As meninas tiraram o dia seguinte para analisar os preços dos inúmeros panfletos que se amontoavam em cima da mesa. Dentre os melhores, elas ligaram para as companhias na tentativa de negociar um melhor preço para os pacotes sem a televisão a cabo (a princípio Lilian queria apenas a internet, mas descobriu que precisa do telefone fixo para poder ter internet), todavia muitas empresas queriam lhes enfiar o pacote completo goela abaixo, até que Giulia estourou com uma das telefonistas e começou a falar uma mistura de português/italiano que apenas deixava transparecer o quão irritada ela estava.
Depois de Giulia quase jogar seu novo celular na parede e perder a compostura a um nível que deixou Lilian surpresa, as duas passaram para a análise dos dados recém coletados, dando uma pausa apenas para comer.
Pouco depois do almoço, Lilian e Giulia já haviam exposto seus argumentos uma para a outra, com ambas concordando sobre qual seria a melhor opção, então a mais velha pediu para que um de seus homens as acompanhasse até a loja mais próxima.
Andar com o colete era estranho e desconfortável, mais por saber que ele estava ali do que realmente pelo incômodo, porém Lilian não disse nada à ninguém não querendo incomodar. Mas a jovem desconfiava que a melhor amiga sabia ou imaginava o que ela estava sentido, caso contrário não faria sentido a mais velha ajudar a mais nova a se locomover como os enfermeiros ajudavam os idosos na casa de repouso.
O carro as deixou em frente a loja e o motorista saiu para estacionar, lá dentro Lilian teve medo de que a amiga chutasse a gestante para que ela pudesse sentar, porém, com sorte, não foi necessário, o caixa preferencial andou rápido o suficiente para não estourar a paciência da mais velha.
Demorou cerca de 40 minutos para que alguém atendesse as duas. Talvez fosse pelo seu atual estado, talvez não, mas Giulia tomou a dianteira nas negociações, dizendo que o desconto ofertado pelo telefone era duas vezes maior do que realmente era; se sentiu insultada, quando não havia ofensa; se levantou e se ofereceu para começar uma cena…, mas uma vozinha no fundo da mente de Lilian dizia que apesar do zelo, a outra estava se divertindo com os exageros. No fim, elas conseguiram o desconto ofertado pelo telefone e um bônus no serviço de instalação que Giulia disse ser comum na Europa.
No caminho de volta, Lilian expôs seus pensamentos a outra e ambas caíram na gargalhada, se recordando do que acontecera há alguns minutos.
No apartamento Giulia se dispôs a lavar as vasilhas do almoço, para que a amiga pudesse estudar. Grata, Lilian começou a ler e a resolver os exercícios dos capítulos que ela achava que seriam temas das aulas que perdera.
Ao menos foi assim até às 16h, quando Giulia disse que precisava de sal para fazer algum prato para o café-da-tarde.
Lilian pressionou os lábios e depois mordeu o lábio inferior antes de concordar com o pedido. Giulia chegou a oferecer carona, mas a outra negou a oferta dizendo que a distância era curta de mais. Então a mais nova juntou o seu material num canto, pegou sua chave, o celular e saiu.
Na saída do prédio, Lilian olhou para os lados e para o céu. As nuvens estavam escuras e o cheiro de ozônio no ar que enchia seus pulmões indicava que logo choveria, por isso ela procurou um lugar para se sentar embaixo da marquise do Hall do edifício.
De seu lugar, ela observou o céu até a primeira gota de chuva cair, o que não demorou muito, e ela sentiu um enorme impulso de sair para brincar, correr ou apenas ficar na chuva. Lilian queria que sua alma fosse lavada, mas temia que começasse a chorar e a gritar quando sentisse as gotas em sua pele. Ou pior, ela poderia ficar doente!
Sem muito o que fazer, a jovem sacou o celular e abriu a câmera, ela queria ver como seria observar a chuva pela lente de seu novo aparelho, se valeria a pena guardar a memória como recordação. Entretanto, enquanto verificava as funções do aplicativo, ela pode ver o portão da garagem se abrindo para que uma moto levemente familiar entrasse. Um frio súbito subiu-lhe pela espinha, mas decidiu ignorar a chegada do professor.
Pena que ele não pensou o mesmo.
A princípio Stevan subiria até seu andar de elevador direto, mas quando notou que a aluna estava sentada sozinha debaixo da sacada na entrada do edifício, ele decidiu que poderia muito bem subir até o térreo pela escada, e quem sabe, se tivesse sorte, pudesse ver alguma melhora no estado mental dela.
-O que está fazendo? - perguntou ele ao se aproximar dela.
-Observando a chuva. - Lilian estremeceu ao ouvir a voz, mas decidiu que ser curta e grossa resolveria o problema mais rápido do que fingir não escutá-lo.
-E não dá pra fazer isso do seu apartamento? - essa conversa poderia tomar bastante tempo, por isso ele se sentou ao lado dela, para o desespero da mais nova.
-Daria, se eu pudesse ficar lá.
-E por que não pode ficar em sua própria casa?
-Me mandaram comprar sal.
-Está esperando a chuva acabar? Se quiser posso te dar carona.
-Não precisa. Comprei um pacote de sal no dia que me mudei e Giulia não sabe cozinhar nada que não vá no microondas, então nossas refeições não foram muito do tipo que requer o uso de sal, até agora. - parando para pensar, era provável que o pacote estivesse quase cheio...
-Então por que está aqui? - ele parecia menos confuso do que realmente estava.
-Da última vez que deixei ela sozinha, ela me comprou um microondas. Então, estou de tocaia para impedir que entre coisa pior.
Stevan tentou se conter, mas o máximo que conseguiu foi não cair na gargalhada.
-Ao menos isso mostra o quanto ela se importa com você. - disse sorrindo.
-É… - ela admitiu meio resoluta.
-Tudo bem em perguntar por que você não foi a aula ontem? - ele não sabia como abordar o assunto, principalmente porque a cada vez que tentava a garota parecia se fechar mais e mais. - Não precisa responder, mas seus colegas e professores estão preocupados. - disse ao ver que ela exitava.
-...perdi a hora.
Stevan não sabia mais como lidar com a situação, por isso tentou ser mais direto:
-Eu poderia dizer que você não é tão boa mentindo, mas depois da conversa que tive com sua amiga ontem, eu tenho que dar parte do crédito à ela.
Lilian não sabia exatamente como se sentir por ser pega na mentira, mas lhe parecia que constrangida era um bom começo.
-...okay…-ela pensou um pouco no que dizer - Eu te conto, se me contar porque você pode dar uma festa que incomoda todo o prédio quase que uma vez por semana e pra mim fazer um festa de aniversário eu tenho que pedir com, pelo menos, um mês de antecedência. - essa era uma dúvida que ela tinha desde que recebeu as regras do condomínio, mas…
Stevan estava relutante em dizer qualquer coisa sobre sua vida pessoal para ela, ou melhor, para qualquer aluno, em contrapartida lhe parecia justo se abrir um pouco quando se pedia o mesmo para a outra parte.
-O prédio é meu. - disse simplesmente.
Incrédula, Lilian lhe dirigiu o olhar pela primeira vez, desde que ele iniciara o diálogo.
-Sério?! - ele afirmou com a cabeça - Então você é rico? - mais uma afirmação silenciosa - Você é rico e dirige uma moto?
-É isso que te surpreende? - disse rindo - Pessoas normais ficariam chocadas com um professor se declarar rico.
-Dinheiro pode vir de vários lugares, mas por que ter uma moto quando se pode ter um carro?
-Primeiro: eu gosto de motos; segundo: eu tenho um carro...
-Popular! - interrompeu indignada - Pessoas ricas andam em carros igual ao da Giulia! Se você quiser eu posso colocar o irmão dela no telefone pra te dar umas dicas.
-O irmão, não ela?
-O máximo que ela sabe sobre carros é como fazer uma maquiagem perfeita dentro de um, mesmo com a estrada toda esburacada. - Lilian acompanhou o professor na risada.
-Não será necessário. Eu estou satisfeito com o meu e não quero trocar.
-Tá, né. - disse dando de ombros - Você bem que podia ensinar isso para a Giulia, ela não consegue ficar um dia sem gastar.
Um homem de aparência meio estranha entrou no prédio, segurando algumas sacolas com comida e outras que não dava para saber o que tinham dentro, e apertou o botão de elevador. Stevan ficou alarmado por não conhecer a figura que claramente tinha a própria chave e Lilian percebeu que ele estava prestes a tomar uma ação, por isso tocou-lhe o braço, pedindo atenção e quando a conseguiu, negou com a cabeça, pedindo para deixar quieto. Assim que a figura suspeita entrou no elevador Lilian pôs-se a falar:
-Fique tranquilo. Ele é um dos… guarda-costas de Giulia.
-E por que você não está tão segura disso?
-Porque ele quem nos levou pro Centro hoje, mas eu dúvido que no contra-cheque dele esteja escrito motorista. - ela também duvidava que estava escrito guarda-costas ( se é que ele tinha um), mas ele não precisava saber disso.
-E por que você acha isso?
-Instinto…? - o professor não parecia convencido - E porque se ele fosse realmente o motorista dela, ela não ia ficar nem meio segundo em casa.
-Okay…. - ele não estava realmente convencido, porém se acontecesse algo saberia onde procurar e no momento ele tinha assuntos mais urgentes em mãos. - Agora é sua vez de me responder o porquê de ter faltado ontem.
Sinceramente, ela estava esperando que ele tivesse se esquecido do assunto, por isso se prolongou no tópico da moto.
-Eu me acidentei na volta para casa antes de ontem. Ontem eu mal consegui ficar acordada.
-Que tipo de acidente? - ele estava visivelmente preocupado, não só por seu tom de voz, como, também, por ter ficado um pouco mais pálido.
Primeiro ela pensou em dizer que não era nada demais, mas isso soaria como mentira; depois pensou em dizer que não era da conta dele, mas não parecia certo ou educado; então optou por uma mentira convincente:
-Fui atropelada por um carro.
-Por Descartes! - a menina precisou de toda sua força de vontade para impedir o riso - Você está bem?
-Já estive melhor e já estive pior. - disse dando de ombros - Posso perguntar mais uma coisa?
-Claro. - era um péssimo momento para começar a parar de dar respostas.
-“Por Descartes”? - dessa vez ela simplesmente não conseguiu se conter, ouvir-se falar isso era mais engraçado do que ouvir alguém mais dizendo.
-Eh… bem, como dizer… Eu fui criado numa família muito religiosa que não aprova minha escolha de profissão e eu também não sou muito religioso, então para parar de chamar uma entidade que eu não acredito e irritar meu pai, eu criei o hábito de chamar o nome de filósofos e matemáticos.
-Sabe, alguns iriam chamar a Força. - ambos riram com o comentário.
Antes que pudessem continuar o assunto, o elevador se abriu e o homem de antes saiu com uma mala de viagem, acenou para Lilian e foi embora sem falar um “a”.
-Acho que é a minha deixa. - disse se levantando de seu lugar, com a bunda amassada e levemente dolorida.
-Vou subir também. - acompanhou-a pouco depois, dividindo o elevador - É melhor eu me trocar, antes que eu pegue um resfriado.
Lilian mordeu a língua para não falar o que lhe veio à mente, mas mesmo assim não conseguiu se conter. Ela culpou o professor por criar essa atmosfera de proximidade, sem realmente se arrepender dos dizeres:
-Eu ficaria feliz em ficar mais alguns dias sem aulas de matemática, mas aposto que muitas garotas ficariam triste se você não fosse a aula. - ela deu uma pausa meramente casual - Principalmente se elas souberem que é rico.
-Não conte a ninguém. - era uma ordem - Por favor. - era. Até a outra parte não parecer se abalar por suas palavras ou tom inquisidor.
Lilian olhou para o professor que estava gotejando de tão encharcado e quando o elevador abriu as portas, ela deu um passo e parou entre elas, impedindo o fechamento e consequentemente a locomoção da caixa metálica, virou-se para o mais velho e disse:
-Não se preocupe, eu sei guardar segredos. Sem contar que é sempre bom ter algo contra um inimigo.
-Não sou seu inimigo.
-Você dá aula de matemática. É inimigo de todo o mundo. - ela se virou e saiu. Ela se sentiu bem por dizer o que estava guardado no peito, mesmo que acompanhado por uma piada para disfarçar.
Sem cerimônias, ela entrou na residência e foi procurando por quaisquer absurdos que poderia encontrar, felizmente o máximo que encontrou foram algumas sacolas em cima da pia, o microondas ligado e sua melhor amiga em frente ao fogão observando um canecão que estava ligado a fogo alto.
-Sabe, da próxima vez é só me mandar estudar que eu te deixo sozinha.
-Lily, você voltou! - a mais nova pensou em repreender a outra pelo apelido, mas como foi apenas uma vez ela deixou passar. - Estou fazendo seu chá para acompanhar o lanche da tarde! - respondeu perante o olhar da outra.
-Erg! Chá!
-Non se preocupe, pedi comida boa para compensar.
-Foi por isso que me chutou daqui?
-Sì! Se estivesse aqui non deixaria eu comprar, mas agora é tarde demais.
Tudo que a anfitriã pode fazer foi suspirar. Ela sabia o que Giulia estava fazendo e se sentia feliz com isso, mas depender tanto assim de outra pessoa, principalmente agora, poderia ser tão viciante quanto uma droga.
-Obrigada, só que se continuar assim eu vou sentir ainda mais a sua falta.
-Essa é a ideia. - disse desligando o fogão quando o líquido começou a transbordar.
A mais velha serviu a bebida para ambas e, quando o microondas apitou, buscou um prato cheio de diversos salgados da padaria mais próxima.
Com a proximidade da data de sua partida, Giulia ofereceu a amiga o “motorista” dela por uma semana, mas Lilian bateu o pé e recusou fortemente, dizendo que ela poderia se virar muito bem. Giulia aceitou o não dado, porém impôs que se por meio milésimo de segundo a estilista suspeitasse que a amiga não estava se cuidando, ela pegaria o primeiro voo para o Brasil e colocaria alguém de babá até que chegasse.
Lilian achou a ameaça bem concreta, por isso decidiu seguir a receita a risca.
Comments (1)
See all