Roque bebia a cidra como se a própria vida dependesse disso, e pela cara do vendedor impaciente, talvez dependesse mesmo. Após limpar a garganta, o pirata tenta retomar a história.
—Então... Onde eu parei? — ele diz, limpando a boca com a mão.
—Vocês tinham destruído navios portugueses e foram pro Sri Lanka. — o vendedor responde, com um ar interessado, mas irritado.
"Oh, sim! Claro! Enfim, depois desse pequeno encontro, seguimos viagem normalmente, sem muitos imprevistos, mas claramente a presença do estranho já se tornava mais imprevisível. Ele não demonstrou mais de seus poderes nos dias que se seguiram, mas não era algo que podia mais esconder.
"Chegou um dia que, durante o jantar, simplesmente perguntamos pra ele o que raio tinha acontecido naquele dia. Ele suspirou e começou a contar sua história, da melhor forma que podia.
"Era um causo fascinante, de fato. Ele era de uma longa linhagem de guerreiros de um povo esquecido, um povo que de uma forma ou de outra, alcançou o domínio dos elementos através da mente. O que talvez explicasse ele ser tão desapegado de coisas materiais, ao contrário de nós. Foi só então que ele chamou atenção a um anel sem pedra que carregava em seu dedo, que parecia ser parcialmente a fonte de seus poderes. Ele não explicou de novo (porque era segredo de seu povo e ele temia que caíssem em mãos erradas), mas insinuou que sem o anel, ele perderia os poderes."
—Eu lembro vagamente. — interrompeu Annabelle. — Era como se o anel fosse algo que elevasse o potencial mágico dele.
—Ah sim, claro que cê prestou atenção no que ele dizia. — retrucou Matt.
"Enfim, resolvemos respeitar o cara e os segredos do povo dele, e não perguntamos mais nada sobre isso. Seguimos até nosso destino, aportamos, e Adil já quis se despedir. 'Não quero ocupá-los mais do que combinamos, talvez minha missão seja perigosa demais pra vocês', ele disse, quando me entregava um saquinho de moedas bem pesadinho.
"'Nada disso, a gente vai até o fim. Cê vai precisar de ajuda, se for perigoso como diz', eu respondi, e meus companheiros confirmaram. Adil aceitou, meio a contragosto. Parecia o tipo que trabalhava sozinho, mas que sentia falta de uma companhia.
"Adil foi nos guiando durante toda a jornada, o primeiro passo era achar o alvo dele, que aparentemente era um ricaço ou pelo menos alguém importante, então não seria difícil de encontrar. Como tinha um mercado no lugar, resolvemos nos misturar um pouco entre as barracas, olhar os produtos, enquanto Adil fazia o trabalho pesado.
"A gente tava olhando uns tecidos, quando Adil nos chamou sutilmente. Nos reunimos e já tivemos que ir andando, acompanhando o passo do nosso líder temporário.
"'Acho que me deram uma informação fresca, espero estar certo. Vamos precisar de disfarces', ele nos contou, enquanto seguíamos uma carroça que saía da área mais urbana. Pulamos e nos penduramos na parte de trás, entramos no cargueiro, e vestimos algumas roupas que lá estavam. Seja lá o que tivesse na carga, fedia.
"Passamos algumas horas na carroça, que seguia sem caminho sem saber da nossa existência ainda. Quando eu já tava pronto pra provocar, a carroça parou e eu dei graças aos céus. Descemos da carga, e o carroceiro veio obviamente, descarregar as caixas, e nos descobriu.
"'Quem são vocês?', ele perguntou, espantado.
"'A gente veio ajudar a descarregar', disse Adil, apontando pro carroceiro com o dedo com anel.
"O velho encara Adil por um momento, e, como se lembrasse algo que tivesse esquecido, diz 'Ah bom, então podem começar'.
"Annabelle começou a fazer pantim pra não fazer força, mas Adil disse que era parte do disfarce, não precisava levar nada, e mandou que a gente seguisse ele.
"Era uma propriedade bem boazinha de se viver, se me perguntar. Árvore, bicho, isolada, casinha simples mas elegante. Seja lá quem comprou esse lugar tinha dinheiro pra gastar, e queria se esconder. Mas o encontramos.
"Logo surgiu um homem que parecia um paxá, ou um sultão, ou só alguém excêntrico que usava roupas de outro lugar, podia ser só um sujeito muito viajado. Ele sai da casa a nos receber, mas logo que vê Adil, manda seus jagunços nos atacarem. O que não é um problema pra gente, claro. Pirata que não anda armado é um leproso, a menos que esteja na taberna do Ambrose, aí é um marujo morto.
"O cara ficou até espantado por termos terminado o serviço tão rápido, e olha que a gente nem matou os cara, só ferimo e deixamo nocauteado mesmo. Ele ficou se tremendo todo, enquanto Adil calmamente andava na direção dele. Era uma calma imponente, ameaçadora, mas tranquila, nunca vi homem nem monstro ter uma aura assim.
"Eu sei que o cara lá caiu enquanto tentava evitar o inevitável, e Adil começou a parecer maior, mais forte, e os olhos dele começaram a brilhar. Ele pegou o homem pelo pescoço e ergueu ele com a mesma facilidade de quem levanta um filhote de cachorro. O cara começou a berrar 'Tá naquela caixa! Aquela caixa!'
"Adil solta o homem no chão, vai até uma caixa numa mesa que tinha fotos de família e armas, e tira uma pedrinha vermelha de dentro. 'Agora... Eu que faço os desejos', ele disse colocando a pedrinha no anel, com força suficiente pra rachar ela, aparentemente, porque os cacos dela começaram a cair no chão. E assim como a pedrinha, logo Adil também virou pó.
"O homem no chão tava tão atordoado que nem quis saber quem éramos, só disse que podíamos levar a carga com a carroça se prometêssemos nunca contar sobre o que aconteceu. Obviamente tiramos um pouco mais dele, incluindo o anel que Annabelle exibe em seu lindo dedo de jogadora de cartas."
—E o que houve com a carga? O que era? — perguntou o vendedor.
—É o peixe que está comendo agora. — respondeu Roque, apontando pra uma porção de piabas fritas na mesa. — E então? podemos fazer negócio? Quanto queria oferecer pelo anel mesmo?
O vendedor pensa consigo mesmo, e chama Roque e Annabelle pra um canto reservado. Depois de uma curta negociação, Annabelle entrega o anel e o vendedor sai da taberna. Ao voltar à mesa, Matt pergunta:
—E aí? Venderam?
—Ele foi buscar mais dinheiro no navio e foi mandar os homens dele entregar umas pistolas na Princesa. Vai ter uns brinquedos novos, Matt. — respondeu Roque, fazendo sinal pra que Cecília trouxesse mais bebida.
—Agora, Roque... Pode contar pra mim. — Ambrose se aproximou, sussurrando. — Esse anel... isso tudo aconteceu mesmo?
—Achei ele no chão essa manhã. — respondeu Roque, com um sorriso maligno e satisfeito.
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