HABILITANDO TRANSCRIÇÃO AUTOMÁTICA.
[LONGO TRECHO DE SILÊNCIO]
[RESPIRAÇÃO HUMANA]
Alô. Oi... espero que a gravação esteja funcionando, não vou poder verificar e nem tenho esperanças de que alguém ouça estas palavras... Gravo aqui enquanto aguardo meu fim. Assim que eles... assim que eles finalmente descobrirem uma forma de entrar aqui, seja pela força ou por alguma sorte sinistra.
Se estiver ouvindo isso, muito provavelmente não é deste planeta, e talvez nem esteja entendendo minhas palavras e tenho esperanças que um dia consiga decifrá-las e traduzi-las ou é sim deste mundo… e, neste caso, agradeço a Deus que tenha sido poupado. Mas aposto, com lágrimas, que esta mensagem é um lamento que ficará silencioso para sempre.
>PAUSA NO GRAVADOR<
Eles estão à porta faz alguns dias. Avançam contra ela em ondas e eu ouço suas investidas em intervalos regulares. Parecem ter aprendido que esse esforço conjunto terá mais efeito e resultado do que aglomerar-se esmurrando a porta. Tornaram-se um vagalhão, um aríete impiedoso de corpos amontoados... No começo não fazia muita diferença contra a porta de aço, mas com o tempo percebo sinais do metal cedendo, principalmente nas partes em que se une à alvenaria. As conexões são sempre o ponto mais fraco de qualquer estrutura.
>PAUSA NO GRAVADOR<
Não que qualquer coisa faça mais a menor diferença.
>PAUSA NO GRAVADOR<
Você deve conhecer “a cura” se é que você é desse mundo...
Pois, então, fui eu quem a criei... eu quem a criou... como se diz?
[SILÊNCIO]
Importa apenas isso, eu imaginei a possibilidade dela existir. O Ser humano livre do câncer para sempre. Não só os recém descobertos, mas aqueles em estado terminal... Os voluntários dos testes iniciais respondiam bem, o câncer sumiu. Não regrediu. Desapareceu.
Como? Eu te digo, agora o segredo não faz sentido, não vou defender uma patente numa situação como essa, vou?
A “cura”, em termos leigos, era outra doença... uma espécie de outra doença... um mal diferente que combatia o mal comum. O Inimigo do nosso inimigo. A suprema Justiça Poética. Um câncer para o câncer.
Desenvolvemos Nano-células intercomunicáveis que eram injetadas nos tumores cancerígenos, matando cada célula da doença e estas eram descartadas pelas vias comuns como qualquer célula morta. Percebemos que as nano-células, entretanto, não conseguiam atacar canceres mais graves e tumores maiores, mesmo com aplicação de ampolas gigantescas.
Decidimos então que elas deveriam se multiplicar e utilizamos uma pesquisa alemã para aplicar um conceito de auto reprodução robótica na programação genética de nossas nano-células. Elas já estavam preparadas para atuar em uma rede de comunicação só delas, trocando informações importantes. Com isso reduzimos os custos de cada paciente, poderíamos aplicar uma substantivamente menor quantidade de nano-células e ela se multiplicariam usando as células cancerígenas como um saco embrionário. Quanto maior o câncer mais substrato possuíam para se reproduzir e aplicar a cura no paciente.
[SILÊNCIO]
Havia um efeito colateral, e para isso preciso explicar que uma cientista inglesa que se juntou a nós por essa época ajudou a aumentar a vida das nano-células e agora elas precisavam de uma maior quantidade de energia energia então ele absorveria parte da oxigenação destinada ao corpo... por isso disse que era uma espécie de doença. Os testes em animais e mais tarde, os primeiros testes em humanos, mostraram que as cobaias implantadas com a cura tinham um aumento de pressão arterial e sentiam-se esgotadas com mais facilidade com uma sensação de cansaço e ligeira falta de ar...
Por fim, conseguimos desenvolver um conceito de inteligência artificial que fazia com que nossas nano-células otimizassem o uso dessa energia. Com isso os problemas colaterais estabilizaram, se tornaram menores e com seus efeitos reduzidos. Em alguns casos havia alguns picos de adrenalina causados pela cura para produzir alimento para uma quantidade especialmente aumentada de nano-células no corpo. Mas isso nos pareceu aceitável frente às possibilidades.
Acreditávamos que, ao evoluir, essa pseudo inteligência artificial poderia encontrar outras fontes mais adequadas de recursos e estaríamos atentos a isso.
O tempo provou que funcionava. O Câncer estava completamente curado. Recebi prêmios, escrevi muitos artigos. Mas então sim que tive a ideia. A que tornou tudo como é hoje.
>PAUSA NO GRAVADOR<
Eu havia pensado. E se...
[SILÊNCIO]
E se as nano-células pudessem agir não só como uma ferramenta de correção e ataque ao câncer, mas como prevenção. Micro-guardiãs alertas todo o tempo contra doenças, infecções...
Foi nesse momento que o nome surgiu: A cura.
Eu sabia que era um momento especial. A gente tinha tudo nas mãos. O esforço conjunto de cientistas de todo mundo havia curado o câncer e agora poderíamos curar tudo!
Estudos e trabalho. Anos a fio, às custas do meu casamento e do resto de minha vida social. Cheguei ao resultado que esperava. Aplicamos o que foi necessário de inteligência artificial genética e agora tínhamos uma vacina que prevenia uma miríade de doenças e curava praticamente todas as outras.
>PAUSA NO GRAVADOR<
Você deve estar ouvindo as pancadas que dão à porta.
>PAUSA NO GRAVADOR<
O mundo se curvou à cura. À exceção dos ativistas religiosos. Diziam, uma vez mais, que brincávamos de deuses e me chamaram de anti-cristo.
Estava em um programa de entrevistas quando disse a frase pela primeira vez. Fui confrontado com o que diziam os religiosos antivacina. Chamaram de "a marca da Besta" o tal chip implantando sob a pele... Não era um chip, não era sob a pele, mas você sabe como são os fanáticos religiosos, conseguem distorcer um conceito em torno do que querem acreditar. O entrevistador deixou as questões no ar e eu disse: “se não foi Deus que me deu a ideia para extirpar esse mal da humanidade, seria melhor que estivéssemos do lado de quem deu. Ainda que fosse o diabo”.
A frase estava estampada nos sites de jornais no minuto seguinte. Letras enormes defendiam os dois extremos possíveis na interpretação das minhas palavras : Desde "A cura divina" até "de mãos dadas com o diabo".
A frase se tornou famosa. Passou a ser um jargão comum quando qualquer um realizava o menor feito que fosse. Um meme e uma brincadeira terrivelmente inocente. “Se não foi Deus…”.
Um comercial de TV, por exemplo, exibia uma pizza com 3 camadas de queijo enquanto o narrador proclamava: “Novo sabor com camadas intercaladas de queijo. Se não foi Deus quem deu essa ideia, o diabo aprendeu a cozinhar.”
A cura se tornou vacina obrigatória ainda assim. Crianças nasciam livres do câncer, mas, como sempre guardamos informações a sete chaves, algumas ONGs nos procuravam para contestar nossos testes. É bem verdade que o governo fez vista grossa em algumas partes do processo de testes em animais... ... e humanos... mas não fizemos realmente nada que pudesse nos comprometer. Eles queriam informações. Fizeram protestos. Vozes que ecoavam no vazio da atenção que receberam. A cura funcionava.
Idosos começaram a recuperar atividade cerebral e física, tornaram-se mais ativos, rejuvenesceram levemente. Uma senhora atingiu centro e trinta anos com aparência de pouco mais de sessenta.
Curamos o envelhecimento... Sem querer. sem atirar nessa direção acertamos um alvo. Não foi o único nem o pior.
>PAUSA NO GRAVADOR<
A verdade é que a própria cura evoluiu, desenvolveu-se em um sistema preventivo absoluto e anos depois ela tinha preparado, com sua limitada inteligência focada num único resultado, algo que ninguém previu.
Ainda que estivéssemos livres de doenças e do envelhecimento, não éramos imortais... você deve saber que acidentes acontecem e pessoas morriam. Apesar de termos curado matematicamente as enfermidades nós não curamos a morte.
[SILÊNCIO]
Bem... ao menos não de propósito.
>PAUSA NO GRAVADOR<
E nem foi de uma hora pra outra. O primeiro caso documentado foi do rapaz na Itália. Atropelado, morreu. Entretanto as nano-células mantiveram o corpo funcional. Estavam programadas para autopreservação. Geravam produção de adrenalina e o corpo, morto, tinha espasmos constantes. Foi cremado. Isso ocorreu diversas vezes, até a Susan Rascal. A jovem americana se ergueu, morta, e caminhava de olhos vazios, seguindo seu dia a dia costumeiro. Acredito que o cérebro não criou mais experiência, então repetia as antigas. Caminhava até o trabalho onde foi impedida de entrar, ia pra casa, segurava o telefone desligado à frente do rosto sem reação. Movia-se até o banheiro, abria as torneiras, sentava-se na privada fechada, deitava na banheira vazia, jogava a toalha no corpo sem precisão...
>PAUSA NO GRAVADOR<
As pessoas morriam, mas não iam embora. Seu corpo não desligava. A morte tornou-se um processo passageiro. A consciência sumia com a morte real, mas o corpo físico se recuperava e continuava vivo. A cura o mantinha como uma máquina. Ele se alimentava caso encontrasse alimento nos lugares comuns de quando era vivo e se hidratava de qualquer fonte de água disponível, mesmo poças e esgoto aberto.
Criou-se um dilema ético. Deveríamos matá-los definitivamente? Havia, claro, atividade cerebral, mas a pessoa não estava lá... Eu comecei a questionar o conceito de alma e espírito. O que seria estar realmente vivo?
Isso se tornou um problema. Famílias não queriam enterrar seus entes quando pareciam estar vivos. Alguns tinham receio de cremá-los. Alguns os alimentavam e hidratavam, acreditando estar cuidando da mesma pessoa.
Porém, esses desmortos debochavam da nossa filosofia. Máquinas humanas funcionais, mas sem propósito.
>PAUSA NO GRAVADOR<
Até então.
Descobriu-se que eles poderiam ser "ensinados" se fossem forçados a repetir uma ação, aprendiam a reproduzi-la constantemente. Principalmente se aliado à atividade recebessem uma dose pequena de adrenalina. O prêmio que fazia as nano-células repetirem a ação para receber o "petisco".
Outro dilema ético surgiu daí. Ongs ergueram-se para protegê-los contra o trabalho escravo. Alguns os defendiam como humanos outros os tratavam como monstros.
Foi mais ou menos aí, durante essas discussões, que tudo mudou.
[SILÊNCIO]
Os noticiários, nesta altura, tinham um bloco específico para os desmortos e mostraram Juan Lopez, da Cidade do México. Um desmorto de aspecto ordinário, mas que caminhava determinado e não como se repetisse os gestos de vivo. Sem aqueles olhos fixos. Sua íris girava para os lados nas órbitas procurando o que ver. Ao seu redor os desmortos cessavam o movimento débil. Estacavam como manequins e pendiam os braços. Algo acontecia ali.
Outros apareceram pelo mundo. Ontem decidi estudá-los... o que me trouxe aqui.
>PAUSA NO GRAVADOR<
Antes que eu tomasse essa decisão, porém, muita coisa aconteceu. Na presença destes desmortos de olhos vivos os outros permaneciam quietos, mais controlados e tranquilos ou então, enlouqueciam em surtos debatendo-se. Moviam-se, agitavam-se e batiam nos objetos ao redor.
Estes então, começaram a agrupar os outros de uma forma que parecia intencional. Caminhavam pela madrugada, vagando, agrupando outros desmortos. Esses grupos se tornaram um problema, pois seus surtos físicos, mesmo descoordenados, causavam significativa destruição.
As autoridades começaram a exterminá-los quando os via em grupos. Isso criou problemas com as famílias, com a igreja que, estranhamente, agora, os estavam acolhendo em abrigos.
As gangues de desmortos, como foram chamadas. Alguns adolescentes nas regiões mais carentes vestiam seus grupos de desmortos com as cores e símbolos de sua gangue.
Então há duas semanas...
...começaram a caçar e matar seres humanos.
>PAUSA NO GRAVADOR<
Eu disse caçar pois era isso que faziam, os grupos de desmortos começavam o surto quebrando tudo, assustando as pessoas e então aquele desmorto no meio deles, aquele especial olhava para um alvo e todos o perseguiam e o matavam com as pancadas que seriam desordenadas se estivessem sozinhos, mas guiados como estavam eram certeiras ainda que pouco precisas.
Eles mordiam as costas na base do tronco acima das nádegas e chupavam o sangue e parte dos órgãos. Esses humanos eram arrastados por dias feridos nas costas até que num surto explosivo de todo o grupo de desmortos, a vítima gritava aterrorizada e então, ordenadamente, eles mordiam as costas na mesma ferida já aberta e bebiam de novo seu sangue.
Isso causou pânico e as autoridades enviaram suas guardas e exércitos, mas a essa altura... você sabe...
De hora pra outra tudo ruiu. Mesmo com os esforços para destruí-los, não fomos capazes de controlá-los. Grupos explodiram em todo lugar e, deliberadamente, nos atacaram. Sua força só aumentava com a nossa morte. Cada caído, era um deles. Balas, tiros e desmembramentos nos matavam, mas não os afetavam. Eles curavam-se de quase tudo que pudéssemos lançar contra eles.
Em poucos dias o mundo mudou.
Ontem, aqui, descobri duas coisas. Na verdade descobri uma e conjecturei outra:
[SILÊNCIO]
[SOM DE PANCADAS NO METAL]
A conjectura é a seguinte: Os desmortos descobriram do que suas nano-células se alimentam. Não acredito que saibam os termos e do que exatamente estamos falando, mas eles descobriram a adrenalina e agora sugam o sangue mais próximo possível das glândulas suprarrenais. Mas antes criam o mise-en-scène do surto e da caça para assustar a vítima ao máximo de forma que ela produza ainda mais adrenalina.
E o que descobri é que as nano-células aprenderam a utilizar outras fontes de energia como já prevíamos. Ela aprendeu a se conectar a outras células absorvendo parte de sua energia produzida naturalmente - o que não seria muito em um corpo já morto, mas vi então algo assustador. Elas desenvolveram dendritos e terminações que permitiriam, em teoria, que se conectassem com células neurais e cerebrais.
[SILÊNCIO]
Será que eles aprenderam a pensar? Mesmo uma forma muito rudimentar de raciocínio lógico?
Isso associado à rede interconectada que criamos entre as nano-células seria capaz de fazer com que os desmortos pudessem se comunicar?
Os grupos de desmortos me diziam que sim.
>PAUSA NO GRAVADOR<
Eu estou aqui desde ontem e me descobri cercado no laboratório. Desmortos invadiram e agora batem na porta de metal. Ela é forte o suficiente para resistir alguns dias, mas até lá estarei morto sem água ou comida.
O Noticiário saiu do ar durante a madrugada. Pelas redes sociais as notícias são desoladoras. A raça humana vai acabar.
Não sei quantos de nós ainda existem, mas, certamente não por muito tempo.
Apesar de tudo, de tudo isso, entretanto, nem mesmo minhas ações até então, nem mesmo nossa inatividade frente à destruição, nada disso me traria a procurar uma forma de deixar esse registro macabro. Eu estou gravando toda essa informação por outro motivo.
>PAUSA NO GRAVADOR<
O telefone que tocou há alguns minutos. Atendi num misto de esperança e curiosidade.
Quando atendi, uma voz de homem. Limpa, clara, gentil e cordial, me disse:
— Adivinha de quem foi a idéia, afinal.
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