—Cês acharam algo de interessante na Feira da Colheita? — indagou Ambrose tão logo o trio de piratas entrou na taberna.
—Acalma-te, acabaram de chegar. — disse Cecília, enquanto servia Matt com uma caneca de rum.
—Que viagenzinha mais bizarra, viu. — suspira Roque enquanto o trio se senta à mesa. — Até parece que foi um delírio coletivo...
—Ainda bem que não fui só eu que tive essa impressão. — concordou Annabelle, enquanto prendia o cabelo. — Passei tanta raiva que quase não aproveitei o passeio, pra falar a verdade.
—Pelo menos eu pude aproveitar o suficiente. — disse Matt, que levara um tapa na nuca dado por Cecília. — Mas eu aproveitei sozinho, eu juro...
—Ok, pera, então eu vou contar a minha história, e vamo julgar pra saber se tem algo em comum. — disse Roque, enquanto fazia sinal pra que Ambrose se aproximasse da mesa.
"A gente soube dessa feira que era comemorada lá pelas bandas da Itália, a gente viu um anúncio e o desenho do lugar era fantástico, e resolvemos ir a passeio mesmo, tranquilos.
"A festa em si é atraente o suficiente, com comidas de toda parte do mundo, especiarias, e quinquilharias variadas (que foram os motivos que nosso grande chef Ambrose nos incentivou a ir), mas o lugar em si era lindo, uma maravilha da arquitetura moderna. Era como uma imensa praça com lojas e tendas espalhadas, mas era tudo construído sobre as águas. Não era bem como uma ilha, era suspenso por colunas ao redor e pelo meio da construção, era magnífico. Algumas balsas levavam os visitantes da terra firme até lá, mas fomos direto da Princesa pra lá, após escondê-la atrás de algumas rochas. Por algum motivo, piratas ainda não são bem vistos por lá, imaginem só vocês.
"Após trocar de roupa (não sem antes ter o tempo de ajuste que naturalmente levamos com roupas chiques), entramos no bote e remamos até o lugar, onde fomos recebidos com uma certa pompa que era de costume a todos os visitantes. O mais engraçado foi Annabelle abrindo o leque como se fosse uma dama."
—Eu sou uma dama! — disse Annabelle, dando um soquinho no ombro de Roque.
"Enfim, como eu dizia, vimos o pessoal tomando banho no mar onde o lugar ficava suspenso, mas aí lembramos que ninguém tinha trazido roupa de banho, e mesmo que quiséssemos nos banhar au naturel (o que não era permitido), seria mais meia hora pra desmontar as roupas.
"Resolvemos que cada um iria buscar os entretenimentos que quisessem, e iríamos nos encontrar dentro de uma hora ou algo assim. Pra mim foi estranho, porque nada me atraía demais, eu tava literalmente só zanzando e matando o tempo, que era algo que eu precisava, de fato.
"Mas aí do nada, movimento na multidão, gritos de "pega ladrão", e uma moça lindíssima correndo pela multidão. Naturalmente comecei a correr atrás dela, enquanto me livrava do casaco que me impedia de correr com a agilidade que me é de costume. Depois de uns minutos de perseguição, consegui imobilizá-la antes que subisse em uma parede e me senti realizado por praticar uma boa ação.
"'Idiota, ele vai fugir!', ela gritou no meu ouvido, e só então pude notar como ela era linda: feições italianas, cabelo loiro como fios do sol, pés descalços e roupas que lembravam o de ciganos, mas eram uma óbvia imitação. 'Perdão senhora, mas achei que cê fosse a ladra.', eu tentei explicar.
"Depois de conseguir acalmar a moça, é que pude entender a situação. Nos sentamos pra tomar uma limonada sueca ou algo do tipo, e ela explicou que seu colar foi roubado, e era muito precioso por ser uma herança de família. Ela era dançarina de uma trupe circense que se apresentava na feira, e que (palavras dela), teria conseguido pegar o ladrão se eu não tivesse impedido, e se gabava de ter uma habilidade atlética sobre-humana.
"Resolvi então ajudar a pobre criatura, porque era parte minha culpa, e porque no fundo eu sabia que ela não conseguiria subir uma parede lisa sozinha, por mais que tentasse. Ela disse que lembrava da aparência do ladrão, mas que não sabia onde ele poderia estar. Se a Princesa estivesse por perto, talvez a gente pudesse subir no mastro e procurar. Como não era uma opção, resolvemos andar pelas estruturas elevadas, confiando apenas no olho vivo e na dama da sorte.
"Acho que depois de uma hora mais ou menos, desistimos de procurar, mas andar por todo o prédio sem olhar direito o caminho nos levou a uma joalheria. Pois é, a gente ficou se sentindo dois imbecis, devia ser o primeiro lugar pra se procurar um ladrão de jóias."
—Porque não foi atrás de algum guarda pra dar queixa? — indagou Ambrose.
—Eu acho que é porque a dançarina tinha tanto receio de autoridades quanto eu. Vai saber o que a trupe dela aprontava também. — respondeu Roque.
"Daí a gente entrou na joalheria, o cara também comprava ouro no peso, então havia essa possibilidade do ladrão querer fazer uma grana assim. Ela descreveu o sujeito pro joalheiro, mas ele não viu ninguém parecido passar por lá.
"Até que literalmente, o cara apareceu na porta da loja. A moça deu um berro, 'É ELE!', e imediatamente ele começou a correr de novo, e ela atrás dele. Tracei um plano na cabeça, mas sem uma pistola não funcionaria. Eu acho. Tive que improvisar qualquer coisa.
"Saí da loja, vasculhei o lugar rapidamente com o olhar, vi que tinha uma loja de materiais de caça. Passei correndo, peguei uma corda com gancho e corri pra sacada que dava pro mar. No mesmo fôlego, prendi o gancho na sacada e mergulhei no ar, pendurado na corda, pegando velocidade junto do vento, e no mesmo movimento de pêndulo, saltei do outro lado, onde dei um chute na fuça do ladrão.
"Caído no chão, o meliante mal conseguia ver o que tinha acertado ele. E ele nem tem tempo de se recuperar, porque ele se levanta e a dançarina dá o chute alto mais bem dado que eu já vi na vida, mesmo na mandíbula do ladrão, chega deu pra ouvir o estalo do osso, tlec!
"Imobilizei o ladrão, que cheirava a rum barato, mas nada que eu não tivesse acostumado a lidar. A dançarina recupera seu colar do chão e o coloca no pescoço. Agora que eu paro pra pensar, era um colar bonito. Moldura de ouro, uma jóia branca, mas que absorvia e refletia as cores ao seu redor. Valorizava muito o pescoço e o busto dela, pelo que me lembre..."
Roque parece se desligar por um momento. Ele alisa o cabelo, e retorna a si.
"Não é que eu estivesse atraído por ela, ok? Não entendam mal, meu coração já tem dona, mas... A memória desse dia começa a ficar embaçada a partir daí.
"Ela começa a dançar. Sobe a perna, rodopia, braços se movem como águas, ou como o vento. As pernas começam a aparecer do vestido, antes tímidas, agora completamente expostas, andando na direção do ladrão (e minha, por consequência). Ela continua a rodopiar, mas de alguma forma, seu olhar continua fito no bandido. Eu literalmente não consigo explicar. As pessoas ao redor começam a parecer borrões, toda minha atenção é voltada a ela e seu pequeno espetáculo, é impossível de não olhar, e impossível de piscar. Ao mesmo tempo, ninguém ao nosso redor parece se importar com a bela dama de dança envolvente e atraente.
"Eu juro pra vocês, não sei se foi efeito de ficar muito tempo de olho aberto, mas as coisas ao redor pareciam tomar cores diferentes. Mas talvez não seja isso, porque ela passou a mudar de lugar muito rápido, pra onde eu me virava ela aparecia, andando na minha direção, movendo os braços e mãos com a graciosidade de um pássaro, mas com um olhar penetrante feito uma espada espanhola.
"E sim, eu acho que ouvi música por perto, mesmo sem instrumentos.
"E tão rápido quanto começou, terminou. Nem sinal do ladrão nem da dançarina. Estava sozinho, no meio do corredor. Fui checar se a corda também estava lá: estava e tive que devolver pra loja, embora não pareçam ter me reconhecido.
"Até agora não sei o nome dela, nem vi ela de novo, nem o ladrão. Perguntava pra um e outro visitante se eles viram algo de estranho, algum ato circense, dançarinas italianas com roupas de ciganos, mas todos me diziam a mesma coisa: 'Bêbado.'"
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