Quando seus pés avançaram, a névoa se espalhou em ondas ao redor de suas canelas, permitindo que visse partes do chão avermelhado de argila batida. Essas ondas nebulosas precipitavam para todos os lados como se um mar branco e etéreo se estendesse aos seus pés e então chocavam— se contra as paredes, pedras ou os corpos de soldados caídos, explodindo em uma forma fumacenta e desfaziam— se como nuvens levadas pelo vento.
Iroas, à sua frente, ia devagar com os pés lentos e baixos. Com atenção, Adyna podia ouvir a ponta dos dedos do guerreiro riscando o chão ao calcular cada passo. Gemidos dos soldados, ainda vivos ao redor, chamavam seu nome e os alertavam sobre o destino que os esperava.
— Morrerão!
— Voltem! Não sejam tolos!
— A morte. — Um deles disse e a garota paralisou — A morte mora aqui!
Iroas olhava a cada um destes com compaixão, porém determinado, trazendo à lembrança de Adyna o momento da Caçada ao Terror de Abal, um monstro de centenas de patas que assolou a região. À época, O comandante de ambos, sem esperanças de conseguir alcançar a criatura, disse ao guerreiro que deveria pôr fim à empreitada e voltar para casa. Ioras balançou a cabeça negando:
— Se eu for — tinha dito Iroas — O monstro vem atrás de mim pisando sobre as minhas pegadas. A única coisa que farei é mostrar-lhe o caminho. Se eu for, nada impedirá a criatura de matar nossos filhos. — E mais tarde, quando o guerreiro e a curandeira estavam sozinhos, ele disse lembrar-se do pequeno que deixara em casa. Rechonchudo, disforme. Disse que podia sentir seu cheiro, ouvir seus grunhidos e sabe que o proteger era a tarefa mais importante da sua vida. Neste dia, Adyna sentiu crescer o respeito por Iroas e, ainda que ela não soubesse tomar o caminho da espada, o serviu até então com a admiração que uma escudeira deve à seu mestre.
Mas foi quando um dos moribundos gritou um gemido grave de dor que Adyna apertou a casca dos seus três dedos contra a empunhadura da lança que carregava e sentiu a crosta dura que envolvia suas garrinhas estalar com a força de se ajustar à pegada. O líquido dentro de seu corpo tornou-se mais espesso e gelado e o ar ficou difícil de ser absorvido. Os películos de seus quatro braços se eriçaram. Ela estremeceu e gemeu.
— O que há? — Iroas perguntou, parando por alguns instantes. Olhava diretamente nos olhos da jovem. — O que sentiu? É só medo? — Não era uma ofensa. O Guerreiro confiava em seus pressentimentos. — Sabes que não podemos voltar, certo, pequena? Não agora. Não hoje.
Ele tinha a espada lapidada de um ferrão em punho e um escudo talhado de casca de árvore – presente de vitória na batalha do pé de limão – resistente como poucos neste mundo, de prontidão no outro braço.
— Concentre-se em mim e na minha voz. Não deixarei que nada te aconteça.
— Eu... — Ela gaguejou. — Eu sei!
Há muitos ciclos Iroas a encontrou. Sobrevivente e órfã. Acolheu-a em seus braços e descobriu com ela os seus dons. Ensinou-a como pôde a manejar a espada e a lança, apesar da pequena nunca ter demonstrado talento para isso. Ajudou Adyna a entender e desenvolver poderes estranhos e divinos com os quais ela curava os ferimentos dos soldados e as dores de terceiros. A pequena curandeira, Iroas a chamava.
Com suas pernas finas, verdes e compridas, o guerreiro voltou a arrastar-se, passo a passo, adiante através da névoa. Sorrateiro, ele girava suas longas antenas à procura de qualquer movimento inesperado. Adyna, por sua vez, mantinha as largas asas arredondadas junto ao corpo. E então ela foi puxada para trás.
Prendera um de seus braços nos fios gosmentos que atravessavam, discretos, por longos vinte e cinco centímetros, do teto ao chão da caverna. Ela mal conteve o grito que lhe saiu surdo, aprisionado e abafado.
Iroas virou-se rapidamente, tapou sua boca e segurou em seu ombro, aproximando o rosto do seu.
— Não se mova. É assim que ela enxerga sem olhar. — Ele apalpava suavemente a corda pegajosa com suas antenas, então ergueu a espada de ferrão e cortou o fio com um golpe rápido. — Se dermos sorte, ela não estará atenta para sentir isso. — Sussurrou.
Adyna assentiu e uniu todos os seus braços ao corpo o que pareceu tranquilizar Iroas. Ele voltou a caminhar, arrastando seus pés com muita calma e, à sua frente, a névoa se moveu e precipitou para o alto. Subiu como se um balão se erguesse da água, espalhando a fumaça branca e fria ao seu redor enquanto assomava diante de seus olhos. A névoa escorria ao redor da forma gigantesca como um véu que descortina uma surpresa macabra.
Quatro pares de longas pernas peludas erguiam-se rumo ao teto da caverna e então, antes que atingissem metade da altura, arqueavam, cedendo ao peso do corpo enorme e ovalado que sustentavam como poderosas molas bem distribuídas. O corpo se dividia em duas formas grandes: a maior atrás, gorda e oblonga e a da frente, mesmo menor, era mais ameaçadora, exibia pesadas presas e dois bracinhos curtos de cada lado delas que se moviam como se o único objetivo de sua existência fosse segurar e empurrar as vítimas para que essas presas úmidas pudessem fazer seu trabalho. Adyna assombrou-se pela visão dos olhos da criatura. Quatro pares distribuídos ao redor da cabeça. Dois pares pequenos sobre as presas que, em semicírculo miravam para frente, um par que se distribuía de cada lado do rosto, vigiando seus flancos e então um par muito especial. Dois grandes olhos fixos, brilhantes e negros que a encaravam diretamente.
A caverna a frente dele abriu-se em uma área grande e larga, parecia-lhes um covil. Teias viscosas adornavam todas as paredes e fios verticais cercavam quase tudo, do chão ao teto, conectando-se a uma rede no alto por onde uniam-se todos.
Iroas, por instinto, ergueu um de seus quatro braços à frente de Adyna para impedi-la de avançar, tomando, ao mesmo tempo, uma postura de combate para defende-la. A Aranha, gigantesca, não moveu-se além daquele lento subir e descer, quase imperceptível, reagindo à respiração lenta da curandeira. Como se estivessem ligadas por uma conexão mais forte que aquele olhar terrível onde, mesmo distante, Adyna podia se ver refletida.
Outro reflexo que Adyna se lembrava era de seu rosto pequeno balançando nas ondas da poça de água e lama em Akros. Ajoelhada e ferida, sua hemolinfa escorria pela antena quebrada e pingava na poça, deformando o reflexo da jovem curandeira.
— Me deixe, por favor. — Ela chorara para Ákrida, o gafanhoto que, acima de si, gargalhava. — Sou só uma curandeira. Não estou aqui para lutar. Eu cuido dos feridos e as vezes os deixo confortável enquanto vão embora para a grande luz. Sequer tenho armas, veja.
Ákrida piscou com sua pálpebra lateral, um dos olhos morto, ferido e destruído. Seu rosto deformado da luta, mas seus braços não cederam, empurrando o rosto da pequena para a água, tentando afoga-la.
Desta feita, Iroas chegou a tempo. Lançou-se sobre o inimigo com a força de suas longas pernas, nascidas nele justamente para esse propósito e embolou-se pela lama com o bandido-gafanhoto. Verde e marrom se misturavam, asas se rasgaram, e ironicamente, talvez também por um pouco de justiça a ser cantada pelos bardos, um dos olhos de Iroas se foi nesse dia, ferido pela lâmina do gafanhoto. Motivo pelo qual o guerreiro, hoje, usava o tecido de folhas protegendo metade de sua cabeça.
Quando Iroas, finalmente vencedor, se ergueu sobre o corpo sem vida de Ákrida e ajudou a curandeira a se levantar, não recebeu bem seu agradecimento.
— Não viestes lutar, Adyna? Porque estás aqui então? — Ele jogou as antenas do gafanhoto e sua arma no chão. — Curar-me? É tudo que podes fazer, pequena? Somos sempre mais que uma coisa só. Somos a ideia que carregamos sobre o mundo, sobre justiça, sobre honra, sobre o bem e o mal... sou mais que um guerreiro e você é mais que uma curandeira, eu creio. Estarei errado?
Ela nunca o respondeu.
Adyna sentia-se sempre pequena frente aos desafios que enfrentavam. Uma jovem mosquito-do-filtro, de aparência inofensiva, cinzenta, abaulada. De asas des-proporcionais, largas, vagarosas, redondas. Era lenta. Era inábil com as armas. Não transbordava a glória esverdeada que o grilo Iroas refletia em seu corpo concentrado, comprido, esguio e de poderosas pernas e movimentos ágeis. Ela sequer tinha a bela voz do guerreiro e sempre o desviava do tom ao tentar acompanha-lo nas noites em que a tristeza o fazia cantarolar as canções antigas que aprendera com os anciões.
Adyna conhecia seu lugar. Era sempre a segunda por ali, um peso necessário. A poção providencial de cura, mas em um frasco gordo, cinza, mole e fraco. Mesmo que o grilo a fizesse se sentir melhor com suas palavras e exigisse mais e mais dela. A pequena mosquitinha jamais chegaria aos pés do altivo e poderoso Iroas. O Herói grilo.
Então, ela nunca o respondeu.
A aranha avançou contra eles, firme. Dois passos apenas e já estava em cima dos dois. Iroas empurrou a mosquita para o lado e saltou sobre o monstro. Ferrão nas mãos, tentou atingi-la sem sucesso. Rápida como nada que Adyna tenha visto, a aranha se virou e arremeteu contra Iroas, o guerreiro foi rápido apenas para erguer o escudo que suportou o golpe, mas o lançou mais para trás, onde, nas sombras, Adyna não conseguia mais vê-lo. A aranha o seguiu com um passo longo e então a mosquito ficou sozinha na escuridão da caverna, acompanhada pelos sons adiante de si. Gritos de Iroas e o estalar dos passos secos das pernas duras da monstruosa aranha que o enfrentava. Uma dança difícil de entender.
Os gritos, gemidos, urros e passos firmes se moviam pelas sombras, fazendo com que Adyna pudesse apenas imaginar o que estaria acontecendo e onde.
A curandeira ergueu seus braços a sua frente, aquele brilho que antecedia sua suave magia emergiu diante das suas patinhas ajudando-a a enxergar um pouco a sua frente e ela avançou para os sons, usando suas mãos como uma tocha trêmula e suave.
Iroas gritou algumas palavras contra o monstro, Adyna já conseguia divisar os vultos movendo-se para um e outro lado. Por vezes ela percebia um brilho e algum movimento rápido. Possivelmente os saltos majestosos do grilo outras vezes ela sentia o chão tremer e os passos pesados com o avanço da aranha.
Caminhando devagar, ela se aproximava do combate que parecia fugir dela e então, tão logo começou a ver o corpo da aranha flutando adiante, pisou em algo que estalou sob seus pés.
Era um escudo de madeira. O escudo de Iroas. Adyna ameaçou pegá-lo, mas notou que um dos braços do grilo ainda estava preso a ele e ela recuou de olhos arregalados e coração disparado.
Ela chamou pelo guerreiro. A aranha virou-se apenas o suficiente para que dois pares de olhos laterais espreitassem a pequena das sombra.
— Vá — Gritou Iroas. — Mas não voe, Adyna, corra. Fuja!
Ela não conseguia vê-lo, mas sua voz parecia diferente. Assustada, Adyna imaginou tê-la sentido falhar. Ela deu um passo para trás.
— Não há mais chance pra mim, Adyna! Salve-se! Conte a todos o que viu, o que aconteceu... cerquem a caverna.
A pequena estremeceu. Sequer lhe parecia que era Iroas quem gritava com ela, mas alguém muito mais distante, um sopro de voz fraca e débil. Em vez de obedecer, ela avançou. E então notou, assim que sua luz fraca venceu parte da sombra onde estavam, que o grilo estava encurvado sobre si mesmo. Braços sobre o abdome, suportando uma dor terrível. Outra voz surgiu, arranhando seus ouvidos na escuridão.
— Ele bem sabe, mosquitinha. Ele bem sabe o final que o aguarda. Uhnnn. Vou saborear suas longas pernas finas.
Adyna arremeteu em direção ao grilo e, jogando-se para frente, o tocou. A cura fluiu de seus bracinhos e lhe deu nova energia. Agora se ergueria. Ferrão em punho como um verdadeiro herói. Seria, como sempre, vitorioso.
Mas não o fez. Apenas virou-se e respirou, ofegante. Dois braços apenas. Uma das asas destroçada. No peito, Adyna agora via, sua carapaça natural fendida por onde a hemolinfa escorria. A cura da jovem o fez abrir o olho que lhe restava e suas antenas tocaram o rosto da pequena.
— Porque não se foi? — Ele sorria e sua voz era a de um velho. Só agora realmente parecia ele ter a idade que os anos lhe deram — Deverias ter fugido. Ainda tem chance, minha pequena. Corra. Não voe ou as teias a prenderão. Corra pelo caminho que viemos...
— Estou confusa, Iroas. — ela chorava — às vezes me diz para ter coragem, e agora me diz para ter medo?
— O medo não é seu, pequena. É meu. Medo de ver você sofrer.
— Eu nunca sei o que fazer, Iroas. — Ela o abraçou.
A aranha ergueu-se lentamente sobre ambos:
— Não sabes. — E riu— se. — Certamente não. Agora se põe à minha mercê. Não recuso favores. Terath não é do tipo que desperdiça boa comida. — Ela deixou, deliberadamente, um fio da baba venenosa escorrer pela presa lentamente e gotejar para o chão.
Adyna tentou mais uma vez curar seu amigo e ele segurou seu braço com força.
— Não gaste mais energia comigo. — Ele disse. — E a afastou, empurrando seus braços.
Terath deixou-se pender adiante deles descendo o tórax e mantendo seu grande abdome ereto. Inclinada assim era mais ameaçadora, olhos fixos e presas salivando veneno. Sua boca abriu-se com os bracinhos agitados, ávidos pela refeição. Avançavam e recuavam contra eles, mas a aranha não atacou. Saboreava o medo e o momento.
— Jantar e sobremesa. — Sussurrou. — Eu devo dizer que adoro a carne protegida pelas cascas crocantes. O Grilo me será saboroso como nenhum dos soldados feridos nessa gruta. Mas todos me trarão substância, assim como você, gordinha. Sou pragmática, como percebes. Alimentos são alimentos, diversão é diversão. Não sou afeita a embates, ainda que boa caçadora. Se puder, tenho comida sem luta, sem esforços. Deixo armadilhas grudentas e volto para buscar as recompensas. — Ela sorriu por trás das presas. — O Grilo deu-me trabalho — e abaixando-se exibiu um corte profundo no alto esquerdo da cabeça que lhe custou um dos seus olhos laterais. — Mas espero que você não o faça.
Adyna estremeceu e deixou sua lança cair ao lado do aliado.
— Eu senti você, pequena. Nas minhas teias antes de chegar. Seu braço rechonchudo e macio. Senti o toque ríspido da espada do guerreiro cortando minha corda exposta. Sinto tudo daqui mesmo, nuances nas minhas redes. Mas vou além, posso saborear sua fraqueza e agora mesmo sinto seu medo, ele tem uma vibração tão doce e agradável. — E Terath bateu os bracinhos, estalando as presas como se saboreasse a comida.
— Cale-se! — Iroas gritou com a voz embargada como se carregasse com ela o veneno que o matava. — Adyna, o veneno não corre só nas veias. Quer atingir seu espírito. — E gemeu de dor enquanto tentava se erguer. — Darei tempo para fugir. VÁ!
Iroas levantou-se e com muita força empurrou Adyna para longe. A mosquitinha cambaleou e então com um leve adejar de asas se equilibrou, virou-se e correu. O Grilo ergueu a sua espada e Terath arremeteu o rosto contra ele. A lâmina voou no ar, solta, caindo à frente de Adyna. Ela parou com a respiração ofegante.
O silêncio.
E então.
CRACK
Ela baixou os olhos. Chorou sem esperanças.
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