— Uau! — exclamou Anna após processar tudo o que vira. — Que legal!
— Você é órfã, não é? — perguntou Victor sem qualquer delicadeza. — Vai tentar conseguir um pai ou guardião para se inscrever?
— Victor, olha o que diz! — repreendeu Artur.
— Não, está tudo bem! Mesmo se eu pudesse, não tenho interesse de ir. — Ela observou o sol alaranjado surgindo no horizonte enquanto as nuvens de chuva se dissipavam e o sorriso angelical em seu rosto se apagou. — Pelos deuses! Está ficando tarde, eu… eu preciso voltar antes que descubram que saí. Tchau, Artur!
Ela se esticou e deu um beijo no rosto do menino e, em seguida, correu em direção ao abrigo desaparecendo no meio das pessoas que lá permaneciam.
Quando Anna sumiu de sua vista, o rapaz caminhou pensativo até o píer onde antes estavam os jovens recrutas e, de lá, encarou o amanhecer belo e cintilante que iluminava aquele novo dia.
O sol alaranjado vinha surgindo no horizonte, enquanto a gélida brisa da manhã batia suavemente em seu rosto e bagunçava seus cabelos.
— Victor — chamou ele. — O que seu pai te falou sobre esse lugar?
— A Academia?
— Isso.
— Ele disse que é um lugar mágico! — respondeu o menininho com um aparente brilho no olhar. — Os alunos moram num castelo!
— Em um castelo?
— É! Eles ensinam um monte de coisa.
— Que tipo de coisa?
— Ah, acho que o bastante para saber se defender por aí.
— Se defender?
— Sei lá, eu sei que eles ensinam a lutar, a conjurar magias, treinam até arco e flecha e aí você se aprimora no que quiser, eu acho.
Aquilo parecia perfeito, aquilo parecia um presente divino, talvez tudo o que aquele menino precisava para seguir o caminho de seus sonhos, ou para dar os primeiros passos até eles. Relembrando das palavras do barão ele repetiu a si mesmo:
— “Gerações de novos guerreiros”, não?
— Vai tentar ir, é? — perguntou o menino.
— Talvez essa seja a minha única chance de sair deste lugar e seguir a minha vocação, mas… meu pai jamais vai aceitar — acrescentou em desânimo.
Victor se aproximou dele e se esticou para encará-lo.
— E se você pedir com jeitinho?
Artur não se conteve com tamanha inocência e soltou uma branda gargalhada. Em seguida, esfregou gentilmente o cabelo do jovem, o qual continuou a encará-lo confuso.
— Que foi?
— Você e Harry são mesmo idênticos — respondeu.
— Estou falando sério! — insistiu Victor, afastando a mão do rapaz de sua cabeça. — Sempre quando peço as coisas para o meu pai com jeitinho, ele aceita.
— Meu pai é diferente do seu, Victor. Mas é, quem sabe? — acrescentou o menino brevemente ao analisar as possibilidades com um sorriso sonhador. — Depois de uma conversa compreensiva, talvez ele deixe, né? Sei que lá, no fundo, ele sabe que não pode me manter preso para sempre.
∴
— De jeito nenhum!
— Mas pai…
— Cale a boca Artur! — zangou-se. — O que vivo lhe dizendo sobre sair dessa ilha?
— Mas…
— Isso só pode ser influência daqueles livros absurdos!
— Eu não tenho lido mais eles! — mentiu.
Era incrível e ao mesmo tempo lamentável como meras palavras estampadas em páginas poderia perturbar alguém como Larry Allen, um homem que outrora, carregara um grande potencial para estar até mesmo mencionado no meio delas, como um grande guerreiro que um dia foi.
Sim, era algo até difícil de se imaginar, mas aquele homem possessivo e autoritário, aquele sujeito que só parecia demonstrar insegurança quanto aos passos de seus filhos um dia foi um bravo herói, esquecido pelo tempo, apagado pelo seu próprio paradeiro do afastado reino do norte.
— Não quero mais falar sobre isso, eu estava com um bom humor, você até tirou o meu apetite — informou afastando o prato de ovos mexidos preparados pelo filho em uma tentativa de agradá-lo. — Agora me dê licença, preciso ir trabalhar para sustentar esta casa — acrescentou erguendo-se da cadeira.
Larry trabalhava com Gowen forjando diversos modelos de espadas e cajados diferentes para apresentá-los a corte. Artur não conseguia compreender como diabos um guerreiro com uma história tão contundente como o seu pai, tornou-se um mero ferreiro na aldeia mais isolada do mundo.
Seu passado sempre foi um mistério, não havia muita explicação para o fato de um homem como ele ter desistido de suas ambições assim. As vezes Artur se pegava questionando sobre isso, ficava inquieto com a contradição que aquilo representava em sua vida, não conseguia aceitar, mas também não tinha voz para protestar.
— P-pai, por favor! — insistiu o menino, amargurado. — Muita gente quer ir e eu sonho com uma oportunidade dessas há anos.
— Só eu sei o que é melhor para você, eu sou o seu pai.
— É a minha vida, eu devia escolher também as vezes — queixou-se sem medir o tom de sua voz.
Aquilo parecia ter sido um erro.
O homem, o qual arrumava seu material de trabalho, voltou um olhar inflamado para o garoto e o mesmo recuou os passos para trás.
— Você é uma criança, minha criança e não vai a lugar algum.
— Eu já tenho catorze — murmurou desviando o olhar. — Quando eu vou poder tomar minhas próprias decisões?
— NUNCA! — berrou agressivamente o homem empurrando o filho com violência. — Já falei para calar essa maldita boca!
Acuado, o menino retrocedeu mais alguns passos, temia receber uma bofetada vinda daquele homem instável. Ele não queria perder a compostura também e demonstrar fraqueza então franziu a testa.
Era praticamente impossível uma conversa como aquela não acabar em briga e, ultimamente, eles só viviam brigando e o rapaz sempre saía como o errado, o culpado, castigado pela sua insolência, pelo seu delírio, pela utopia que ele insistia em seguir.
— Por que você é assim? — murmurou aquele homem decepcionado. — Viver lutando as batalhas dos outros não foi uma escolha minha, foi uma necessidade naquele tempo. Eu praticamente cresci na guerra e não desejo isso nem mesmo para os meus inimigos, muito menos para um filho meu. — O homem então, enfurecido, voltou a organizar suas coisas para partir. — Está de castigo por ter me desobedecido mais uma vez!
— O quê?!
— Acha mesmo que não fui no seu quarto pela manhã e vi que seu irmão estava sozinho e a janela aberta? Fui mesmo muito ingênuo ao achar que você não faria uma estupidez como essa. Ficará sem comida e sem sair o dia inteiro!
— Mas…
— E esta conversa está encerrada! — Ele colocou a alça de sua bolsa sobre o ombro e seguiu até a porta da moradia, antes de sair ele pôs a mão na maçaneta e acrescentou: — Não quero vê-lo se envolvendo com esses estrangeiros eles são péssima influência!
O homem saiu pela porta de casa e a bateu com força ao passar.
∴
Na tarde daquele dia, Artur decidiu desacatar o castigo imposto pelo seu pai, para ir buscar água no velho poço da praça de Calvária. Harry poderia muito bem cumprir este serviço em seu lugar, no entanto, o menino não queria nem mais um instante permanecer confinado naquela casa escura, sentir-se ainda mais preso do que já se sentia normalmente. Ele, portanto, pegou um balde de madeira e saiu.
O menino prosseguiu pensativo pelos estreitos becos e ruelas do vilarejo, desviando das carroças, dos cavalos e das pessoas que por lá interagiam.
Depois de uma árdua luta para escapar dos feirantes, Artur alcançara finalmente seu destino, o único espaço com vegetação em meio a aldeia. E no meio de belas e centenárias árvores, havia um poço antigo assentado em blocos de pedras talhadas.
A fila para ele estava imensa, mas rapaz não tinha outra escolha. Enquanto aguardava sua vez, outros se aproximavam por trás com mais recipientes para encher.
O menino já estava acostumado com isso. Acostumado com tudo o que viesse a ser tarefa doméstica, rotineira ou entediante.
De longe ele avistava o porto, sonhadoramente. Seria tão errado assim de sua parte querer uma vida diferente? Embarcar em um navio e desaparecer?
— Pelos deuses, morrerei de sede antes de chegar ao poço — queixou-se uma voz jovial atrás dele.
O jovem se virou e deparou-se com um rosto completamente desconhecido aos seus olhos, o que era difícil de se ver por ali. O rapaz era mais alto e aparentemente mais velho que ele, portando uma bolsa grande de uma alça e um cantil de couro em formato de lua. Seus cabelos loiros jogados para trás esvoaçavam na nuca pelo sopro que vinha do litoral. Aquele era possivelmente um estrangeiro.
— Ah, isso… é comum por aqui — respondeu Artur, esboçando um sorriso constrangedor. Era gratificante ver finalmente um rosto novo.
— Sério que não tem mais nenhum outro poço?
— Sinto muito, essa é a única fonte de água que nós temos.
— Ah, então não tenho muita escolha a não ser esperar.
— É! — confirmou o jovem. Após uma breve pausa incômoda, ele acrescentou: — De… de onde é, hein?
— Portgard, uma aldeia do reino do norte.
— Uau! — exclamou encantado, aquela era a primeira vez que via um nortenho além de seu velho pai. — Então… você está bem longe de casa, não é? O que veio fazer nas ilhas do sul?
— Calvária nunca foi o meu destino. Segui a expedição de recrutamentos.
— Vo-você é um dos recrutas de hoje mais cedo?
— Acertou! A propósito, sou Scott Raymond — apresentou-se o jovem sorridente estendendo sua mão.
— A-Artur Jay Allen — correspondeu apertando a dele com um olhar que não conseguia ocultar a inveja que sentia. — Isso… é incrível! — acrescentou.
— O que?
— Essa viagem, fazer parte disso, dessa aventura — esclareceu o rapaz. — Você é muito sortudo!
— Nem tanto, meu navio naufragou. Se esqueceu?
Os dois compartilharam, então, de uma agradável gargalhada.
— Se deseja ir por que então não se junta a nós? Estão recrutando na sua aldeia.
— Eu sei, é que… meu pai não deixou.
— Pais sempre querendo proteger seus filhos, né?
— Alguns acabam exagerando.
— Hehe! Sei bem o que é isso, só ganhei minha liberdade mesmo quando meu pai veio a falecer. É por isso que estou indo para Rostwood na idade limite para recrutamento, mas o importante é que ainda há tempo para mim e que eu consegui ser um dos escolhidos para embarcar.
Artur abriu um sorriso e respondeu:
— Como eu disse, você é mesmo sortudo! — Ele desviou seus olhos perdidos para longe e continuou: — Meu pai… não me deixa ir com ele nem para a capital. Ele diz que meu destino é nessa ilha e jamais lá fora — revelou abertamente já que se conformara com o fato de que nunca mais veria o rosto daquele menino de novo.
— E por quê?
— Não sei, acho que… ele não confia em mim. Faz todo o possível para me manter… nesse lugar. — O rapaz assumiu um olhar ainda mais infeliz e acrescentou: — Eu… nunca nem soube da existência de Rostwood até vocês surgirem por aqui.
— Nunca?! — sobressaltou-se o jovem Raymond. — Ora! Achei que todos no mundo conhecessem Rostwood.
— Esse lugar é mesmo tão famoso assim?
— Se é “tão famoso assim”? Pelos deuses! Rostwood é considerado o berço da humanidade. Não conhece a história de Anatus?
Artur gesticulou negativamente com a cabeça. Sentia-se estúpido por faltar-lhe tanto conhecimento acerca de um assunto notoriamente famigerado.
— Puxa vida! — exclamou o rapaz assombrado. Perante aquele olhar, o calvariano desviou seu rosto envergonhado para o lado. — Tá, espera! Acho que tenho um exemplar aqui comigo — acrescentou Scott enquanto tateava sua bolsa. De lá, ele então puxou um pequeno livro intitulado “A história dos povos antigos”, folheou e anunciou: — Muito bem, aqui está!
“Rostwood, uma ilha rica em beleza natural e em histórias que envolvem o princípio da humanidade como a conhecemos. Uma terra descoberta por ninguém menos que Anatus, o primeiro homem e o último semideus.”
“Segundo a lenda, quando Anatus constatou que aquela terra era segura, fértil e harmoniosa, ele clamou a Arcanjos, o deus dos elementos da natureza, responsável por todo o equilíbrio dos oceanos, para protegê-la, na esperança de ceder aquele espaço aos primeiros homens. E assim, um violento mar foi criado em torno daquele vasto território, para que apenas seres humanos pudessem chegar até lá, protegendo o local de temíveis invasores.”
— Refere-se… ao Mar de Arcanjos? — interrompeu Artur. — Já ouvi falar!
— Sim, o Mar de Arcanjos. Agora escuta:
“Como uma dádiva de Ágapi, a deusa da vida, aos esforços de Anatus em limpar Arcádia do poder das trevas, nascera ali a primeira civilização. Um povoado simples e próspero para que ele pudesse administrar e treinar novos exploradores para ajudá-lo em sua cruzada pelo mundo afora.
“Quando o Grande Continente foi descoberto, a humanidade se dispersou e Rostwood tornou-se somente uma aldeia com um esplendoroso quartel-general para recrutar e treinar novos exploradores e guerreiros. Anatus faleceu em uma de suas aventuras por Arcádia, mas deixou esse grande legado para trás.
“Anos se passaram e as coisas iam bem para aquele humilde povoado mesmo sem seu maior líder, muita prosperidade chegou.”
— E aí? — perguntou Artur entretido.
— E aí que nada dura para sempre, né? “…anos mais tarde, surgiu uma criatura do submundo, propensa a acabar com tudo. Um demônio chamado Ghaizer.
“Ele se apoderou da ausência do maior guerreiro daquela época para tomar aquela terra cedida aos mortais e, assim, destruir o coração daquele povo primitivo ali estabelecido sob a vontade dos próprios deuses.
“Ghaizer conseguiu atravessar o Mar de Arcanjos, corrompendo-o cruelmente com uma horda de monstros. Ele amaldiçoou a ilha, tornando aquela terra um verdadeiro caos. Muita vida foi perdida e o pequeno povoado de Rostwood foi sitiado por seres das trevas. A raça humana mal nascera e já corria risco de extinção.
“A deusa da vida, Ágapi, ao testemunhar tal extermínio, agiu de imediato. Ela trouxe Anatus de volta à vida, só que dessa vez como um semideus e, assim, a humanidade testemunhou pela primeira vez um milagre divino.
“Anatus, guiado pela sabedoria infinita dos deuses, foi até a ilha e enfrentou Ghaizer com destreza e astúcia e, assim, decepou sua cabeça. Ele salvou o povo sobrevivente do confinamento e expulsou os seres invasores da ilha.
“Rostwood, porém, nunca mais seria a mesma a partir de então, havia sido permanentemente amaldiçoada de forma que nem mesmo Anatus em toda sua grandiosidade foi capaz de consertar; assim, os monstros estavam fadados a retornar para sempre naquele solo. Nem mesmo o Mar de Arcanjos pôde se recuperar.
“Por escolha dos aldeões, Anatus os ajudou a construir uma muralha de mais de vinte jardas de altura em torno do vilarejo e a santificou junto ao solo antes de desaparecer por toda a eternidade. Antes de ir, ele disse uma frase que ficou marcada por toda a história…” — O jovem afastou o livro e perguntou: — Ao menos da frase você conhece?
— N-não — respondeu encabulado.
— Ele disse: “enquanto houver alguém lutando contra a escuridão, haverá sempre uma forte luz servindo de abrigo e proteção.”
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