O silêncio.
E então.
CRACK
Ela baixou os olhos. Chorou sem esperanças.
Antes de entrarem na caverna ela tinha dúvidas como agora:
— Devo esperar aqui?
— Por qual motivo?
— Nem sempre posso ajuda-lo, Iroas, talvez seja o maior perigo que já enfrentamos. Não deveríamos aguardar reforços? Com todos juntos e um bom plano...
Iroas sorriu à menção da palavra.
— Sempre um plano, não? Mas não há tempo, pequena. Muitos soldados feridos lá dentro. Não sabemos se Terath possui outra saída. Se ela escapar de novo, e nos atacar mais uma vez, nossa cidade pode perder tudo! Temos a chance de pôr fim a esse ciclo de maldade.
— É em nós que deve terminar. Isso você me ensinou bem. — Ela assentiu. — Mas tenho medo que eu atrapalhe você mais do que posso ajudar.
— E como o faria se sempre dependo de ti?
— Eu sou apenas uma curandeira.
— Você não é. — Ele disse — Você é mais que apenas uma coisa, lembra? Ser uma curandeira não é o que define você, Adyna, pequena. Não é o que vejo em você, não é o que lhe é guardado. Você é mais forte que eu jamais fui. Eu guardo segredos terríveis sobre meu passado. Você é pura, é confiante, é poderosa. Conseguiu mais em sua idade do que eu poderia ter feito e me levou mais longe do que eu jamais chegaria sozinho. Se este velho aqui ainda empunha uma espada é graças a você, minha querida. — Ele a abraçou e então a soltou — Eu tenho escudo e espada e treinamento e você enfrenta o mesmo que eu com uma lança velha de palito e sua coragem. Você é a heroína, Adyna eu só te mostro o caminho.
Então a mosquito foi acordada por passos pesados e precisos atrás dela.
— Hora da sobremesa, pequena. Está pronta?
Ela se abaixou, pegou o objeto no chão, e então girou em direção à aranha.
— Estou pronta. — Disse, erguendo a espada de ferrão.
Terath riu-se e com os pequenos braços bateu na espada querendo lança-la longe, mas a mosquito foi ágil para desviá-la. O Monstro recuou, surpreso.
— Não resista! — Disse entre os dentes. — Ainda que fosses capaz de fazê-lo, só tardaria seu destino e me deixaria mais faminta dos seus líquidos.
— Não me teste! — Adyna respondeu, avançando a espada com uma estocada.
A aranha esquivou-se, erguendo o corpo com as pernas arqueadas. E então girou, cercando a mosquito contra a parede. Avançou duas vezes com os bracinhos maliciosos e as presas pingando o líquido envenenado, mas em ambas Adyna evitou o contato erguendo a espada diante de si.
A pequena escorregou próximo da parede, evitando a teia que a cobria, suas asas semi-abertas, deslizou por baixo da aranha que lhe tentou acertar com a ponta das patas grandes sem sucesso.
Terath precisou girar e então Adyna já estava em seu flanco. Não que a surpreendesse, pois tinha ainda olhos deste lado da cabeça. A espada avançou, as pernas fugiram, mas não rápido o suficiente. O sangue da aranha correu, um cinza esverdeado, gosmento e vil. Adyna afastou-se e parte da perna, boba, presa ainda apenas pela crosta do exoesqueleto balançou, soltou-se e foi ao chão.
A aranha guinchou de dor ou de ódio e arremeteu com precisão sobre o corpo de Adyna. Encontrou com seu rosto o abdome da mosquito e suas garras seguraram uma das asas dela, fazendo seu trabalho e trazendo-a para a boca. As presas venenosas rasgaram facilmente o pedaço da asa que alcançaram. Adyna debateu-se, cortando um pedaço da própria asa no esforço e rolou para longe chorando.
Terath gargalhou:
— Assustou-me por um momento, mosquita. Um serzinho tão pequeno foi quem mais conseguiu ferir-me até então. — Disse, entre jocosa e irada. Mostrando a pata arrancada. — Vou lembrar de ti, claro, para sempre. Mas dessa história mais ninguém saberá, mosquitinha gorda, mole. Quem se lembrará de você quando falarem de mim? Quando contarem terrores aos filhos durante a noite, quem mencionará a mosquito gorda e mole de asas grandes lerdas?
Terath saltou, alto e adiante, caindo sobre Adyna que encolheu-se. A aranha deixou uma das patas, duras, pontudas cair sobre o ombro da pequena. A mosquito gritou de dor e o rosto da aranha aproximou-se do seu. Adyna sacudiu a espada como pôde tentando afastar o monstro de si, mas a aranha segurou a arma com seus bracinhos e as gotas de saliva venenosas começaram a pingar no rosto de inseto da pequena.
Adyna não sabia o que fazer e nesse momento, e com a mente embaçada o pânico lhe trouxe lembranças de Iroas e as coisas que lhe ensinou. Não poderia ser apenas uma curandeira. Podia ir além? Se podia curar, podia causar dor? Seria capaz apenas de fechar os ferimentos com seu toque ou talvez poderia fazê-los surgir?
Defendeu-se da aranha e segurou-lhe uma das pernas. A aranha recuou a pata libertando-a das mãos da mosquito e avançou com o rosto para pegá-la. Adyna protegeu-se dos braços e espalmou as mãos no rosto e nos olhos do monstro. O brilho em suas mãos foi estranho para a mosquito, uma cor jamais vista. Escura, sombria. Diferente.
Em resposta veio o grito de Terath. Dor. Ela soltou Adyna que fugiu desviando-se da dança de pernas que a aranha fazia em agonia.
A mosquito pegou a espada e correu para longe e ao redor de Terath. A aranha recuperava-se e avançou devagar pela caverna.
— Podes fugir, mas não poderás escapar. — Parecia atordoada — Podes ter ferido meus melhores olhos, mas tenho outros tantos meios de vê-la.
Adyna não a ouviu, correu de espada em punho não contra a aranha, mas para as paredes. Ela envergou as asas cinza claro cobrindo suas costas. Contra as teias sujas da caverna e na escuridão onde estavam, isso a fez desaparecer, mimetizada entre as cores do lugar.
— Não. — Terath parecia finalmente preocupada. — Não! Onde estás, pequena mosquito mole? Achas que podes se esconder de mim em minha casa? Enxergo aqui pelas paredes, pela névoa do chão e pelos fios que plantei pela caverna. — E então Terath virou-se exatamente para o lugar onde Adyna se escondia, o peito da mosquitinha comprimiu seu coração acelerado. — Cada passo aqui dentro é um passo na minha própria cabeça, pequena gorda mole. Meus fios são como antenas, são meus próprios nervos abertos e sensíveis a cada tremor e cada fiapo de som. Mesmo seu respirar eu consigo ouvir daqui. Pareces amedrontada, gordinha, é isso? Estás com medo?
Sim, estava. Adyna encolheu-se olhando a quantidade de teia espalhada por Terath, fios longos que pendiam do teto ao chão e outros tantos ligando-os entre si. Fios nas paredes e espalhados sobre eles como uma rede. A respiração da mosquita se abrandou. Ela apertou firma o cabo da espada de Iroas e saiu de seu esconderijo. Terath sorriu e inclinou-se contra ela.
Adyna avançou contra um fio de teia vertical pela caverna, cortando-o. A aranha virou-se rapidamente nesta direção. Então saltando com a asa a proteger-lhe, Adyna tornou-se cinza novamente e sumiu contra a caverna escura. Cortou outro fio e correu, invisível e cortou mais outro. A cada corte a Aranha virava-se como que sentindo o perigo ou oportunidade de certo lugar.
A curandeira continuou cortando as cordas e a Aranha, confusa e cega ainda pela dor nos olhos girava sobre si. Cambaleando e procurando a mosquitinha.
— Pare. — Ela gritou. — Pare com isso ou vou fazer sua morte ser ainda mais dolorosa.
Adyna continuou a correr. A espada do mestre em punho, cortando as teias com a lâmina e a cada golpe parecia que atingia mesmo os próprios nervos de Terath.
A aranha gemia e logo urrava de confusão e dor, tonta, atordoada. Rodava pelas pernas. Por algumas vezes ameaçou avançar contra Adyna, por duas realmente o fez, mas arremeteu sem precisão encontrando apenas o espaço em que Adyna estivera momentos antes. Não parecia capaz de orientar-se corretamente e então a caverna parou de rodar quando Adyna cortou o último fio de teia. Terath cambaleou para os lados, procurou pela mosquito e a encontrou.
Adyna estava sobre o corpo caído e parcialmente devorado de Iroas. A aranha lançou-se adiante contra ela, mas seus pés não estavam firmes como antes, mas cambaleantes. Apesar disso, ela alcançou a mosquita e, com os braços, desarmou-a, lançando a espada caverna adentro.
— Foi um esforço em vão. — Terath sussurrou, com a voz fraca. Seus olhos não estavam aguçados, mas baços e confusos. — Sua arma se foi, pequena.
— Aquela não era a minha arma. Era a dele!
Abaixando-se, Adyna tomou sua lança esquecida no chão e ergueu-se, puxando o cabo e a ponta da arma pelo tórax de Terath. A ponta da lança deslizou pelo casco duro e então engatou em uma das fissuras abaixo de sua boca. A força que tinha não foi suficiente para rasgar o monstro, mas abriu suas largas e lentas, mas muito fortes asas redondas e mesmo com uma delas feridas deu impulso no ar. A aranha, tonta, tentou desvencilhar-se, Mas Adyna avançava forçando as asas para o alto mais uma e mais outra vez e a lança cravou-se na carne da aranha rasgando a crosta e atravessando rumo à boca e depois dela a cabeça do monstro. Terath debateu-se em vão e Adyna forçou seu vôo enfiando-lhe a lança até que a ponta saltou para fora da aranha por cima atravessando toda sua cabeça.
Ela sentiu o peso do corpo gigantesco sobre sua arma e então viu os olhos malignos de Terath se embaçarem e as presas e os braços ao redor de sua boca lentamente penderem mortos. Soltou a lança e a aranha caiu no chão espalhando poeira e fazendo a névoa expandir-se em ondas poderosas que explodiram em fumaça contra as paredes.
— Pequena. — Dizia Terath. — Gorda... mole...
Adyna respirou e deixou-se cair chorando sobre o corpo do Guerreiro.
Quando saiu da caverma, carregava o corpo de Iroas, mas não havia ninguém para ajuda-los. Os soldados feridos já estavam mortos. Colocou o mestre morto próximo a uma rocha protegida.
Iroas, o herói que fez tombar Ákrida, o gafanhoto. O herói da batalha de Tehhas. Que resgatou a rainha Ijara e que recuperou os tomos de Cern, quebrado ao meio como um galho seco.
Iroas caiu para Terath, mas ninguém o saberia. Adyna contaria outra história. Quando ele se sacrificou e a venceu usando a lança da curandeira. Sua escudeira. Aprendiz.
Ela chorou sobre o corpo do grilo.
— Eu sou apenas uma curandeira.
— Você não é. — Ele disse — Você é mais que apenas uma coisa. Ser uma curandeira não é o que define você, Adyna, pequena. Não é o que vejo em você, não é o que lhe é guardado.
— Você é o herói, Iroas. Eu, a escudeira.
— Eu sou herói porque assim me querem. Porque os salvo do mal que não podem ou querem enfrentar. O maior mal de todos, menina, é a morte. É o que temo, pois se me atingir, cairei para sempre e não mais poderei fazer o que eu nasci para fazer. E sempre que você ergue sua mão para mim e me afasta do destino final me salva desse mal.
Adyna o ouvia com atenção em suas lembranças.
— É o mal que não quero, nem posso enfrentar. Isso faz de você a minha heroína. Se não é de todo o povo, é a heroína dos heróis e isso faz de você maior que todos nós.
Ali ficou a mosquito e o grilo morto, vivendo lembranças até que os reforços chegaram. As formigas avançaram, soldados abrindo caminho entre a mata pelos flancos e alcançando a entrada da caverna. Gritavam uns para os outros para se localizar. Até que um pequeno grupo avançou na clareira onde estavam.
— Ali. Venham. Vejo insetos aqui.
— Posição. Posição.
— Não, senhor, não oferecem perigo. Estão com a gente, são nossos. — O soldado avaliou. — De toda forma, o grilo está morto e a outra é só uma curandeira.
Comments (0)
See all