—E tu, Matt? — perguntou Cecília. — Também tiveste um encontro com uma dama misteriosa?
—Não não, nada de dama. — respondeu o engenheiro enquanto palitava os dentes. — Mas não deixa de ser estranho de qualquer jeito...
—Pois conta-nos, que também estou curiosa. — pediu Cecília, repousando a bandeja na mesa e tomando uma cadeira pra si.
"Ok, eu não sou bom como o Roque pra contar histórias, mas vamos lá... Foi bizarro."
—Bem, essa foi uma história curta. —cortou Ambrose, jogando outra bandeja na frente de Cecília
—Eu... não acabei. — balbuciou Matt.
"Depois que a gente se separou e foi cada um pra seu caminho, eu fui atrás de ver os animais. Depois de ver tanta máquina na minha frente, era bom ter uma mudança visual, sabe? Ok, eu não sei explicar muito bem como se deu, tudo parece muito borrado nas minhas memórias...
"Eu lembro que entrei num jardim, ou algo parecido, tinha um monte de macaco fazendo macaquice: pulando, roubando comida, entrando nas roupas e catando piolho dos visitantes, esse tipo de coisa. Engraçadinhos, um deles até fez reverência a mim, talvez reconhecendo minha grande inteligência. Mais na frente, eu vi mais animais e fui ver o que tinha de mais.
"Aí tinha uma tenda lá que meio que destoava do resto da área. Era basicamente um zoológico, não era comum ter uma tenda de freakshow, embora eu não duvide que o tal Homem Gordo Comendo Um Balde de Frango pudesse ser um orangotango. Maldita seja minha curiosidade mórbida, paguei os cinco centavos e entrei.
"Tudo escuro, outras pessoas estavam lá, todas de pé porque realmente, a cinco centavos eu não esperava que tivesse banco. Daí o apresentador apareceu, ele parecia um daqueles donos de circo, baixinho, calvo, bigodão, e um chicote na mão. E a cartola, verdade. Uma cartola roxa, sujeito excêntrico. Daí ele berra algo como 'CONTEMPLEM, JANJÃO, O GORILA MÁGICO!', e abre uma cortina, que tinha um gorila.
"'Parabéns, gorila, você é um gorila.', eu pensei. Só que ele parecia mais um manequim. Paralisado. Eu sabia que ele tava vivo porque ele parecia se equilibrar, mas se forçava a ficar parado. Dava pra sentir o bafo dele também. A barriga mexendo quando respirava. Tava vivo, mas não se mexia. Não piscava.
"'Pff, eu vou embora.', eu disse comigo mesmo, e atravessei o mar de gente que tava na tenda, e os guardas de queijo pareciam não me parar."
—Os guardas de QUÊ? —Annabelle berrou.
—De queijo. —respondeu Matt, que levou um soco da parceira como resposta. —Ok, ok, só me ouçam ok? Eu juro que foi assim que aconteceu.
"Eu saí de volta pro jardim, que agora parecia reluzir mais com as ruas de ouro. Estranhei, ok, deve ser o grog vencido, sabia que esse lance de misturar água com ruim ia fazer mal uma hora ou outra.
"Prossegui passando pelos outros visitantes, só não lembrava deles serem tão peludos. Imaginei que fossem alemães, ou esquimós, mas eram ursos. E leões. E zebras. Muito educadas, inclusive, sempre tiravam o chapéu por onde eu passava. Cheguei no jardim dos macacos, mas não entendi a conversa deles sobre ações, exceto que a Companhia das Índias tava aumentando a frota. Um dos macacos respondeu 'Eu saí com uma índia uma vez, mas a tribo dela quase fez kebab comigo'.
"Eu não entendi a piada, mas deve ter sido engraçada, porque os outros macacos explodiram de rir. Literalmente, papocaram como se fossem feitos de dinamite, o que deve ter explicado o cheiro de pólvora no ar depois disso.
"Essa visão foi tão estranha pra mim que minha vista começou a escurecer. Já achei que fosse insolação, e sim, fazia um tempo que eu não bebia água. Me escorei num poste, esfreguei os olhos, e joguei água na cara, tentando passar o calor e limpar a vista. Fui acudido por um casal que passava por lá, que embora estivessem derretendo, pareciam simpáticos.
"Voltei pra tenda do gorila, tentando correr o melhor que podia em todos os tapetes que apareciam no meu caminho, eu escorregava demais, cheguei a cair no chão e quase fui atropelado por um rinoceronte de monóculo.
"Só então eu notei que os macacos nas jaulas eram gente pelada agindo como macacos, e comiam alguma coisa que parecia fritura que os animais civilizados davam pra eles. Tinha inclusive uns avestruzes que tiravam comida do chão. Tipo, de dentro da terra. Eles enfiavam a cabeça no chão e quando tiravam traziam um pedaço de coxa de frango na boca e jogavam dentro da jaula.
"Foi aí que eu acho que vi o Roque correndo com a tal dançarina, mas só vi vultos e parecia uma raposa e uma tigresa. Também vi a Annabelle montada num canhão perseguindo um monte de cangurus usando roupa de atleta. O mais estranho era ela tar com um chapéu de vaqueiro, de fato. O que me lembra, tenho saudades das Olimpíadas Australianas.
"Pra encurtar a história, eu não lembro bem porque enfim, memórias embaçadas, mas a tigresa pareceu sussurrar algo no meu ouvido, e sumiu imediatamente depois. Eu lembro de fumaça, mas ela pode ter só sumido mesmo.
"Entrei na tenda de novo, que agora abrigava ursos que cantavam algo sobre banhar-se na lua. Os soldados de queijo me pegaram pelo braço, balbuciaram algo sobre desrespeitar os lunáticos, me jogaram pra cima, e quando caí, caí em mim. Literalmente.
"Tornei a mim e o gorila ainda me encarava fixamente enquanto o apresentador falava. Saí de lá o mais rápido possível, nem esperei ele terminar de apresentar o gorila, eu nem sei exatamente o que aconteceu, eu só sei que... Pareceu real. Real até demais."
—Mas cê tava na tenda o tempo todo? — perguntou Roque.
—Eu não faço idéia, mas é possível. — confirmou Matt. —Foi como um sonho, mas eu conseguia sentir meus movimentos como se fossem reais... E tudo que eu descrevi também, tudo tinha textura e cheiro.
—Pelo menos não estavas a perambular com outra gaja. — disse Cecília, beijando a bochecha de Matt e retomando sua bandeja.
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