Um tipo suspeito entra no bar de Ambrose. Ele traja um sobretudo e parece fugir de algo, e desconfia de todos os lados que observa.
—Ele não parece ser da região... — observa Roque, analisando o sujeito de cima a baixo.
O sujeito então conversa rapidamente com Ambrose, que levanta a sobrancelha, mas faz um sinal positivo com a cabeça. O estranho começa então a berrar pra todos os clientes:
—Aproximem-se, aproximem-se! Aproveitem essa oportunidade única, pois não é todo dia que um navio carregado de jóias aparece numa ilha esquecida como esta!
Roque observava o sujeito correndo de mesa em mesa, se gabando de suas jóias à venda, de descontos e o que mais que ele pudesse pensar pra convencer possíveis compradores. Infelizmente, nada parecia dar resultado, e os marujos enxotavam o vendedor. Até que ele bate os olhos em Annabelle, que exibia um anel trabalhado na prata e corre na direção dela.
—Minha querida donzela, perdoe-me a interrupção. — disse o homem. — A senhora não estaria interessada em vender este belíssimo exemplar de anel?
—Camarada, vamos por partes. — respondeu a pirata. — Não sou querida, não sou aristocrata, e nem sou sua. Comece de novo e talvez possamos fechar negócio.
—Certo, certo... — o vendedor perdera a compostura energética. — Eu tenho uma coleção de anéis dessa mesma linha, feitas de metais preciosos e raros. Mas só me falta esse pra coleção, e eu pretendo vendê-la completa. Mas sabe... Não é um anel tão raro assim, mas já faz um tempo que eu o procuro. Ainda assim, podemos fazer um bom negócio.
—É aí que você se engana, meu caro vendedor perturbado mental. — respondeu Roque, segurando a mão de Annabelle e apontando pro anel. — Este anel em específico carrega uma história, e talvez ele valha bem mais pra nós do que pra você, e talvez, talvez, se ele passar a ser seu, possa valer bem mais pra um possível comprador. Está disposto a ouvir a história e julgar por si mesmo?
O sujeito se senta na cadeira e puxa uma asa de galinha, que é prontamente tomada por Matt.
—Se quiser comer, o preço aumenta. — disse o engenheiro, fazendo um sinal pra que Roque começasse a história.
"Faz uns meses isso, a gente tava em algum porto nas bandas da Índia, recebendo por mais um trabalho bem feito. Matt e Annabelle ficaram pelo porto, procurando informações nas conversas locais, em busca de mais negócios. Eu fui receber o pagamento com meu contato, em um dos hotéis da cidade. E lá mesmo, um sujeito ficou me encarando.
"Ele era bem alto, ombros largos, barba cheia e pontuda, e um nariz ligeiramente esticado. Pele morena, mas parecia de passar muito tempo ao sol. As roupas não eram chamativas, especialmente num porto que recebe gente de toda parte do mundo, mas eram distintamente... brilhantes, que eu lembre. Franjas douradas, tecidos coloridos e vibrantes, e o cara não piscava. Suspeitei que fosse um ladrão, mas um ladrão teria mais discrição tanto no vestir como no encarar.
"Saí do hotel e ele veio me seguindo. Já tirava a pistola da cintura, quando ouvi 'Não vamos precisar de armas, pode guardar.' O sujeito já tava do meu lado, e sabia das minhas intenções. 'Não quero lhe roubar, quero lhe contratar. Preciso fugir de uns caras e tenho que matar outros', ele continuou.
"'Precisa de um guarda-costas ou de um transporte?', eu perguntei. 'Se tá disposto a matar alguém, pode se livrar de seus algozes, não?'
"'Não é tão simples. Minhas habilidades são limitadas, e eu não tenho uma nave', ele respondeu. 'Preciso ir urgente ao Sri Lanka, e pago bem.'
"'Cê é escritor?", eu perguntei.
"'Sou apenas um guerreiro com um dever a cumprir', ele respondeu.
"'Parece bom pra mim, venha comigo', eu respondi, e o levei ao hotel onde estávamos alojados, apresentei a Matt e Annabelle (que a essa altura não tinham conseguido trabalho, mas deram uma surra num picareta que usava cartas pra ganhar dinheiro), e passamos boa parte da noite trocando idéias, histórias, e receitas culinárias. Era um homem bastante culto, e (se ela me permitir dizer), Belle pareceu bem atraída por ele."
—Um homem forte, estrangeiro, culto, engraçado e com senso de higiene? Tem passe livre no meu livro. — respondeu Annabelle.
"O estranho era que ele se recusava a dizer o nome dele. Parece que era algo da cultura dele, da casta de guerreiros ou algo assim. Sei lá, parecia que ele era espião e não podia dizer o nome real pra não ser perseguido, ele realmente não deu muito detalhe, mas disse que o chamássemos de Adil.
"No dia seguinte, embarcamos na Princesa de Guerra, e Adil não parava de rasgar elogios à nossa pequena fortaleza ambulante. Matt fez um tour pelo navio, e pelos comentários, Adil adorou como nós mexemos nos mecanismos de defesa e como adaptamos pra que três pessoas tomassem de conta de todos os serviços do navio. Ele via a correria, e ainda assim elogiava porque era realmente um feito.
"'E nem é só isso', eu disse. 'Ainda temos tempo de cantar. Bom, é necessário, mas ainda assim... Veja', e comecei a cantar, acompanhado dos meus amigos.
Vamos ficar bem, com o vento em nossa vela
Vamos ficar bem, com o vento em nossa vela
Vamos ficar bem, com o vento em nossa vela
E vamos nos segurar
E vamos, empurrando a carruagem
E vamos, empurrando a carruagem
E vamos, empurrando a carruagem
E vamos nos segurar*
"Mas não só isso, também encenamos um pouco de Mr. Tapscott, mas justo no meio, ouvimos tiros de canhão. Balas pesadas como o dedo divino passaram zunindo pelas velas da Princesa, e através da luneta, Matt confirmou: 'Portugueses. De novo.'
"'Ah que raio. Eles fazem navios mais rápido que podemos destruir? É isso mesmo?', eu caçoei de uma forma tão leve que assustou Adil.
"'Estão atrás de mim', ele disse. 'Sabia que isso aconteceria.'
"'Não se preocupe, meu amor. Eu irei protegê-lo!', a Annabelle saltou pro andar dos canhões."
—Eu não falei isso, conta direito! — interrompeu Annabelle, tentando esconder o embaraço.
"Ok, ok. Não foi bem assim, mas poderia ter sido. Mas que ela pulou pro andar dos canhões, pulou, e deixou Matt ao encargo das velas e eu ao timão. O que era incomum, normalmente ela ficava nas velas e Matt aos canhões. Adil seguiu Matt, porque ele viu o trabalho que é mexer nas velas, e entendeu rápido o significado de 'todas as mãos no convés'.
"Aceitei o desafio dos portugas e comecei a velejar na direção deles, afrontando mesmo. Tá pra nascer o navio que enfrente a Princesa e siga inteiro, não tínhamos nada a perder. Comandei o tempo de ativar os canhões, fiz manobras evasivas, e por muito pouco eles não nos acertam. Até que do nada, soldados subiram no navio.
"Era um problema, estávamos acostumados a manejar tudo nós três, mas à distância, não uma invasão. Os desgraçados nos distraíram com os canhões, e mandaram botes pra nos invadir, eu só ouvi a Belle berrando que viu alguém subindo pelas janelas.
"E aí Adil mostrou que poderia ser um valoroso membro da Princesa, porque o absoluto homem louco pulou do alto das velas, empunhou uma cimitarra e já foi pulando de soldado em soldado, cortando pescoços, braços, ou só nocauteando com o punho. Logo Matt se juntou, sacando duas pistolas e controlando a invasão ao longe.
"Quando tudo se normalizou no convés, Adil correu pra sala dos canhões, onde Annabelle tentava controlar a situação. Pelo barulho que eu ouvi dos canos que ligavam o convés até o andar de baixo, foi uma briga feia.
"Eu sei que pouco depois, o barulho parou, e os canhões voltaram a explodir na direção do inimigo. Só que Annabelle subiu, com um braço sangrando, e tão logo Matt sentiu cheiro de sangue, correu a fazer o curativo nela.
"E eu juro, sem exagero, as balas de canhão ficaram... Estranhas, pra dizer o mínimo. O navio português ainda se mantinha a uma boa distância da gente, então os dois tinham chances iguais de se acertarem... Exceto que nossas balas faziam curva. Sem brincadeira. Uma das balas submergiu na água e explodiu perto da proa do inimigo.
"'Estamos com alguma bala explosiva?', eu perguntei, confuso.
"'Até onde eu lembre... Não. Gastamos todas no Cabo Verde', respondeu Matt, enquanto desperdiçava vinho no braço de Annabelle, que se limitava a gemer com o ardor do curativo.
"As ondas que as explosões criaram foram suficientes pra virar o navio do avesso, e de longe dava pra ver marujos pulando antes que fossem afogados pela montanha de madeira. Era incrível, mas eu confesso que senti um pouco de pena.
"Logo depois, Adil sobe e vê a cena de Matt ainda tentando fechar a ferida de Annabelle. Ele se abaixa, e eu vi com meus próprios olhos, ele segurou o lugar onde Matt colocara o pano, e apertou... E a coisa mais incrível aconteceu... Os olhos de Annabelle ficaram cor-de-rosa e brilhantes como uma noite estrelada."
—ROQUE! — berrou Annabelle, estapeando as costas de seu capitão.
"Tá bem, tá bem, desculpa. Ele apertou o braço dela onde tava ferido e... De repente, não tava mais ferido. Cicatrizou e a pele tava... normal. Como se nunca tivesse sido ferida. 'Ainda tem que lavar pra tirar o sangue do corpo, mas deve resolver', ele disse.
"Incrível. Absolutamente incrível. Perguntei se ele era algum tipo de mago, mas ele, de novo, não podia dizer. Era parte de sua missão. Respeitamos sua decisão, e seu caráter ainda mais, e seguimos viagem pro Sri Lanka."
Roque parou de contar a história. O vendedor ficou impaciente.
—E então? O que aconteceu? Como isso se relaciona com o anel? — Perguntou o homem.
—Me paga uma caneca de cidra, que eu te conto... — disse Roque, balançando a caneca na frente do vendedor, que por sua vez, chama Cecília com uma moeda na mão.
(continua...)
*The Old Chariot
Comments (0)
See all