A jovem pensou em esperar pelo professor, porém não sabia quando ele acordaria, logo decidiu por acordá-lo. No entanto, há cinco passos de distância, ela se lembrou de quando tentou acordar Laura depois da enfermeira ter dado todos os sinais de “uma noite mal dormida” e desistiu.
Por fim destrancou a porta da sala e procurou papel e caneta para escrever uma nota e deixá-la em cima da mesa, antes de se dirigir ao banheiro.
Os dias estavam cada vez mais quentes por isso a garota se via tentada a ir trabalhar de bermuda, mas primeiro ela teria que se cuidar.
Lilian se despiu e encarou-se no espelho por menos de um minuto antes de levantar as axilas e olhar com ódio os pelos que ali cresciam. Ela procurou a lâmina e foi para o banho.
Enquanto a água molhava seu corpo, ela sentiu um calafrio seguido por uma sensação de alívio. Foi estranho, talvez por isso, ela não sabia o que pensar. Inconscientemente levou a cabeça para trás, molhando o rosto, enquanto tateava atrás do sabonete e acabou cortando a ponta do dedo indicador na lâmina (perceptível principalmente pelo ardor) e foi assim que ela percebeu o quão era frágil, apesar dos pesares. Com cuidado, ela pegou o objeto afiado e o encarou. Seu olhar escorregou para o pulso e dando a visão de suas veias ( ou seriam artérias? Ela não era boa em biologia…), com um ou dois cortes ela poderia acabar com tudo.
Linda não estava mais ali para lhe dar um Norte, Giulia e Lucca estavam longe… o que havia lhe sobrado? Um boletim com boas notas? Um histórico escolar de dar inveja? Dinheiro?
-Grande coisa… - pensou em voz alta ao aproximar a lâmina do braço molhado com um sorriso de pura insanidade e desespero. Quem ligaria se ela morresse ali? Por vários instantes ela não conseguiu pensar numa resposta, mas então se lembrou que Daniel contava com ela para amanhã. Ele era um ótimo chefe que, mesmo depois de tudo, ainda ligava para ela oferecendo alguns turnos. Em seguida, vieram Lucca e Giulia a mente. Sim, eles estavam longe, mas ainda se importavam com ela. E este pensamento lhe provocou um leve rubor.
Sem mais delongas ou protelação, Lilian tomou seu banho focando apenas em se limpar e remover os pelos indesejáveis (o que, para a sua surpresa, podia ocupar os pensamentos muito bem).
Somente depois de ter tomado o banho é que a jovem percebeu que não havia trago roupas limpas, ou mesmo calcinha, para o banheiro.
Seria muito vergonhoso se ela saísse de toalha e Stevan estivesse acordado? Não deveria ser, já que a casa é dela.
Por outro lado Stevan era quase um completo estranho que aconteceu de ser sua cobaia, após tê-la ajudado…
Sem saber se o professor estava acordado ou não, a estudante vestiu a mesma roupa de antes, exceto pela roupa íntima (que estava sem, causando uma sensação estranha entre as pernas).
Sem saber se Stevan estava acordado, Lilian deixou as peças que não estava usando no banheiro e abriu a porta do cômodo como se nada tivesse acontecido com a toalha enrolada na cabeça e espiou a sala.
Por bem ou por mal, ele ainda estava dormindo no sofá, então ela aproveitou a oportunidade e foi para o quarto. Ela escolheu um conjunto de roupas e lamentou profundamente ter que vestir um sutiã novamente.
Desta vez, ao abrir a porta do quarto e olhar para a sala, viu o professor sentado, esfregando os olhos no que parecia uma batalha interna entre voltar a dormir ou ir embora.
-Tudo bem? - perguntou ela mais para informar sua presença do que por preocupação.
-Sim… - respondeu ele passando a mão pelo rosto - Quantas horas...? - ele podia ter olhado no próprio telefone, mas não tinha certeza se o aparelho tinha bateria ou se havia tirado a foto de Luana da tela de bloqueio.
-Quase meio dia. Vai almoçar aqui? - apesar de se esforçar para não parecer que o estava mandando embora, Lilian repetia diversas vezes em sua mente “Diz que não, diz que não, diz que não”.
-Não… - disse ele sem muita convicção, passando uma das mãos pelo rosto. - Já tá parecendo rotina, mas, por favor, não conte a ninguém sobre isso.
Lilian o encarou com o olhar vazio e piscou repetidas vezes. A cada piscada um sentimento estranho foi enchendo seus olhos, até que falou, por fim:
- Desde que não atrapalhe as aulas, não tem porque eu fofocar sobre a sua vida.
Com um sorriso irônico Stevan admirou a maturidade da aluna e não pode evitar de compará-la aos demais jovens de mesma idade. Pois, mesmo que a denúncia não fosse feita ( o que, muito provavelmente, nenhum aluno em si a faria - apenas os pais), muitos simplesmente o chamariam para beber ou, vendo a preocupação dele com a imagem, tentariam chantageá-lo na tentativa de obter notas…
-Obrigado. - disse fazendo menção de se levantar. - Desculpa por… tudo. Mas já vou indo.
-O~kay. - ela o levou até a porta e sem querer parecer muito mal educada, ela esperou que ele se distanciar dois passos antes de fechar a porta e ir para a geladeira tentar descobrir o que comeria de almoço.
Ela decidiu-se por comer ovo frito com carne de hambúrguer e uma salada. Um dia ela teria que comer arroz e feijão, mas não sentia vontade de fazê-lo apenas para si, parecia um desperdício.
Ela aproveitou a tarde para navegar na internet e descobriu um ônibus que passava ali perto que tinha um ponto uma esquina antes da pizzaria. Perfeito! Agora era questão de matar o tempo e estudar até o dia seguinte.
Para a infelicidade e nervosismo de Lilian domingo amanheceu nublado e começou a chover pouco depois do meio-dia, sendo assim, ela não teve coragem ou vontade de ir de short, mas ela havia se depilado apenas para isso, parecia um desperdício… Ela pesou as possibilidades até o último momento possível, quando começou a chover mais forte e não havia previsão de melhoras, então ela foi de calça.
No estabelecimento, Daniel contou que os outros freelancers já haviam feito compromissos e que o movimento estava melhor do que o esperado, por isso precisava de toda a ajuda possível. Lilian evitou pensar no quanto essas palavras a machucaram, mas a boa notícia é que uma cliente reservou o estabelecimento para o aniversário do filho no próximo sábado e Lilian fora escalada.
Na segunda-feira, Lilian estava um caco, por isso não gastou mais energia que o necessário, ou seja, focou apenas em copiar a matéria.
Ela quase não percebeu quando seu grupo a chamou para discutir sobre o trabalho de feira de cultura. Nesta discussão ela basicamente só acenou e concordou, por sorte seus colegas estavam mais preocupados com a fofoca sobre Igor e ela estava cansada demais para prestar atenção nisso.
Com o passar dos dias, ela percebeu a comoção ao redor do colega com um número inusual de garotas dando-o atenção. Então, como quem queria nada, ela conversou com uma ou outra garota até ter uma ideia geral do quadro: Igor havia se assumido e o pai dele, puto, o havia expulsado de casa. Atualmente ele estava na casa dos colegas.
Até quinta-feira, pelo menos.
Na quinta ele estava um caco de puro desespero. Aparentemente, a família com quem ele estava ficando tinha planejado um bate-volta pro interior do estado, não dava pra levá-lo e estavam receosos sobre deixar um menor sozinho em casa. Então Igor queria achar um lugar pra passar o final de semana sem atrapalhar ninguém. Mas não estava fácil. Por isso Lilian se voluntariou.
-Tem certeza? - perguntou Igor - Seus pais tão de boa com isso.
Lilian não pode evitar de pensar que os pais dela, provavelmente, ainda não sabiam onde ela morava.
-Claro! Mas eu vou pra casa a pé e é um pouco longe.
-Sem problema! - respondeu no impulso.
Depois da aula, naquele dia, Lilian foi arrumar o quarto que emprestaria ao colega: deu uma faxina; conferiu se Giulia ou ela mesma haviam deixado alguma coisa para trás; trocou a roupa de cama… e quando deu por si já estava tarde e ela não havia estudado ou feito o para casa. E como estava cansada o máximo que ela fez para se colocar em dia foi tomar um banho em água morna, beber meio copo de leite e ir dormir.
Na sexta-feira Igor apareceu com uma mala de viagem, além da mochila com o material escolar.
Muitos ainda estavam preocupados com ele e onde o colega passaria a noite, mas poucos ofereceram ajuda. Contudo o menino deu a todos uma réplica apropriada, agradecendo e informando que já havia conseguido um lugar ( ele contou onde apenas para as pessoas mais próximas - e elas espalharam para todo o resto).
Apesar da oferta de Lilian, Igor não era próximo a ela - parando pra pensar ele não conseguia pensar em ninguém que o fosse. Então o jovem tentou se aproximar de sua bem-feitora, trocando cumprimentos, acenos e frases ocasionais. E, após o último sinal, ele se aproximou meio tímido, incerto se a oferta ainda estava de pé.
Ao menos foi isso até ouvi-la dizer:
-Vamos? - com um aceno de cabeça ele a seguiu.
No caminho de volta, até mesmo Lilian se sentiu mal sobre o silêncio desconfortável que se instalou, principalmente pela caminhada ser longa.
-Como, como você tem estado? - como ela queria ter algo melhor para puxar assunto!
-Bem… - e a conversa morreu deixando o clima ainda mais estranho, por isso Igor tentou continuar - Quero dizer, estou parasitando a casa dos outros pra poder sobreviver, mas muita gente tem sido legal comigo.
-Eu não sabia que ainda existia pessoas com esse tipo de mentalidade no mundo, digo, igual a dos seus pais.
-Pra dizer a verdade, eu esperava algo do tipo, mas eu pensei que minha mãe ia me entender…
-Nah. Muito se engana quem acha que as mães se importam com todas as suas crias.
-Nossa! O que você fez?
-Nasci. - Igor olhou para a colega pensando se realmente era uma boa ideia ir para a casa dela - Ah, mas não se preocupe. - acrescentou a menina ao reparar no olhar que recebia - Meus pais não moram comigo.
-Comassim?! - ele parou de andar com o choque das palavras que ouviu.
-Bem, - como explicar e o que contar? Por experiência própria sabia que ele só se sentiria melhor se desabafasse e o melhor jeito seria se abrindo para ele, contudo até que ponto não seria estranho? - nunca fui a filha preferida dos meus pais e quando recebi a oportunidade de sair de casa eles não se importaram o suficiente pra me perguntar pra onde tava indo, se ia voltar ou qualquer coisa. - eles voltaram a andar antes dela acrescentar: - Na verdade, tem grandes chances deles acharem que eu estou me prostituindo.
Dessa vez ele não parou, porém sofreu uma pequena crise de tosse.
-E está?
-Nah. Eu sou bastante responsável com meu dinheiro. - ela nunca usou ( ela mesma) o dinheiro da família de Lucca e Giulia, por isso preferiu não falar sobre a ajuda que eles ofereceram. Por isso e porque ela não conseguia pensar numa forma de contar sem parecer que ela era uma pessoa perigosa ou algo do tipo. - Enquanto eu vivia com os meus pais eu tive que trabalhar pra pagar as coisas pro meu irmão. Mas nunca disse pra eles o quanto ganhava. Nem quando era pequena.
-...E com quantos anos você começou a trabalhar?
-Sei lá. - disse dando de ombros, como um fato que já havia aceitado sem ressentimento - Só sei que quando tinha uns 7 minha vó descobriu e me levou pra morar com ela. E quando tinha 9 minha vó adoeceu e tive que voltar a morar com os meus pais.
-Eles nunca ouviram que trabalho infantil é crime?! - Igor não sabia se devia ou não acreditar na história, mas se fosse verdade, Lilian merecia muito mais respeito do que ganhava.
-Eu tinha 9 anos na época e não acho que alguém teria me dado ouvidos quando todos lá de casa estavam contra mim. - mentira. Se tivesse encontrado Benjamin antes, as coisas poderiam ter sido diferentes.
-Todos? Tipo, até seu irmão?
-Principalmente ele. Eu fui criada para que ele fosse o centro do universo. Mas vim com defeito de fabrica. - ela riu com a própria brincadeira, embora o mais novo estivesse boquiaberto. E ela percebeu - No clube dos filhos com pais absurdos, eu já sou membro VIP. - disse olhando para frente.
Igor engoliu em seco. Ele sabia que devia ser grato aos amigos por terem sido legais e gentis com ele. No entanto ele estava começando a achar que devia ser grato aos pais, apesar de tudo.
Sem saber o que dizer ele apenas seguiu a garota, pouco mais velha que ele e ótima aluna, por alguns metros mais, antes dela tirar uma das alças da mochila e procurar num dos bolsos o molho de chaves.
-Tem certeza que está tudo bem neu’ ficar aqui?
-Claro. - disse abrindo o portão.
-Mas não dá pra conseguir um emprego de carteira assinada por causa da escola. E você tem que pagar as contas do apartamento sozinha!
-Não se preocupe com isso. - ela passou pela portaria e quase suspirou de alívio por estar vazia - Tenho dinheiro e tenho um bico de final de semana. - ela apertou o botão do elevador e as portas se abriram no mesmo instante, então eles entraram e ela apertou o botão do andar - Não tenho o suficiente pra viver na farra durante o ano todo, mas é uma quantia boa o suficiente para me manter até metade do ano que vem, eu acho.
-Acha?
-Nunca banquei uma casa, não sei quanto se gasta por mês. - eles trocaram olhares - Por sorte não preciso pagar aluguel e tenho bolsa na escola, sem contar que no final do ano eu to pra receber um dinheiro aplicado, então não se preocupe. Da pra me virar.
Eles ficaram em silêncio durante o restante do percurso, mais por não saberem o que falar do que por estranheza.
Lilian mostrou ao colega o quarto que ele iria ficar, o banheiro, disse para ele ficar a vontade com relação a cozinha e, por fim, mas não menos importante, passou a senha do Wi-Fi.
Para descontrair, Igor sugeriu que eles assistissem a um filme no provedor, que ele ainda tinha acesso, que seus pais pagavam. Lilian aceitou a oferta e ligou o notebook, enquanto ia até a cozinha procurar coisas para comer, com a cara enfiada no armário ela gritou a senha do usuário para Igor que aproveitou para logar no site. Foi uma luta encontrar comida que não precisasse de preparo longo, contudo uma luta maior ainda foi achar um filme que agradasse a ambos. Não que Lilian fosse chata ou cheia de picuinhas na hora de escolher o filme, ela apenas era uma grande fã de filmes de suspense e terror; enquanto Igor nem tanto.
Por fim, o escolhido foi um filme original, de ação e comédia que estava com uma nota boa nas avaliações do público.
Depois do filme, eles tomaram banho e foram dormir.
No dia seguinte, Lilian acordou tarde - devido ao sonho divertido que teve, com ela sendo parte do universo do filme -, contudo Igor conseguiu acordar mais tarde ainda.
Ao ouvir o estômago roncar, a jovem desistiu de esperar o visitante acordar e foi comprar pão, deixando um bilhete em cima da mesa, juntamente com as chaves que havia emprestado à Giulia não muito tempo atrás.
Durante todo o percurso ela se sentiu desconfortável, não parecia ou podia ser certo deixar Igor dormindo no apartamento sem ninguém por perto.
E se acontecesse alguma coisa? E se José aparecesse?
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