que Lucca a dera de presente depois de uma promoção no McDonald's; uma luminária em forma de maçã no quarto e o material de escola… Bem, esse estava jogado no sofá.
Pouco antes do meio-dia ela percebeu que a casa não tinha comida, então a jovem saiu em busca de um supermercado ou mercearia e, quem sabe, uma padaria. Ela encontrou uma mercearia na esquina seguinte, mas achou o preço do arroz relativamente caro neste estabelecimento, então continuou procurando.
O supermercado não ficava muito longe dali, mas os preços não estavam tão diferentes do que no estabelecimento anterior, então a jovem chegou a conclusão de que comprar coisas naquele bairro era mais caro e que, portanto, ela compraria o que fosse preciso no caminho de volta da escola. O que gerou outro problema: como ir para a escola dali? Ela não fazia a menor ideia. Mas achou promissor quando descobriu uma padaria com preços parecidos aos de perto da casa de seus pais.
Na padaria ela comprou dois pães, 50g de mussarela e de presunto, duas latinhas de refri (que por algum motivo aleatório da vida são mais baratas que as de suco) e quando foi pagar, perguntou ao caixa se a escola dela ficava muito longe dali e, para a felicidade dela, não. Melhor dizendo, era praticamente a mesma distância da casa dos pais até a escola, ou seja, uma distância que pode ser feita a pé. O que era bom, uma vez que a casa estava necessitada de comida, ela poderia passar no centro comercial onde a escola se localizava ainda hoje!
E assim o fez, depois de almoçar um pão com mussarela e presunto, acompanhado de um refrigerante de uva.
Era uma caminhada para ajudar na digestão, ao menos era o que ela ficava repetindo ao caminhar no Sol escaldante.
A loja estava para fechar, mas nem por isso estava menos cheia. A loja tinha de tudo, ou quase tudo, que uma casa pode precisar e vendia as mercadorias ao preço fixo de R$2,00. Como lucrar assim? Lilian suspeitava que era com as mercadorias que não valiam nem metade desse preço, mas que as pessoas compravam mesmo assim no embalo da compra.
Detalhes a parte, Lilian comprou um despertador vagabundo, que, provavelmente quebraria em alguns dias, shampoo e condicionador de uma marca desconhecida e duvidosa, sabonete e uma borracha nova (a dela estava acabando). Aproveitou, também, para passar no supermercado e comprar um pacote de arroz, um de feijão e vários de miojo, papel higiênico e, apesar dos protestos mentais contra o mundo de dinheiro que ela estava gastando, comprou algumas frutas.
Como era de se esperar o caminho de volta pareceu bem maior do que na ida, provavelmente por causa do saco de arroz. Por um bom tempo considerou colocá-lo na cabeça e sair equilibrando, o que ela só não fez por ter se perdido e ter entrado em pânico. Por fim ela acabou chegando ao prédio, mas ela estava desanimada demais para fazer qualquer coisa além de deitar e descansar.
Ao menos foi o que ela pensou até ver os livros e cadernos em cima do sofá, neste instante a culpa bateu e ela se sentiu obrigada a estudar para compensar os dias em que matou aula. Principalmente porque no dia seguinte teria prova de matemática e de literatura. E como aluna responsável que ela é, ela enrolou o máximo possível ao guardar as compras.
Quando não dava mais para enrolar ela começou a estudar por sua matéria preferida: literatura! Desde o final do renacimento os movimentos literários ficaram mais… distintos e por vezes confusos, mas nem por isso Lilian gostava menos deles, principalmente devido às obras tão sui generes que seu professor passava ou recomendava, sem contar que estava irritada com Stevan.
Já era crepúsculo quando a garota terminou de ler os textos. E ao olhar pela janela e pensar em números a garota resolveu tomar um banho no seu novo banheiro. Enquanto se ensaboava, ela ouviu música vindo do andar de cima, não que ela gostasse de algum gênero específico, mas ela se viu cantando em pouco tempo.
Bom.
Distrações, de qualquer tipo, eram bem-vindas.
Depois do banho ela sentiu fome e, portanto, preparou seu jantar: miojo sabor legumes, o mais perto que ela chegaria de uma refeição saudável por um tempo.
Em meio a música Lilian jantou e começou a estudar para a prova de matemática. Os primeiros exercícios até que deram certo, o problema veio pouco depois do terceiro, quando a resposta encontrada não batia com a do livro e, para colocar a cereja em cima do bolo, a próxima música teve um palavreado muito baixo, além de ser quase uma descrição de sexo. Pouco a pouco, ela foi perdendo a paciência, e, quando percebeu que ninguém no prédio parecia se importar ou, ao menos, parecia que alguém ir reclamar demoraria mais do que ela estava disposta a esperar, ela se ajeitou e saiu em direção ao som.
Por ironia do destino ou simplesmente para irritá-la, o som vinha do apartamento imediatamente acima ao dela.
Ela pressionou o botão da campainha e esperou.
Nada.
Novamente, ela tocou a campainha e desta vez, talvez, ela tivesse deixado o dedo mais tempo pressionando o botão.
Esperou mais alguns segundos e nada. Quando estava para tocá-la pela terceira vez a porta se abriu revelando um rosto familiar agarrado por uma figura feminina, ambos segurando uma lata de cerveja.
-Boa noite, - começou ela - amanhã eu tenho duas provas e não tive tempo de estudar por causa da mudança. - uma meia verdade - Será que o senhor poderia pedir para abaixar um pouco o volume da música?
Stevan se desvencilhou da mulher sussurrando algo em seu ouvido que a fez se afastar e sorrir, deu um passo para fora, empurrando Lilian e fechando a porta.
-Desde quando você mora aqui?
-Tecnicamente desde sexta, mas terminei a mudança hoje.
-E por que deixou pra estudar de última hora?
-Não deixei. Só estava estudando literatura antes. - por que mesmo ela tinha que dar satisfações a ele? - Mas tudo bem, uma nota ruim não vai me matar, mas ainda gostaria que abaixassem o som.
O professor ficou quieto, pensando. Enquanto se encaravam, ela percebeu que mesmo que se tirasse uma nota ruim, se pudesse culpá-lo, ela se sentiria bem. Isso fazia dela uma má pessoa? Uma péssima aluna? Certamente ela não ligava.
-Tudo bem. Vou abaixar o volume.
-Obrigada. - ela tinha mesmo que lhe agradecer? Afinal, tinha que ter alguma lei que proibisse isso.
O professor acenou com a cabeça e quando a jovem se dirigia para a escada ele disse:
-Tudo bem?
-Tudo. - disse se virando para o mais velho com um sorriso que não chegava aos olhos.
Stevan não acreditou nela, principalmente visto que seus olhos, que até sexta-feira refletiam o vazio, estavam afogados em culpa.
-Sabe que pode contar comigo se precisar de alguma coisa, né?
-Obrigada, professor. - ela queria, e muito, ir embora dali.
-Se precisar de algo, fora do horário de aula, pode bater aqui. - não é uma proposta que Stevan fazia frequentemente ou para qualquer um, mas a garota conseguia parecer pior a cada dia, então se tivesse alguma figura de autoridade do seu lado e próximo à ela, talvez a daria um conforto maior.
-Certo. - disse usando seu melhor sorriso de garçonete.
De volta a seu apartamento, Lilian se viu obrigada a estudar, já que a conversa com o professor fez a música cessar, só que uma parte distorcida dela se sentia obrigada a fechar a prova de Stevan no dia seguinte.
A garota desmaiou em cima do caderno, após resolver quase todos os exercícios de revisão, e só foi acordar com os primeiros raios de Sol, o que quer dizer que era cedo, provavelmente. Por força do hábito ligou o computador para ver se tinha recebido algum e-mail, mas quando abriu o navegador ela se deu conta de onde estava e que lá não havia nada além de eletricidade e gás (cortesia de Benjamin). Mas ao menos ela pode ver as horas.
Sem muita pressa ela se arrumou para escola, arrumou na mochila o que precisaria no dia e foi tomar o seu café da manhã super saudável ( pão com presunto e mussarela, refrigerante de limão e uma pera), ela aproveitou para lavar algumas frutas, para levá-las de lanche. Antes de sair conferiu se na carteira estavam seus documentos, cartão do banco e do ônibus, além do dinheiro para o caso de alguma emergência.
Ela saiu um pouco mais cedo do que ela saía antes( para do caso dela se perder novamente) e foi andando com toda a calma que ela não deveria estar sentindo, mas que tomava conta dela.
Na escola ela evitou os colegas, revisando a matéria das provas e pela primeira vez na vida ela teve certeza de que zerou a prova de matemática, já a de literatura ela ficou em dúvida numa questão fechada, mas esperava ir bem.
No decorrer do dia ela não sentiu fome, mas se obrigou a comer uma maçã no intervalo da manhã e no almoço ela comeu uma pera. Embora parecesse pouco, as frutas pesavam como chumbo no estômago da garota. No final da aula, a jovem passou no supermercado para comprar leite, óleo, biscoito e temperos.
Sem pressa, Lilian voltou para sua nova casa. Ela não tinha mais compromisso com o horário, percebeu mais cedo, mas também não tinha nenhum lugar em específico em que queria passar o tempo. Então o máximo que ela fez foi passar em algumas lojas de telefonia, para pegar alguns panfletos.
Mais tarde daria uma olhada neles.
Passara um pouco das 19h quando ela entrou no apartamento e decidiu jantar miojo. O grande dilema era qual sabor: galinha caipira, tomate, legumes ou carne grelhada? Provavelmente não o de legumes, mas o de galinha caipira é o usual, a grande pedida. Por que não? Enquanto observava a água amolecer o macarrão, ela pensou:
“Eu podia ter comprado ovos ou quem sabe alguma carne de segunda…” - fazendo uma nota mental para o dia seguinte.
Enquanto comia a menina lia a matéria nova de português, depois faria a lista de revisão de biologia e mais tarde ainda deveria descobrir como fazer o trabalho de química. E quando ela chegou a conclusão que DNA e RNA era a matéria de biologia em que ela teria que decorar menos coisas, a campainha tocou.
-Boa noite. - disse um senhor de meia idade, baixo, barrigudo e de óculos.
-Boa noite.
-Seus pais estão?
-Depende, pra quê?
-Oh, me desculpe! - disse espirituoso - Eu me chamo José e sou o síndico do prédio.
A menina o olhou de cima a baixo, com o único motivo de achar estranho esse homem em específico ser o síndico.
-Eu moro sozinha. - respondeu por fim. E agora foi a vez do homem olhá-la de cima a baixo.
-Não creio que haja algum pai que deixaria uma filha morar sozinha em tão tenra idade.
O ênfase que o homem deu a palavra filha fez com que Lilian tomasse uma posição contra a ele.
-Bem, os meus não quiseram nem saber pra onde me mudei.
José a encarou e Lilian sustentou o olhar.
-Pois bem, - disse insatisfeito - teremos uma reunião de condomínios em poucos dias, a data está escrita no topo da folha. Sua presença não é obrigatória, mas seria bom para conhecer os demais moradores. - o velho usava um vocabulário mais maduro na esperança de desbancar a mais nova e fazê-la chamar um adulto - Estas são as normas do prédio - a garota recebeu uma folha impressa com regras dos dois lados - e mais uma coisa… o valor do condomínio aqui é relativamente mais barato devido a festas realizadas frequentemente no andar em cima deste.
-Ah. - “Muitas garotas ficariam surpresas com isso”, pensou.
-Vejo que já teve contato com a da noite passada.
-Sim, infelizmente Stevan diminuiu o som depois de conversarmos…
-Então foi você… - o homem começou - Não espere que ele volte a fazer tal cortesia.
-Tudo bem. - mesmo sem gostar de fazer conta, o cérebro dela rapidamente montou a equação: “festa antes de prova + nota ruim = ter um motivo para brigar com Stevan”, ela sairia prejudicada, porém, na cabeça dela, valeria a pena. - Mais alguma coisa?
José olhou para dentro do apartamento da jovem a procura de alguma coisa, alguém, percebeu ela.
-Acho que é tudo por hora. Se precisar de ajuda é só tocar no 402.
-Ok. Obrigada. - disse com seu sorriso de garçonete fechando a porta na cara do mais velho.
Depois de terminar a lista de biologia a jovem, correu os olhos pela lista de regras do condomínio. As únicas que ditariam sua vida de agora em diante, para então tomar um banho rápido, programar o despertador, e ir dormir.
Lilian dormiu poucas horas e começou a ter um sono mais pesado quando o despertador tocou, porém, ainda assim, não achou ruim. Também não se incomodou quando percebeu que não tinha comprado pão, ela simplesmente comeu um pouco de biscoito acompanhado de leite.
Era apenas mais um dia.
De lanche ela levou o resto do pacote de biscoito mais uma carambola.
Durante às aulas tudo ocorreu bem, ou quase. Stevan continuava a irritá-la com seus olhares curiosos e indecifráveis. Por fim, ela decidiu ignorar, até porque, com a nota que ela tirou na última prova, ela não tinha coragem para encará-lo.
No horário do almoço a garota passou na secretária da escola informar sobre sua mudança de endereço. A garota e a funcionária discutiram sobre a situação da mais nova por quase 20 minutos, antes de ser decidido que Lilian deveria preencher um formulário que seria entregue a ela em três dias.
O restante do dia passou sem ter muito o que comentar.
Só que dessa vez no caminho para casa ela comprou alho, ovo, pão e margarina. Ela se sentiu estupidamente feliz ao pensar que, aos poucos, a geladeira dela ficava mais e mais cheia, ganhando cor e vida.
No caminho para casa ela pegou mais daqueles panfletos, que ela ainda não olhou, com pacotes de telefonia e alguns de loja de eletrodomésticos.
Depois ela olharia.
Era o que repetia para si mesma.
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