— É, e indo justo para um dos lugares mais perigosos do mundo? — completou o menino chamado Pyke Buster ao lado dela. — Vocês fugiram, é?’
— Não! Eu… é complicado — acrescentou Artur desviando seus olhos encabulados para a pilha de barris ao lado das caixas fechadas onde o grupo se acomodava para papear. — De qualquer jeito… precisaríamos de uma autorização para vir, se esqueceu?
— Que você poderia muito bem arrumar de qualquer outro adulto — argumentou um menino de cabelos ondulados cujo nome já o havia escapado da memória. — Fala sério, foi seu pai que deu a vocês permissão?
— Eh…
— Como? O ameaçou?
— Cla-claro que não!
— Então o enfeitiçou?
— Não sou um feiticeiro!
— Como se precisasse ser um — murmurou o jovem Buster com um sorriso desdenhoso naquele rosto de pele morena repleto de sardas, por baixo daqueles cabelos negros e levemente arrepiados.
— Meu irmão só tem oito anos e eu, mesmo se soubesse conjurar feitiços, jamais lançaria um contra o meu pai, tá? — manteve-se firme.
— Então… o que aconteceu? — perguntou a menina Turner visivelmente interessada.
Aquela jovem era a única garota recrutada para aquela embarcação. Seus cabelos escuros, volumosos e suavemente cacheados repartiam-se no centro da cabeça e recaiam pelas laterais de um rosto fino e pequeno até os ombros desnudos.
— Sei mais ou menos o que aconteceu — informou o rapaz alto e musculoso de pé logo atrás, seu nome era Scott Raymond.
Seus cabelos loiros e lisos que tombavam sobre a nuca esvoaçavam à medida que o vento atingia aquele espaço.
— Acompanhei de perto algumas coisas, — continuou ele —, mas eu também não entendi muito bem o que houve, por que não conta para a gente, hein Artur? — sugeriu com seu sorriso carismático e formoso.
Ao reparar como um mero ouvinte outras pessoas compartilhando coisas do passado tão espontaneamente ali, parecia até ser uma coisa fácil de se fazer, mas o menino Allen se perguntava se fora de fato uma boa ideia começar a se abrir para estranhos. Havia algumas coisas que poderia ser melhor guardar a sete chaves, coisas que poderiam lhe transformar até mesmo em um alvo fácil de julgamentos e pôr em risco a nova trajetória que se iniciava na sua vida.
Aquela tarde pitoresca e arejada propiciara um clima aprazível de conversa e descontração naquele convés, circundado por uma imensidão de água para onde quer que a vista alcançasse. Eram curtos os momentos de descanso durante aquelas semanas exaustivas no mar, mas todas as pausas pareciam ser únicas.
Era incrível se ver rodeado de pessoas da sua idade assim, interessadas no que ele tinha para dizer, com seus olhos fixos e curiosos voltados para ele. Artur jamais imaginou que faria tantos amigos assim algum momento. Logo uma pessoa que passara toda infância com somente uma companhia, companhia esta que, por sua vez, mal podia ver em seu dia a dia e que agora estava a milhas de distância.
O rapaz voltou seus olhos contemplativos para as velas brancas e distantes que balançavam serenamente com a força do vento. Depois, os repousou sob um garotinho que trabalhava lavando o assoalho de madeira com um esfregão a poucos passos de si.
O semblante inquieto naquele rostinho suado externava todo o desconforto de se estar ali. Era um pouco desagradável ver aquilo, afinal aquele era seu irmãozinho, sua maior responsabilidade, agora mais do que nunca.
Suas vidas haviam mudado de forma tão repentina que era até assustador de se pensar. Poucos foram os dias responsáveis por ele estar ali com Harry. Dias tempestuosos em todos os sentidos, dias incomuns e apreensivos, porém, definitivos para o novo ato que se iniciara em suas vidas.
Ao menos Artur estava feliz com aquilo, seu irmãozinho logo se acostumaria também. E com sua visão ainda direcionada para o vasto poente, o rapaz começou a falar:
— Tudo começou com uma tempestade.
— Uma tempestade? — repetiu Pyke. — Aquela?
— Sim, aquela tempestade — frisou.
∴
Relâmpagos estrondosos iluminavam todo o céu noturno de Calvária. Rajadas de vento frio tomavam as ruas e os becos escuros da aldeia, apagando as chamas dos lampiões e agitando energicamente as bandeiras dos mastros. Ondas colossais chocavam-se violentamente contra a costa rochosa da ilha, balançando as embarcações de madeira ancoradas ao longo da baía e fazendo as amarrações que compunham o porto rangerem alto.
A chuva forte batia nos telhados das construções rústicas como se fosse uma enxurrada de pedras de granizo. A água escorria pelas ruas desprovidas de pavimentação criando grandes piscinas e córregos de lama.
Com uma estrondosa explosão de raios no céu, Artur Jay Allen despertou sobressaltado de seu solene descanso. O menino, o qual repousava confortavelmente por baixo do seu velho e rasgado manto de pele, sentou-se ofegante sobre a colcha e esfregou seus olhos pesados de sono com ambas as mãos.
Após restaurar o ritmo de sua respiração, ele apoiou seus pés aquecidos no chão e encarou por um instante o temporal que se formara pela pequena janela trincada do seu quarto.
Devia ser madrugada, ele gostava da madrugada. Do seu frescor, do silêncio, da placidez que o permitia refletir, descansar, que permitia fazer coisas longe dos olhos de outros.
Harry, o qual dividia o aposento com ele, repousava como uma pluma ao lado, não movia músculo algum, somente seu peito conforme suspirava e inspirava calmamente. Os trovões não pareciam incomodar nem um pouco o sono de seu irmãozinho.
O rapaz se ergueu de sua cama e, a luz dos lampejos contínuos do céu, acendeu uma vela fixada em um candelabro na escrivaninha abaixo da janela. A passos sorrateiros e descalços, ele abandonou o conforto do seu quarto e caminhou até a pequena sala de estar de sua singela choupana de madeira, cujas tábuas vibravam conforme o vento a atingia.
Naquele ambiente sossegado, sobre uma velha poltrona vermelha, descansava seu pai pacificamente, aquecido pela pequena lareira de pedra que permanecia viva e cintilante. A lenha queimada estalava suavemente sob as chamas amarelas, que formavam agradáveis sombras dançantes ao redor.
Aquela parecia ser uma madrugada pacífica e chuvosa, indistinta das demais. Silenciosa, exceto pelo gotejar incessante da chuva, do uivo do vento frio e dos leves ressonares dos adormecidos pelo alojamento.
No entanto, vindo de quebra àquela monótona calmaria, vozes distantes inesperadamente começaram a ecoar pelo lado de fora da moradia, assim como o som de passos sincronizados, atingindo despreocupadamente as poças que tomavam os becos, as veredas e as ruas da aldeia.
Curioso, o rapaz aproximou-se furtivamente de uma janela levemente embaçada, a limpou com a manga da veste e tentou observar o que estava acontecendo através do vidro regado pela água da chuva.
Diante de si, ele observou um grande grupo de homens providos de armadura marchando vigorosamente para a mesma direção. Nunca a guarda agira desse modo naquela aldeia, já que nunca houve motivo para tal.
Não era exagero constatar que alguma coisa incomum estava acontecendo naquela noite.
— Mecham-se, homens! — berrou um deles, este montava em cavalo marrom, cuja pelagem embebida pela água do temporal brilhava com a incidência fraca das luzes dos lampiões.
O jovem Allen então, escutou passos suaves e descalços se aproximando pelas suas costas. Instintivamente ele se virou e avistou o pai próximo a si, enquanto esfregava seus olhos sonolentos com os punhos calejados.
— O que faz de pé? — perguntou.
— Acho… que aconteceu alguma coisa.
— Como é?
— Não… não sei. Olha! — apontou.
Larry esticou seu pescoço enrugado para bisbilhotar a rua pela mesma janela o qual o filho contemplava a suspeita mobilização.
Seus olhos cada vez mais semicerrados indicavam preocupação.
Curiosos, os vizinhos abandonavam suas camas e seus alojamentos para observar a guarda em sua suspeitosa andança, como se aquilo fosse um mero desfile noturno, uma procissão, uma ilustre atração aos olhos do povoado.
— Pode ser sério — constatou o pai apreensivo sem mover o olhar. — Acorde seu irmão e vista-se! — ordenou. — Vamos ver o que está havendo.
— T-tá!
∴
Após uma curta caminhada atravessando a aldeia, a pequena e humilde família finalmente chegara ao local onde os guardas e os moradores se concentravam naquela madrugada. Estavam todos diante de um precipício, em uma costa rochosa da ilha.
A chuva finalmente havia dado uma trégua, mas o vento permanecia congelante.
Larry puxava seus dois filhos o mais próximo possível do evento. Ele se pôs acima de uma subida irregular e de lá conseguiu, enfim, enxergar o que perturbara o sono daqueles indiscretos calvarianos.
Tratava-se de um naufrágio, bem nos limites da ilha.
As pessoas testemunhavam, sob o sereno, um trabalho ávido de resgate. Dezenas de botes cruzavam as águas agitadas do recife, desembarcavam em um píer não tão distante com tripulantes e retornavam vazios até a embarcação acidentada, encontrada encalhada sobre algumas rochas pontiagudas que atravessavam brutalmente o casco.
— Veja só quem também está de pé, hein?! — comentou uma voz grave e vigorosa que chegava por trás da família.
Larry se virou junto de seus filhos se viu perante a um companheiro de trabalho de longa data, aproximando-se deles enquanto esbanjava um grande sorriso em meio a um emaranhado de barbas negras, espessas e maltratadas. Seu corpo robusto se destacava na multidão, trajando a mesma vestimenta que utilizava sempre na ferraria.
— Gowen! — saudou. — Vejo que não se conteve. Teve que vir bisbilhotar também, não?
— Victor me chamou aos berros ao ver a patrulha nas ruas — esclareceu o homem referindo-se ao seu filho, grudado em sua perna.
Aquele menininho era que melhor amigo de Harry. Seus olhos joviais externavam um crescente entusiasmo no lugar do sono ao vê-lo.
— A pacificidade parece despertar a curiosidade alheia, não é mesmo amigo? — tornou Larry a dizer.
— De fato. Qualquer coisa que acontece por essas bandas já é motivo para acordar toda a aldeia. Hehe!
— E quem são os passageiros? Sabe dizer?
— Ouvi de um guarda que se trata de um navio de recrutas que veio da capital e acabou desviando a rota por causa da tempestade. O leme deles quebrou, por isso perderam o controle. Tentaram conduzir o navio pelas velas, mas acabou dando nisso.
— Legal! — acrescentou Harry sorridente.
— É, né? — concordou seu amiguinho rechonchudo correspondendo com o mesmo ânimo.
— Não há nada de legal nisso, meninos — interviu o Sr. Allen com seriedade. — Foi um grave incidente. Um prejuízo para a coroa que possivelmente vai sair de nossos bolsos.
— Esse não é um navio de Lunélia, Larry — informou o velho Gowen.
— Não?
— É de Kingshill.
— Do… reino de Kingshill? Ora, ora. Então será que…
— O que?
— De-deixa pra lá! Não… tem importância — esquivou o pai estranhamente. — Bom, então é só isso, não é? Parece que não há nada para nos preocuparmos aqui. Vamos retornar às nossas camas, crianças.
— Mas já? — contestou Harry frustrado.
— Ora, fique um pouco mais, homem! A criançada da ilha está se divertindo muito em conhecer os jovens estrangeiros.
— Jovens? — indagou Artur, sondando o distante navio encalhado com um olhar ainda mais curioso.
Ao analisar com um pouco mais de atenção, rapaz notou algo realmente interessante — a tripulação desembarcada pelos botes era formada, em sua maioria, por crianças e pré-adolescentes da sua faixa etária.
— Mas… — murmurou ele intrigado —, o navio não é pra recrutas?
— Sim, ora essa! São recrutas que vão para Rostwood esse ano — respondeu Gowen com naturalidade.
— Rost… wood? — repetiu confuso.
— É, ora bolas! — continuou o homem, cruzando seus braços corpulentos. — É um desses navios enviados de Kingshill para pegar jovens de todos os cantos de Arcádia. Este aí veio de Lunélia.
— Mas… que lugar é esse?
— O que? Rostwood?! — inquiriu Gowen indignado. Ele encarou com assombro o amigo ao lado, o qual parecia coçar a cabeleira com o rosto desviado como se estivesse um tanto incomodado com a conversa. — Larry, o que você ensina para os seus filhos?
— O suficiente — respondeu aparentemente aborrecido. — Vamos voltar agora meninos, o que está acontecendo aqui não é da nossa conta.
— Não pai! — retorquiu Artur. — Eu queria conhecer os estrangeiros!
— É pai, deixa! — pediu Harry com um sorriso de entusiasmo.
— Não! — recusou em desavença. — Está frio e muito barulhento por aqui, além disso, vocês precisam dormir.
Diante da posição dura do pai os dois não tinham muita escolha.
— Posso ir, pai? — perguntou o jovem Victor.
— Claro meu filho, faça vários amigos! — respondeu o homem, afagando seus cabelos.
Diante da arbitrariedade testemunhada, Harry protestou:
— Viu? O pai do Victor deixou ele ir.
— Eu não sou o pai do Victor.
— Ah, velho amigo. Deixe as crianças se divertirem! — apelou Gowen. — Não é sempre que um navio repleto de amigos novos encalha na nossa costa. Não é?
— É pai! — insistiu Artur ansioso.
— Deixa!
— NÃO! — berrou Larry inesperadamente, arrancando todos os sorrisos nos rostos ao seu redor. — Vamos embora!
O homem então, puxou seus filhos com hostilidade para longe da multidão, retornando pelo mesmo caminho pelo qual viera sem pausar seus passos ou olhar para trás.
∴
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