—Muito bem então, agora só falta a Annabelle. — disse Matt, botando os pés na mesa.
—Eu vou tentar resumir a história, até pra não deixar escapar alguns dos meus segredos de jogo pra todos esses pilantras que frequentam essa taberna. — disse Annabelle, com um tom abusado.
"Ok, tentar lembrar aqui. Depois que a gente se separou, eu fui atrás de comer alguma coisa que fosse. Sei lá, deu vontade. Tomei um negócio duns chineses que me deu dor de cabeça, parecia fruta congelada, um horror. Daí fui atrás de algo que eu tivesse mais à vontade, tinha uma área lá com uns jogos de tabuleiro e eu fiquei observando por lá, pra ver se acontecia algo de interessante.
"Acontece que tinha um pessoal meio estranho jogando um jogo de cartas, mas não era pôquer, era outra coisa. 'É Copas.', disse um rapaz que parou do meu lado, também observando o jogo. Se me perguntasse, ele era um ladrão. Ou tarado. Não consegui ouvir os passos dele se aproximando de mim, se tentou me roubar ou passar a mão também não senti. Usava umas roupas estranhas, mas não tão chamativas, o mais estranho era um tipo de capa vermelha com bordas coloridas, mas a blusa e a calça eram mais sem graça do que se espera de alguém que usa uma capa vermelha.
"Perguntei o que raios era Copas, e ele se ofereceu a me ensinar. Qualquer coisa que possa me oferecer uma vantagem é de boa, então aceitei. Ele expulsou dois jogadores com uma delicadeza que nem parecia que ele tava enxotando os caras. Nos sentamos, ele explicou as regras, tudo tranquilo até aqui.
"Sentamos com os outros dois que ficaram, amarrei meu cabelo pra ninguém dizer que eu trapaceio, arregacei as mangas, e ainda fiz o estranho tirar o olho do meu busto, só com meu olhar. Cartas distribuídas, peguei o dois de paus, joguei.
"O jogo seguia bem, fiz alguns pontos, mas não tanto quanto os outros. O estranho que continuava zerado. 'Vai lá, lassie, faça sua jogada', ele repetia pra mim, que ainda me acostumava com o jogo e demorava a fazer uma jogada.
"Seguimos sem muito problema, o estranho continuava sem pontuar, exceto quando o fazia de propósito, jogando uma carta de copas alta. Só que (vejam só), depois de um tempo eu notei que ele dava uns petelecos sutis em algumas cartas, antes de jogá-las. Pode ser só um tique nervoso, mas era estranho como as melhores jogadas vinham justo depois desse maldito peteleco.
"'Não pode ser', eu pensei comigo mesmo. Era impossível. Minhas cartas não pareciam mudar, pelo menos eu não notava. Ele tava roubando cartas dos outros... sem roubar?
"Ninguém tinha jogado uma carta de copas nessa rodada. Todo mundo com pontuação zerada. Pelos meus cálculos, todo mundo tem algumas cartas de copas na mão, não sei exatamente quantas, no entanto. É possível que o estranho tivesse todas copas na mão, e talvez tivesse nenhuma. Mas eu tinha um três de copas na mão, e resolvi apostar.
"'Seguinte, eu acho que cê tá trapaceando.' O estranho me olha desconfiado, mas sorrindo. 'Eu vou botar essa carta na mesa, e ela é sua, vai ser a sua última carta a ser jogada. Se fizer o que eu acho que vai fazer, então terei certeza que está trapaceando.'
"'Muito bem.', ele respondeu. 'E posso saber que carta é essa, pra adaptar na minha estratégia?' Eu respondi, 'dois de copas'. Ele retrucou: 'Está blefando?'. Imediatamente tirei meus brincos de prata e botei na mesa. Ele pareceu entender.
"Voltamos ao jogo. Tudo segue normal, ele evitou de dar peteleco, mas teve uma vez que ele pensou em dar, talvez pra me distrair. Eu sei que ele quer acertar a lua."
—Que que é "acertar a lua?" — interrompeu Roque.
—O objetivo de Copas é fazer menos pontos possível, as cartas que dão pontos são as de copas, um ponto cada; e a rainha de espadas, que vale 13 pontos. — Explicou Annabelle. — Ele propositalmente foi pegando todas as cartas de copas, mas lhe faltava uma ainda: a rainha de espadas.
—Que eu imagino tenha sido a carta que tu baixou.
—Exato, um dois de copas seria facilmente jogado por ser de um valor baixo e ser uma carta indesejável. A menos que tu queria acertar a lua.
"Se minha carta virasse uma rainha de espadas do nada, e a última carta, aquela que eu baixei, for um 2 de copas, então vou saber que que ele tá trapaceando.
"Última rodada. Os quatro jogadores baixaram as cartas, eu inclusa. O estranho puxou a carta que eu tinha baixado pro lado dele. O jogador do Oeste virou a carta: três de paus.
"Antes que os outros virassem suas cartas, eu interrompi: 'Então... algum palpite sobre a carta que eu baixei?' Ele me olhou como se me analisasse. 'Cê mesma me disse, um dois de copas.', ele respondeu. 'Não acha que blefei?', eu retruquei. Aí ele disse, 'Uma criatura tão bela jamais mentiria pra mim.'
"Ele solta um risinho acompanhado de uns toques na mesa. Em cima da carta. Suspeito demais, se me perguntar. O jogador do Leste vira a carta: cinco de ouros. Se o dois de copas estiver na mão dele, ele perde. Não acerta a lua. Perde meus brincos, que não valem muito, mas pra um apostador, vale como troféu.
"Ele vira a carta: RAINHA DE ESPADAS. 'Parece que você blefou, lassie', ele diz, com um sorriso vencedor. O dois de copas com certeza tá na minha mão.
"Sorrio de volta pra ele. Viro minha carta: ÁS DE PAUS.
"Todo mundo na mesa começa a cochichar. O estranho parece perdido, olhando pros lados. Pego a rainha de espadas, dou um peteleco: ela se parte em duas, como se tivesse se multiplicado, revelando o dois de copas.
"'Não sei como fez isso, mas trapaceou', acusei. Ele se levanta, calmo como nunca vi, pega a rainha de espadas e começou a embaralhar. Eu sei, parece estranho, mas de alguma forma, as cartas simplesmente se multiplicaram na mão dele. Ele diz, 'Poderíamos ter vivido alguma coisa, mas cê vai ser sempre, a rainha do meu coração, lassie.' Ele pega a rainha de copas e passa nos meus olhos. No exato momento que a carta some da minha vista, o estranho some."
—Eu ainda não sei como aconteceu, mas eu juro, aconteceu. — Annabelle termina sua história.
—E aí, Ambrose? Já ouviu algo tão mirabolante e impossível assim? — disse Roque, com um tom de orgulho na voz.
—Te contar que não... Mas já ouvi algo parecido de uns ciganos que passaram aqui uma vez... Ou eram artistas de circo. — Ambrose claramente parecia tentar se lembrar, enquanto passava a mão na careca. — Mas não é como se vocês ou outros marujos não tivessem contado coisas sobrenaturalmente impossíveis, também. Eu acredito em vocês. Talvez um dia cês se reencontrem com tais pessoas mágicas de novo, e tirem essa história a limpo de uma vez por todas.
Roque ouvia o tom que Ambrose mencionara as "pessoas mágicas" enquanto acariciava a própria mecha branca do cabelo, se perguntando quando iria rever a sua própria "pessoa mágica".
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