"Como vocês bem sabem, nossa tripulação tem por código de ética roubar apenas piratas, o que de tempos em tempos acaba prejudicando nossos negócios. Às vezes a palavra das paredes se espalha pelos mares, ou alguma Marinha chega antes de nós nas presas, ou simplesmente a Dama da Sorte não sorri pra gente. Confesso que tem vezes que abusamos da pobre Fortuna, e Matt diz que a gente não deve brincar com essas coisas.
"Seja como for, estávamos nós na Jamaica, em Port Royale. Matt tinha ido comprar suprimentos e Annabelle tava tirando dinheiro de jogadores de pôquer, e eu fiquei a observar o vai-e-vem das ondas, esperando como uma oportunidade cair do céu. Nenhuma das fuças feias nos cartazes de 'Procura-se' tinham números interessantes, e eu já estava à beira de pensar seriamente em seguir uma curta carreira de comerciante. O que soa tão monótono quanto parece.
"Mas, dentre a multidão de passantes e vendedores, uma figura me chama atenção. Um sujeito baixo, magrelo, não devia ter mais que 20 anos. Olhava de um lado pro outro, sentado na porta de um bar. Rabiscava qualquer coisa em um caderno, e voltava a observar, enquanto ajeitava os óculos. Uma moça passou por ele. Provavelmente a moça mais linda daquela região: vestido rosa, cabelos cor de âmbar, olhos verdes como esmeralda. É verdade que as roupas estavam um tanto quanto desgastadas, mas qualquer um que frequentasse as tabernas daquele lugar se sujaria fácil.
"Não parecia um lugar apropriado pra um sujeito daqueles, e o fato dele seguir a moça pra dentro da taberna confirmava isso. Gritos vieram do lugar. Comecei a contar nos dedos... 5... 4... 3... 2... POU! O sujeito sai voando pela janela, na minha direção, e se não fosse por mim, teria caído nos rochedos.
"'Obrigado, senhor, muito obrigado!'", o sujeito agradecia enquanto ajeitava os óculos e a gravata.
"'Tem que tomar cuidado por essas bandas'", eu respondi. 'Devia saber que não se mexe com uma mulher que entra num bar. Boa coisa não vem.'"
—Annabelle o olha de rabo de olho, como se julgasse Roque. — Que foi? Cê sabe que é verdade.— ele responde. Ela faz uma cara pensativa e soca o marujo ao seu lado antes que ele pudesse olhar as cartas dela.
"O cara então começou a tentar se explicar enquanto gaguejava e procurava o caderninho, que veio logo em seguida atingindo sua cabeça. Enquanto ele se recuperava do soco, balbuciava coisas aleatórias, até que soltou um 'Ei, você é um marinheiro, né? Eu sou jornalista e estou em busca de histórias pra minha coluna.'
"'Amigo, eu não leio jornal. O máximo que eu vou entender por 'coluna' é a coisa que eu quebro nos meus inimigos.'
"Eu juro pra vocês, quando eu disse isso o sujeito tomou um misto de animação e medo. 'Então, você é um... p... pi...'
"'Pirata, isso mesmo. Eu mato, roubo, pilho e destruo o que cruza o meu caminho', e aí eu me levantei e comecei a andar devagarinho na direção dele, em tom ameaçador, 'Torturo meus inimigos até que me dêem as informações que eu quero, só pra cortar suas gargantas depois. Navios viraram compensado simplesmente por ignorarem o meu 'Ahoy!'. Eu esmaguei o crânio de um marinheiro com essa mesma mão.'"
—E aí eu apareci com o chocolate que ele pediu.— interrompeu Matt.
—É, é. Obrigado por me lembrar, Matthau.— respondeu Roque, num tom meio grave.
—Disponha, meu capitão.— respondeu Matt, erguendo sua caneca de rum como numa saudação irônica.
"Enfim, o cara (que se chamava Maurice, aliás; se era o nome real ou não, até hoje não sei) acabou simpatizando com a gente, e ofereceu uma boa grana pra levar ele pra Tortuga. Não era o trabalho usual que fazíamos, mas era uma necessidade. Nem Annabelle tinha conseguido arrancar um bom retorno em jogo, então é porque a coisa tava ficando preta. E lá fomos nós pra Tortuga.
"Agora, até antes de embarcarmos, Maurice não sabia exatamente o que fazíamos e nem o quão odiados éramos pelos piratas. Contamos pra ele algumas coisas dos nossos códigos de honra, mas o segredo de nossas caçadas ficou bem guardado.
"Mas não por muito tempo.
"Depois de uns 2 dias de viagem, fomos surpreendidos por balas de canhão passando raspando na Princesa. 'Navio pirata pela popa!', Annabelle berrou enquanto descia do cesto da gávea. Ainda do timão, eu consegui ouvir a voz do capitão berrando 'AGORA EU TE MATO, SEU CAÇADOR DE UMA FIGA!'. Maurice saiu da cabine a tempo de me ouvir dizer 'Ah, o Capitão Batatinha de novo.'
"'Achei que ele já tivesse esquecido o lance na caverna', Matt observou.
"'Ninguém esquece duas toneladas de pedra maciça na cabeça tão cedo. O que é... Irônico, pra dizer o mínimo', eu respondi, e logo comecei a dar instruções: 'Belle, assuma o timão, puxe as velas e nos dê a vantagem que puder. Matt, pegue as bestas gigantes, vamo fazer o Inferno do Bebum.'
"Maurice me parou no meio do caminho, assustado e confuso. 'Espere um momento, capitão', o modo certinho de falar já me incomodava, ainda mais numa situação daquelas. 'Eu ouvi direito? Aquele pirata sobreviveu a um deslizamento de pedra na cabeça? Isso é impossível.'
"'Meu amigo', eu respondi, 'você REALMENTE precisa sair mais de casa se quer ser jornalista.' E voltei aos meus afazeres cotidianos. Sabe, botar fogo em inimigos e nas coisas deles.
"Matt chegou puxando as duas bestas gigantes e posicionou na popa da Princesa, logo depois eu cheguei com os barris de rum. Eu amo minha tripulação, tem hora que eu nem preciso dar ordens: bastou eu e Matt botar os barris nas bestas, Belle travou o timão, guardou as velas, e ficou do meu lado, enquanto Matt soltava um gancho pra atracar no navio do Batatinha."
—Porque esse apelido mesmo, aliás?— perguntou um dos piratas à mesa.
—Ele nunca superou nosso primeiro encontro.— respondeu Roque. —Oferecemos uma troca de mercadoria roubada por batatas.
—Com pólvora.— completou Matt.
"Enfim, Matt atracou no nosso oponente e começa a lutar contra a tripulação. Nunca vi um homem pular tanto desde aquela vez que o Roberts se perdeu na selva indiana, meu compadre aqui conseguiu distrair os piratas por tempo suficiente pra que eu e Annabelle lançássemos os barris por cima do navio com as bestas. Os barris se cruzavam no ar, pra que se quebrassem e espalhassem o rum por todo o navio. Quando o Batatinha começou a desconfiar, foi a deixa pra que Matt usasse o mesmo gancho pra voltar pra Princesa, e enquanto isso, eu lançava um barril com um pano em chamas.
"Tão cedo Matt pisa no convés da Princesa, ouvimos gritos de terror dos piratas e algumas explosões, seguidas de mergulhos. Trabalho bem-feito, voltamos ao curso original.
"Durante todo esse tempo, Maurice anotava uma e outra coisa no caderno que trouxera, mas suava muito e não piscava. Senti um pouco de pena do sujeito, mas antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, ele me manda 'Me deixe no primeiro porto que aparecer.'
"E assim eu fiz, ao cair da noite paramos em alguma cidade costeira, mas ainda próxima de Tortuga. Já dava pra ver a ilha a uma pouca distância. Ao chegarmos, somos recepcionados como heróis. Matt parecia gostar demais daquilo, mas Annabelle logo o puxou pra taberna mais próxima dali. Um sujeito que parecia alguém importante (talvez o dono do porto, sei lá), veio me recepcionar e contou que aquela vila era aterrorizada pelo Batatinha faz alguns meses, e viram tudo o que fizemos com o navio de seus algozes.
"Senti uma ponta de orgulho, não posso mentir. Salvei uma vila de ter o mesmo destino que a minha. Maurice ainda pagou o preço completo da viagem e mais um bônus pra nunca mais me ver de novo. A mão de Annabelle voltou a operar milagres na mesa de jogo. Tudo voltou ao normal.
"Agora, algumas semanas depois, Ambrose me mostrou o artigo que o tal Maurice escreveu. A manchete era "PIRATA ASSASSINA LÍDER COMUNITÁRIO".
"Já esperava algo assim. É como eu digo, amigos: jornalista nem é gente."
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