O tempo fechou no caminho de volta, provavelmente choveria em breve, mas nem por isso a jovem andou mais rápido.
Ela sempre gostou de chuva.
Sentir a água cair do céu na pele, para então escorrer pelo rosto, pelo corpo, era como lavar a alma.
Em frente ao portão do prédio havia uma silhueta feminina levemente familiar, com uma mala de rodinhas e claramente preocupada com a possibilidade de chover. E, apesar do esforço de seu cérebro para reconhecer aquela figura, Lilian decidiu que tentaria ignorá-la. Um bom plano, uma vez que não estava afim de conversar, principalmente com conhecidos.
A cada passo em direção a pessoa, o coração da menina acelerava e ela não sabia o porquê. Até que uma voz doce e familiar falou:
-Até que enfim! Pensei que tinha conseguido o endereço errado! - Giulia. Era Giulia que estava ali, ao vivo e a cores! A menina ficou paralisada com a visão da amiga - O que foi, não lembra mais de mim?
-Como? Quando? - foi tudo o que a mais nova conseguiu dizer.
-Io posso te dizer, mas pode ser lá dentro? - disse apontando com o polegar.
A mais nova abriu um sorriso de orelha a orelha, fez que sim com a cabeça e abriu o portão.
Sem trocarem uma palavra, elas foram até o elevador e quando ele parou no térreo José saiu olhando as duas de cima a baixo. Dentro do elevador Lilian soltou um suspiro e Giulia disse:
-Quem é a figura?
-O síndico. - respondeu a amiga - É melhor você ficar longe dele, se não corre o risco de você amá-lo. - o tom de ironia era quase tangível no final da frase.
-Nossa! Pode deixar que non vou chegar perto.
As duas riram.
O elevador parou no andar onde Lilian vivia e as duas desceram. Lilian mostrou o caminho e abriu a porta.
-Bem-vinda a minha humilde residência! - disse fazendo uma reverência - Sei que não deve ser nada comparada ao castelo que você vive, mas me protege da chuva.
-Besta! - disse a outra rindo. - Io non vivo num castelo, mas agora que você deu a ideia… - as dua riram. Giulia colocou a mala perto do sofá e deu uma olhada em tudo que era possível ver dali, sorriu e abraçou a amiga, que retribuiu o gesto. - Ah! Você non sabe quanta saudade io senti! Nós sentimos! - elas se afastaram, mas seguravam as mãos uma da outra - Tem certeza que non quer ir morar na Itália?
-Hmm… tentador, mas não acho que conseguiria viver com a máfia. Eu acabaria estragando tudo.
-Verdade. Mas sinto tanta a sua falta! Lucca também.
-E como ele tá? - disse entre risos.
-Bem(?)... - Lilian arqueou uma sobrancelha em resposta ao tom duvidoso - Bem puto por non poder vir, bem irritado por ter que sair com uma mulher que mal conhece, bem fulo por ter que assumir os negócios da família, mas feliz por poder pagar o hospital da mamma. - o clima pesou. A mãe deles estava muito doente e não era barato o tratamento.
- E como ela tá?
-Puta da vida. - disse rindo -Basicamente nós caímos de cabeça naquilo que ela mais queria fugir. - o sorriso continuava, mas ele não chegava aos olhos. - Mas chega de falar de nós. Fale de você! Pelo que soube esse apê agora é seu, você tá incomunicável e a pizzaria em que trabalha fechou.
-Como…?
-Nunca subestime os contatos de uma garota, principalmente se ela tiver um pé na máfia.
Lilian soltou a mão da amiga e pôs a mochila no chão ao lado da mala da outra. Suspirou bem fundo e convidou a outra a se sentar com um gesto das mãos.
-Bem, vejamos. Quando a vovó morreu ela me deixou esse apê, que era aonde deveríamos morar se ela não tivesse sido internada, junto com ações e um tanto bom de dinheiro; não tenho telefone ou internet, mas estou trabalhando nisso - apontou os panfletos em cima da mesa - e a pizzaria está em reforma, agora lá vai ser uma lanchonete.
-Uau! Viva o ciclo da vida. Ou qualquer coisa assim. - disse dando de ombros. - Então, quando vou ganhar um tour pela casa?
-Mi casa, su casa.
-Que bom, porque vou ficar aqui com você.
Com um sorriso que mal cabia metade da felicidade dela, Lilian concordou e mostrou o apartamento para a amiga.
Já estava tarde quando uma delas se lembrou do jantar, o que significaria miojo sob condições normais, porém Giulia queria pizza.
“Você sabia que a Itália non é o país que inventou a pizza?! Fui enganada a minha vida inteira!” foi o que ela usou como argumento para convencer a mais nova.
E assim Giulia ligou para o número de um panfleto que ela tinha no bolso e pediu uma pizza gigante metade presunto e bacon e metade de frango com catupiry com um refrigerante dois litros. Claro que a desculpa para ela pagar a conta não podia ser menos mirabolante: “Io vou parasitar na sua casa por uma semana, deixa eu pelo menos pagar o seu jantar de casa nova”. Lilian não ficou feliz, mas a outra não deu escolha.
Durante o banho, Lilian se tocou, involuntariamente, pensando em seu ex, mas nunca contaria para sua visita. Ela sabia o que Giulia sentia por ela.
Na hora que foram dormir, pouco depois da meia-noite, Lilian se desculpou por não ter um enxoval nem coberta para oferecer. Giulia por sua vez abriu um sorriso de orelha a orelha e disse:
-Que bom! Assim io tenho uma scusa para dormir abraçadinha a você. - Lilian arqueou as sobrancelhas para a outra - Prometo non fazer nada, palavra de escoteira!
-Como se você fosse uma. - disse com um sorriso irônico.
-Que maldade! Que tal assim: palavra de estilista.
-Melhorou. - e assim elas dividiram a cama de solteiro (com a mais velha tentando apalpar a outra de vez em quando), até o dia seguinte, quando o despertador tocou, colocando Giulia em desespero, por pensar que estava atrasada para a faculdade.
Isso gerou algumas risadas e reclamações, porém, logo, Giulia já estava desperta e havia se juntado a Lilian na mesa de café-da-manhã, mas sem comer. Ela nunca tomava café-da-manhã, por acreditar que a refeição engorda.
-Antes de você sair, pode me dar uma cópia da chave?
-Claro. - disse caçando a cópia que ela tinha certeza que possuía - Mas por quê?
-Você non vai matar aula para ficar comigo, né? - a mais nova negou com a cabeça - Então se aqui non tem internet nem TV, o quê io vou fazer até você chegar? E pior, só sei cozinhar o que se leva no microondas, e aqui non tem um. Quer que eu morra de fome até você chegar? - disse com uma voz dramática e gestos exagerados.
-Acho que chega de teatro pra você. Pelo resto da vida. - ambas riram e Lilian entregou as cópias das chaves para a amiga. - Tenho que ir agora. Te vejo mais tarde?
-Claro, até enjoar da minha cara.
-Então, até logo.
Pela primeira vez em muito tempo, o dia passou rápido. Lilian até esqueceu de se irritar com Stevan por qualquer que fosse o motivo.
A única coisa que ela queria era ver Giulia, conversar com ela, brincar com ela. Não era pedir muito, certo? Ela merecia essa felicidade, não? Ela esperava merecer.
Sem prestar muita atenção ao seu redor ou ao que fazia, a garota se apressou em tudo o que pôde para chegar em casa mais cedo. E se não fosse por algumas colegas de sala, ela teria esquecido o livro de física (não que ela fosse lamentar se o tivesse feito) e também quase foi atropelada por um carro, mas a favor dela o motorista ultrapassou o sinal vermelho.
Detalhes a parte, ela chegou cedo no apartamento e encontrou mais duas malas de viagem na sala. Sem dúvida alguma era obra de Giulia, mas o que isso implicava, Lilian não fazia ideia se queria descobrir.
-Giulia? - chamou.
-Olás! - respondeu vindo do quarto - Sentiu minha falta? - perguntou com um sorriso.
-Sempre. - disse Lilian indo em direção a amiga. - O que andou aprontando?
-Estive pensando e resolvi que quero você como modelo para um vestido que tenho que entregar como trabalho; pedi para o restante das minhas malas serem entregues aqui e redescobri que sou um desastre na cozinha.
-Redescobriu?
-Sì. Então, non brigue muito comigo quando você ver o fogão e o microondas.
-Microondas!? - a outra parou perto da cama com a mochila a meio caminho até o chão - Que microondas?
-O que eu comprei depois de tentar fazer arroz… e antes que fale alguma coisa pense que eu também sou gente e preciso comer!
-Você comprou um microondas… - sua voz saiu mais aguda do que pensou ser possível.
-É. E como não dá pra levá-lo pra Itália de avião: feliz aniversário atrasado! - disse com entusiasmo exagerado, puxando a outra pelo braço até a frente do aparelho.
-Você… você…- ela não sabia o que dizer.
-Non diga nada, até porque quando ver a panela do arroz vai concordar que precisamos de um.
Atônita Lilian olhou pela cozinha procurando o desastre que justificasse a compra.
No fogão havia marcas de queimado ao redor da trempe, na pia uma panela tampada com o que só podia ser descrito como carvão.
Lilian olhou para a amiga que empunhava um sorriso angelical e uma postura inocente como armas. Ainda sem palavras ela balançou a cabeça em negação.
“Vamos fingir que nada aconteceu.” - foi o pensamento, o único, que a tirou quase que de um estado catatônico.
-Quanto tempo pretende ficar? - mudou de assunto.
-Algo entre uma semana ou duas. Vai depender de como eu consigo me comprometer com as videoaulas.
-Tem certeza que não é um mês ou dois? - perguntou arqueando uma sobrancelha e apontando as duas malas de tamanho médio na sala.
-Ah, nem vem! Chega dessas piadinhas. Quer saber? Ainda bem que você e o Lucca non estão mais juntos! - disse fingindo ter raiva.
-Tá, tá, princesa. - disse indo para o quarto - Se me dá licença eu vou trocar de roupa.
-Tá, mas depois volta aqui pra mim tirar suas medidas.
Lilian foi para o quarto se trocar. Ela ponderou sobre qual roupa vestir, mas era Giulia e ela estava na casa de Lilian. Então a garota acabou vestindo as primeiras peças que encontrou ( um short jeans e uma regata), tirou o sapato e calçou uma rasteirinha e soltou o cabelo do coque que já estava lhe causando uma pequena dor de cabeça. Enquanto isso, Giulia procurava por sua fita métrica em suas malas.
Lilian ofereceu ajuda, mas a outra negou veemente a oferta, até que se lembrou que a fita estava na mala que ela havia trago no dia anterior. Por fim Giulia emergiu do quarto com uma montanha de tecidos, a fita e com uma almofadinha estilosa presa ao pulso com vários alfinetes.
-Prometo que será divertido. - foi o que disse à anfitriã, ao jogar os tecidos no sofá e começar a medir as curvas de Lilian.
Giulia sacou o celular de um bolso muito bem disfarçado, colocou no bloco de notas e começou a anotar cada medição. Enquanto fazia seu trabalho e conversava sobre qualquer coisa que vinha a mente, era possível perceber um ar mais maduro e sério ao redor da estilista.
Depois de terminar as medições, a outra pegou os tecidos em cima do sofá e começou a medir e comparar dados mentais, enquanto os prendia de modo que parecia à anfitriã aleatórios. Vez ou outra Lilian emitia um gemido ao ser espetada, em resposta a outra pedia desculpas quase que automaticamente.
A campainha tocou e Giulia olhou para a amiga com uma pergunta silenciosa. Por sua vez, Lilian negou com a cabeça.
Ela não esperava visitas.
Com uma postura totalmente diferente, Giulia foi atender a porta. Lilian ao ver a amiga passar pelo caminho, já familiar, sentiu um frio na barriga.
Giulia olhou pelo olho mágico e não reconheceu a figura do outro lado da porta, porém admitiu que não parecia perigosa. Todavia, de tanto ouvir seu avô, ela ainda se preparou para o pior, ao abrir a porta.
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