Era fim de expediente na taberna de Ambrose. O velho negro e careca exercitava sua força com Matt, carregando caixas de comida pro armazém, enquanto Annabelle exercitava seus dedos numa violinha e cantava:
Oh, Sally Brown, é ideal pra mim, sim
Rolem, homens! Rolem e rolem!
Sally Brown, é ideal pra mim, sim
Adiante, dona Sally Brown!*
A música acalentava e excitava o trabalho que ainda restava, mas também fazia a pirata cor de canela exercitar suas cordas vocais sem que fosse berrando com Matt por qualquer motivo. Cecília terminava de limpar as mesas, quando notou que o único desocupado era Roque, que se ocupava a aparentemente, brincar com a comida que restava em sua cesta.
—Estás bem, ó pá? — ela pergunta, enquanto recolhe a cesta de batatas na mesa.
—Estou sim, ora pois! — respondeu o capitão, tentando imitar o sotaque português da garçonete.
—Tu pareces preocupado com algo, ou só estás com preguiça?
—Meh, talvez eu teja cansado de botar força, só. — respondeu o pirata, que se levanta pra retomar sua cesta de batatas.
—Pois ao menos conta-nos uma de tuas famosas histórias, para entreter-nos enquanto terminamos o serviço.
—Ei, cê nunca contou como cês se conheceram, né? — disse Ambrose, enquanto limpava o suor da testa.
O pirata levanta a sobrancelha.
—Ouçam, ouçam então! — Roque levanta o tom de voz. — Porque agora vou contar a primeira aventura que tive, a primeira dose de emoção que percorreu meu sangue, junto de meus companheiros.
"Ok, cês lembram que a vila de La Praga já não era um lugar muito bom de viver mesmo antes do Mão da Morte invadir. Talvez Matt e Belle não lembrem bem disso pela idade, mas tinha dia que era difícil de buscar até água pra beber ou fazer comida. Os negócios locais da vila sobreviviam basicamente do que os poucos mercadores que passavam por lá vendiam, mas ao invés de usar dinheiro, fazíamos escambo mesmo.
"Num desses dias quentes de verão, minha mãe me mandou buscar água em um dos riachos da região, e assim eu fiz, porque era bom menino. Era um riacho que ficava bem na parte mais de floresta, um pouco afastado da cidade, eu preferi buscar água nele por ser mais limpa e menos barrenta. Era longe, mas compensava a viagem.
"Mas eu não fui o único a ter essa idéia, logo que eu saí dos limites da cidade, eu ouvi folhas mexendo, como se alguém tivesse se mexendo na mata. Quando eu me viro, lá está um molequinho loiro e com cara de tonto, dizendo 'Ága'.
"Eu tentei enxotar o moleque, mas ele ficava apontando pros meus baldes e perguntando 'Péga ága, moço?'. Eu já ia deixar meu trabalho pra levar ele de volta pra vila, quando uma garotinha pouco mais velha que ele aparece do nada dizendo 'Cê tem água nesses baldes?'
"Eu respondi que não, mas que tava indo buscar e eles podiam se juntar a mim, se aguentassem a jornada."
—Essas duas crianças eram Matt e Annabelle, correto? — indagou Ambrose, terminando de trancar a porta do armazém.
—Descobriu sozinho? — ironizou Roque.
"Enfim, eles passaram a me acompanhar, e começamos a conversar sobre nós, porque... Bom, mesmo sendo uma vila relativamente pequena, ainda era fácil ter gente desconhecida, às vezes tinha gente morando isolada na floresta ou em uma região um pouco mais afastada. Descobri que a família de Annabelle era relativamente nova na vila, eram de um grupo de mercadores que vieram passar um tempo na vila a negócios, e seus pais eram conhecidos dos pais de Matt, e por isso ela, como a mais velha, ficou responsável por ele.
"Mesmo assim, eles pareciam bem perdidos, porque ela é a mais velha, mas não tanto. Ainda precisavam de alguém pra tomar de conta deles, e como eu já era familiar, resolvi assumir essa responsabilidade."
—E nunca mais nos largou. — observou Matt.
"Mas não parou por aí, paramos em um açude pra descansar da viagem e se refrescar um pouco. Mas logo notamos algo diferente na paisagem. Ok, talvez não diferente, mas estranho. Eu passava por aquele caminho já fazia um bom tempo, e nunca tinha visto uma cabana por lá. Quase não deu pra notar, porque tava escondida com folhas e galhos, praticamente camuflada, quase duvidei de mim mesmo quando vi aquilo.
"Mandei Annabelle tomar conta de Matt enquanto eu ia checar, e qual não foi minha surpresa ao bisbilhotar a janela: dentro da cabine, utensílios de prata, tapetes, e algumas poucas jóias.
"Annabelle chegou com Matt pendurado nos ombros, perguntando o que tava acontecendo, e eu mostrei a janela. Ela acabou reconhecendo alguns dos utensílios de sua casa, e disse que realmente, de uns dias pra cá, algumas coisas da casa de Matt haviam sumido, mas os pais dele presumiram que foram roubados por macacos ou gambás. Nada que fizesse falta, no entanto.
"'Eu acho que isso é esconderijo de um ladrão', eu disse.
"'Mas quem robaria coisa de cozinha? Não é nada valioso, eles são pobes', ela respondeu, ainda sem saber falar direito. Coisa mais fofa, quase tive dificuldade de levar a sério na hora.
"Quase, porque a situação parecia grave. Não pareciam objetos de muito valor, mas era algo que resolvido o quanto antes, ou não teria mais fim. Notei que a porta tava trancada, mas tinha uma chave escondida na areia, debaixo de uma folha. Resolvemos seguir caminho enquanto procurávamos uma solução pro problema e tentávamos tirar Matt de perto dos insetos, antes que ele os comesse.
"Alguns dias depois, realmente as coisas pioraram. Até em casa começaram a dar por falta de algumas coisas, como uma espada espanhola que meu pai guardava, provavelmente de herança, não lembro bem. Mas nessa época eu tava solto na rua, quando Annabelle vem correndo na minha direção. 'Querem pegar o ladão! O que a gente faz?'
"'Pera lá, guria, porque a gente tem que fazer algo?', eu perguntei. Ela tentou responder algo como 'é nossa obigação, os adultos querem se reunir amanhã pra resolver o poblema, a gente sabe onde é o lugar, blablabla'. Ok, justo, mas eu, como garoto mais velho, tentei pensar mais logicamente. Se a gente levasse os adultos pro lugar, recuperaríamos as coisas, mas ainda ficaríamos sem saber quem era o bandido.
"'Ok, eu tenho um plano, mas preciso ser rápido. Arranja um isqueiro e leve pra reunião', eu respondi, com algo na mente.
"Era uma aposta, mas precisava fazer. O ladrão talvez já tivesse ido pra cabana quando soube da reunião, e ainda corria o risco de ser pego por ele no meio do caminho. Guardei um saquinho de pólvora no bolso e levei os baldes, como se fosse mais uma vez buscar água, mas parei no caminho, fui até a cabana, e misturei pólvora na areia que escondia a chave da porta e passei um pouco na maçaneta e aos arredores na porta, só pra garantir. Eu sabia que a reunião dos aldeões seria logo pela manhã do outro dia, e que provavelmente o ladrão iria querer checar suas coisas de madrugada. Ou talvez não, pra não chamar atenção. De novo, era uma aposta.
"No dia seguinte, a reunião começara. O problema foi apresentado pelo prefeito, e logo depois que alguns aldeões se manifestaram, eu ergui o braço. Tive medo de ser ignorado por ser só um moleque no meio de adultos discutindo coisas sérias, mas eu tinha certeza que era o certo a se fazer.
"Expliquei como eu, Belle e Matt achamos a cabana, e meu plano pra descobrir quem era o ladrão. Queria fazer o teste, passar o isqueiro aceso pelas mãos de todos os presentes, aquele que tivesse pólvora nas mãos ou unhas iria ter uma reação explosiva com o fogo.
"Ainda bem que o prefeito me conhecia e confiava em mim (e sabia que eu era dado a pregar peças bem elaboradas nele e nos outros adultos), porque de outra forma jamais teriam levado a frente esse plano maluco. Passamos o isqueiro de mão em mão, por todo mundo que tava na reunião, até que finalmente, POU!
"A explosão se deu mesmo na mão de um dos mercadores que ficou junto dos pais de Annabelle. O plano era furtar coisas do pessoal da vila pra vender quando os mercadores voltassem, como se fossem coisas novas, substituindo as perdidas. Levei os soldados pra cabana, e todas as coisas foram devolvidas."
—Huh, eu esperava... Algo a mais... — disse Ambrose, com ar decepcionado. — Quando cê falou em "dose de emoção", achei que ia acabar lutando contra o ladrão.
—Na minha cabeça era uma história melhor mesmo... — lamentou Roque. — Mas né, eu vivi o negócio e não sabia se ia dar certo, pra mim foi uma aventura e tanto.
—Esqueceu de mencionar que um dos insetos que o Matt comeu fez ele mijar azul por uma semana. — soltou Annabelle.
—Agora sim, esta é uma história fixe! — complementou Cecília, que olhava com ar de zombaria pra Matt.
*Roll Boys, Roll!
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