Alexandre é biólogo, apaixonado por lobos e a vida selvagem, interesse que atribuiu às horas que passou com sua mãe assistindo documentários do mundo animal na TV. Especializou-se no estudo de canídeos e aprofundou-se tanto que teve alguns textos sobre o assunto publicados. Depois de mais de 20 anos atuando em pesquisas na área, era de se esperar que fosse o nome a ser chamado para estudar um espécime de lobo-guará fêmea quando o animal foi transferido para o zoológico do Rio de Janeiro, até porque não havia interesse de qualquer outro estudioso com mais experiência e, por fim, descobriu que, estando o bicho ferido, atuaria na companhia de um dos veterinários da instituição, antigo conhecido seu.
Não havia ferimento aparente, mas percebia-se que a loba se tornava cada dia mais fraca. Alexandre e o médico fizeram tudo que tinham ao alcance, nenhum resultado positivo. A loba parecia resignada com o fim, comia pouco, não procurava se hidratar com regularidade. O veterinário sugeriu que ela pudesse ficar em exposição por algumas horas a cada dia, talvez a interação trouxesse estímulos novos e interessantes e, por esse motivo, instalaram umas cortinas numa jaula afastada de forma que pudessem recolher o animal à privacidade quando necessário.
Culminou que não houve cura e a dor que a loba parecia sentir aumentou de forma considerável. Optou-se, neste momento, pela injeção terminal. Alexandre participou do rito, pois o animal se afeiçoou a ele. Uma lobo-guará selvagem que perto dele agia como seu bicho de estimação. Vinha quando chamava e parecia entender suas palavras. Alexandre cuidou dela como tal. Trazia-lhe petiscos escondidos e inclusive lhe trouxe os últimos. A Loba ao tentar comer o biscoito, mas agulhada pelo veterinário no mesmo momento, mordeu a mão de Alexandre involuntariamente.
Então tudo ficou estranho, ela se debateu por alguns momentos, uivando de dor, a cortina que estava fechada se abriu quando o veterinário, assustado, caiu sobre ela e a loba, morta, tornou-se uma mulher jovem, nua com uma colher de prata presa à cintura. Alexandre tinha certeza que ela teria dito “meu irmão” antes de dar seu derradeiro suspiro.
Descobriu-se, mais tarde, que a jovem morta era Elena Cunha. Goiana que desaparecera ainda criança com seu pai e irmão. O homem e o rapaz foram encontrados feridos como se atacados por animais. Elena foi considerada morta.
Sem explicações para o fato, Alexandre e o médico passaram por um longo processo criminal, mas o veterinário matou-se antes de enfrentar a prisão. Sua esposa o abandonou e foi impedido de falar com os filhos. O Encontraram com mais agulhas enfiadas na veia do que seria provável.
Apesar de seu advogado acreditar que conseguiria impugnar o processo pela estranheza das provas e acusações, com base em uma viagem de estudos de Alexandre ao Mato Grosso uma semana depois do relatado sumiço de Elena, foi condenado e direcionado a uma instituição psiquiátrica. Nem o promotor público fez muita questão de mudar o destino oferecido pelo juiz. Debruçados sobre as provas nem acusador nem defensor conseguiam entender o ocorrido, apesar de ambos, ainda que o defensor não admita, baseados naquela única prova realmente factível, acreditavam na culpa de Alexandre, e que este de alguma forma conseguira sequestrar a criança há anos e mantê-la escondida em cárcere privado em sua casa e mais recentemente no local de trabalho, torturando-a e abusando dela com anuência do veterinário, amigo antigo de Alexandre e que talvez, pelo que supunham ambos os advogados, participasse de tudo.
Com o cúmplice morto, Alexandre ficou nos holofotes da mídia, mas estranhamente o interesse público sobre o caso não durou tanto quanto se imaginava. Foi, finalmente, internado dando fim ao escrutínio da imprensa e condenado a cumprir uma pena humanamente impossível.
Ele não falava com ninguém. Aceitava sua comida, sua água, seus dias e vivia em silêncio, cabisbaixo e resignado. Ele aprendeu a gostar do ambiente sombrio da instituição. Mesmo que ofereceram ambientes de luz natural, Alexandre afasta-se em seus pensamentos nos recantos e evita o contato com os grupos de apoio e as conversas de refeitório.
Nem todos os internos são incomunicáveis, nem todos com manias tão profundas que impedem que conversem e que não consigam manter uma linha de pensamento adequado e ajuntar pensamentos interessantes, mas ainda assim ele se impôs uma reclusão ainda mais severa do que a que lhe fora imputada em juízo.
Alexandre, porém, conversou bastante com os médicos assim que foi internado. Tinha decidido ser honesto pois em algum momento julgou que estava mesmo fora de suas razões e que imaginara o que achava ter presenciado. As entrevistas, assim chamadas pelos médicos, envolviam tentar descobrir como ele conseguiu sequestrar a menina e levá-la para o Rio de Janeiro e o que teriam, ele e o cúmplice, feito com o animal selvagem que estava sob seus cuidados. Vez ou outra apenas, uma médica parecia preocupada nas suas percepções da realidade e da forma como ele humanizou a loba e nos estranhos sonhos de Alexandre.
As noites dele eram tormentosas e mesmo quando dormia, sonhava com Elena. Por vezes eram ambos lobos correndo pela mata e atrás deles outros mais. Às vezes em seus sonhos ele estava de volta à jaula, mas desta vez apenas Elena era humana e ele tentava convencê-la a não morrer.
A cada comentário, a médica prosseguia com a sua pergunta: “porque você acha isso?” e, com o tempo, Alexandre percebeu que estavam girando em torno dos mesmos assuntos. Ainda que estivesse conformado que jamais sairia dali, acreditara que pudesse tratar um pouco da dor emocional que sentia. Isso o fez desistir de tentar e entregou-se à solidão completa.
Os sonhos, que antes o atormentavam, tornaram-se, então, um local de descanso dessa solidão auto infligida. Gostava de rever Elena. Seja a mulher ou a loba, pois sentia-se em paz em sua presença. Em um sonho se abraçaram e ela acariciou seus cabelos. “Meu irmão”, ela dizia, “você é como eu”.
As vezes ele abria os olhos e a via em seu cubículo, de pé apenas fitando seu rosto como se o vigiasse dormir. Normalmente isso acontecia nas bem claras quando a luz chegava a invadir o cômodo pelas janelas gradeadas. Outras noites, porém, ele dormia sem sonhos e estas eram as noites mais escuras de todas, pois quando acordava, não via nada além da iluminação do corredor passar através da fresta da porta.
Conforme os meses passavam, Alexandre tornou-se mais inconstante, ainda que os médicos aumentassem suas doses de tranquilizantes e ansiolíticos, os remédios pareciam não fazer mais efeito. Ele alternava semanas de fleuma com outras de cólera. Passava dias completamente ensimesmado e então um esbarrão de outro preso ou um som mais alto nas ruas vizinhas ou mesmo o acender uma luz indesejada o lançava em uma fúria incontrolável. Dois enfermeiros fortes eram necessários para contê-lo. Por vezes três. Quando isso se repetiu de novo e de novo, foi transferido para uma sala acolchoada e saía de lá com camisa de força apenas.
Alexandre passou a sentir que os sonhos não acabavam ao acordar. Algumas vezes a imagem fantasmagórica de Elena permanecia ao seu redor durante toda a manhã, olhando-o e vigiando. Passou a ouvi-la mesmo quando não estava presente, incitando-o, chamando de irmão e mostrando-lhe o que só ela via: “veja aquele enfermeiro, ele não gosta de você, eu o ouvi dizer que gostaria de dar cabo de ti”; “Essa moça que visitou o cento e três se chama Mônica, ela nos olha com desdém, irmão”. Ele ouvia sussurros de longe e sentia o cheiro de coisas distantes. Principalmente quando entreouvia seu nome dito em meio às frases soltas do burburinho do refeitório ou nos grupos de médicos.
Se antes aceitara a reclusão compulsiva, neste momento, apesar de ainda querer isolar-se em si mesmo, desejava a liberdade.
Alexandre imaginava seu temperamento como um barco na tempestade. Nas luas novas e intermediárias, Elena quase não o visitava e ele estava na base das ondas com surtos suaves e o sangue lhe fluía como a água lisa, mas quando a lua cheia pousava inteira nos céus, a moça parecia viva a seu lado pela noite inteira, gritando impropérios para os médicos que os prendiam ali e incitando-o a fugir. Nestas noites o barco estava no pico dos vagalhões e o único caminho possível era para baixo com a força da arrebentação.
Em uma dessas noites, Alexandre socou tanto a porta de sua cela que a removeu dos batentes, os enfermeiros de segurança surgiram no corredor, o viram, mas recuaram em vez de tentar contê-lo. Ele não se lembra de mais nada além de acordar pela manhã no pátio interno com médicos e enfermeiros ao seu redor. Daí em diante ele passou a ser amarrado por correias afiveladas em sua cama durante a noite. Isso conteve o vagalhão, mas durante a noite seus vizinhos e os enfermeiros sua cama sacudir com os pés batendo no chão com força.
Ele urrava, gemia e gritava de dor. Ser contido tornou o processo de arrebentação mais dolorido pois seus músculos se contorciam em explosões inumanas como se outros braços e pernas crescessem por dentro dos que já tinha. Elena o olhava compassiva, mas disse, em um sussurro tão suave quanto á água que corre pelo rio: “O perigeu está chegando, irmão. A morte clama dentro de nós”
De fato, o Perigeu da lua veio dois dias depois e este foi o dia em que a dor de Alexandre atingiu níveis terríveis. Amarrado na cama, ele se debatia e ouvia os pés do móvel de metal bater contra o chão e ranger quando seus espasmos faziam a cama deslizar para os lados. Dentro dele havia um outro Alexandre, não uma sensação, mas um corpo real crescendo de suas entranhas. Este Alexandre gritava pela irmã que lhe aguardava ansiosa e lhe dava instruções sobre como liberar a fúria, como encontrar o caminho pelo corpo do antigo Alexandre.
“Coma seu fígado, rasgue seus intestinos, sinta o gosto do sangue que volta ao coração, venoso como sua raiva. A morte lhe chama, irmão”.
Alexandre sentiu um rosto por baixo do seu, crescendo e rasgando sua carne. Seus olhos explodiram nas órbitas e uma das correias que o prendiam estourou com eles, a pele de seus braços rasgou-se em duas enquanto uma forma animalesca de si mesmo encontrava caminho para fora de seu corpo, seu nariz rompeu-se em sangue quando um focinho de um lobo enorme o explodiu procurando a liberdade.
As correias romperam-se uma após outra. Um dos enfermeiros surgiu à porta e Alexandre, que acabar de cair da cama desengonçado, sentiu o cheiro de medo e, assim que se ergueu, de urina. Estava maior do que jamais fora, alimentado pela fúria e incitado pela irmã que lhe elogiava o descontrole.
O enfermeiro encontrou a morte e assim todos os que estavam no caminho entre Alexandre e a liberdade.
Quando finalmente saiu ele viu a lua cheia enorme no céu emanando seu brilho platinado e uivou um longo choro de culpa pelos corpos que deixou pelo caminho.
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