O alerta de terremoto e o que devíamos fazer em relação a isso soa nos corredores de forma abafada, reverberando "para a segurança de todos alunos e funcionários, dirijam-se ao pátio da escola, urgentemente".
A cada balanço nosso, conseguinte das nossas tentativas falhas de não perder o equilíbrio, tornava-se mais visível ver Ichiro perder a sobriedade de sua lucidez, deixando-se levar pelo medo. Eu também estava com a sensação de estar sendo preenchida pelo instinto de sobrevivência, mas à medida que o alto falante da escola ressoa mais e mais alto na minha cabeça, sinto que a minha visão se torna gradualmente escura e sem vida.
— Ichiro... — falo me sentindo fraca, como se meus pés não estivessem mais aguentando o peso do meu corpo — Eu... não... tô-
— Só não me larga, está tudo bem, Mizu. — Ele olha para mim — Confia em mim. — Sinto ele colocar o meu braço esquerdo em volta de seus ombros para que eu pudesse me apoiar nele.
Finalmente o terremoto acaba e o pátio aos poucos lotava, fazendo com que o cheiro de desespero ficasse mais forte, mesmo com essa sensação inebriante, sinto que consigo voltar a me manter sozinha em pé, mas ainda assim havia um aroma salgado no ar fazendo as minhas narinas queimarem.
— O ar... — comento baixinho para não desmaiar — está diferente.
— O quê? — Ichiro olha para mim curioso — Como assim?
— Eu não sei... — reflito — Parece que tem sal no ar, mais do que o normal... Não...
— Não..? — Ele repete não entendendo — A gente mora numa cidade de praia, Mizu, você acha que tem alguma coisa errada?
Nem faço muita questão por ele me chamar de Mizu — Sim, mas eu não sei o que é — falo olhando para o céu — Ichiro...
— Oi.
— Obrigada por não ter saído do meu lado... — baixo os olhos.
— Eu acho que é o mínimo que poderia ter feito hoje — ele entristece a voz — foi o que eu gostaria de ter fei--
— TSUNAMI! — Alguém grita em pânico.
Depois desse grito, o pátio que já estava insuportável tanto pela aglomeração, quanto pelos tremores se torna ainda pior e agora a única coisa que podia se entender no meio do caos eram os professores e coordenadores tentando acalmar a todos e a si mesmos. Depois de uns minutos, a diretora pede silêncio e tenta com algum discurso motivacional fazer a gente pensar em outra coisa além do que realmente está acontecendo. Enfim, todos se tranquilizam e em questão de segundos o silêncio paira.
— Ainda tem alguma coisa errada, Ichiro — olho para ele.
— Hm... — pensa com um olhar vazio para céu — É, está para vir algo pior.
Não consigo conter a minha surpresa pela sua resposta, talvez fosse pelo terror e o medo que sentia ou pela clima que pairava no ar. Então, respirei fundo e tentei esvaziar a cabeça, prestar atenção no que acontecia a minha volta e manter a minha sanidade intacta, sem me abalar por tudo o que tem acontecido nesses últimos meses sendo intensificado por este terremoto.
O relógio marca 2:34 p.m.
— Por favor, formem grupos de 20 pessoas — orientam os coordenadores a mando da diretora — vamos levar todos para Fukushima; pois, de acordo com as informações e orientações que recebemos da prefeitura o mar já recuou quase meio quilômetro da costa, então a previsão é que tenhamos menos de trinta minutos para sair daqui.
— Eu... Eu não posso ir... a Youko...
— O que tem? — Ichiro dispara surpreso.
— Ela... — falo preocupada, não conseguindo olhar nos seus olhos — Eu preciso ir.
— Ei! — Ichiro agarra o meu braço — Espera! Não está vendo que estamos sendo ameaçados por um desastre natural?!
— Me larga, Ichiro! — tendo me desvencilhar, mas ele apertou mais ainda a mão no meu braço.
— Mizuki... Eu não vou te largar enquanto tu não me explicar o que está acontecendo — ele se vira para a minha frente, bloqueando meu caminho — Aonde que você vai, Mizuki?
— Eu vou ver a Youko.
— Como você vai fazer isso?
— Não sei...
— Você sabe sim — ele para por um momento — não mente para mim, Mizuki.
— Com licença — uma outra voz nos interrompe — vocês vão subir?
A discussão com o Ichiro me deixou entorpecida que acabei esquecendo que estava ainda na fila esperando um dos últimos ônibus para subir para Fukushima, quando olhei para o relógio que tinha no meu pulso direito já era 2:43 p.m, sinto que algo vai acontecer em breve e a única coisa que passa na minha cabeça é que eu preciso salvar a Youko.
Ela não pode ser transferida...
Eu preciso salvar a Youko...
Ela vai morrer se entrar naquele caminhão...
Eu... preciso salvar a Youko...
— Não — é quase inaudível a minha voz e Ichiro me olha tentando me analisar — tenho que ir...
Antes que pudesse ver a reação do menino que tinha me perguntando se iria subir no ônibus, eu fujo dali. Contudo, um dos coordenadores me avistou correndo e gritou para que eu voltasse, pois era imprudente o que estava fazendo, como eu não dei ouvidos ao que disse, ele tentou ir atrás de mim para que não cruzasse o portão de acesso à saída do colégio, infelizmente, já era tarde demais.
A minha barriga treme e sinto a minha respiração ofegar, nunca tive um porte físico que me ajudasse nos esportes, já o meu coração dispara como se fosse saltar do meu peito, minha pernas ficam bambas e eu quero parar. Mas eu não posso.
A Youko...
Quanto mais eu tento correr rápido vejo a paisagem correr perante os meus olhos de forma mais lenta, eu simplesmente não consigo. Eu estou sozinha e agora é definitivo, pois perdi os meus pais num terremoto, meus avós foram assassinados e a minha irmã considerada como louca estava prestes a morrer. Por mais que tenha feito o que fez, ela não merece isso e eu também não...
Não quero ficar mais sozinha.
O relógio marca 2:51 p.m.
— MIZUKI, PARA POR UM SEGUNDO! — paro para olhar para trás e vejo mais uma vez o Ichiro atrás de mim.
— EU NÃO POSSO! — grito para ele, mas as lágrimas já estavam me cegando e começo a ir caminhando, tropeçando a cada dois passos que dava, pois os meus olhos estavam embaçados demais para que pudesse enxergar com clareza.
Enfim, sinto uma mão segurando o meu antebraço e me puxando para parar. — MIZUKI, PARA — ele diz angustiado — ME EXPLICA O QUE TÁ ACONTECENDO, CACETE!
— Eu não posso, Ichiro. Não temos mais tempo, por favor! — digo ofegante, pois não consigo sentir o meu corpo oxigenar — Youko está sendo transferida para Tomioka. — Então, o desespero toma conta de mim. — Eu preciso salvá-la.
— A gente não vai conseguir...
— Eu preciso conseguir, não posso ficar sozinha de novo.
— Você não está, não consegue enxergar isso, Mizuki?
— Eu... — paro de falar, pois me enxergo nos olhos de Ichiro. — Desculpa.
— Está tudo bem — ele limpa uma das lágrimas que estava ameaçando cair — olha estamos perto da praia.
— É perigoso, devemos ir rápido, Ichiro.
— Eu sei... Eu sei, Mi! — ele pisca pra mim.
O relógio marca 2:55 p.m.
— A água... — eu olho para ele.
— Não tem... — ele completa o que eu ia dizer.
Corremos por mais uns dois minutos até finalmente encontrarmos a praia e o que encontramos foi apenas a areia e uma forma brisa nos puxando para o que devia ser o mar. Eu paraliso e não consigo mais andar, pois a única coisa que consigo pensar agora é que vamos morrer, arrastei Ichiro para a morte junto comigo e agora não tinha mais como voltar. Então, quando eu corro os meus olhos para ele e volto a olhar para o mar vejo um ponto no meio da areia.
— UMA PESSOA! — são as únicas palavras que consigo falar e olho para o Ichiro apontando para onde a enxerguei.
— Mizuki — ele me olha preocupado — não tem ninguém...
Quando volto a olhar para a areia procurando pela pessoa a única coisa que avisto é o tsunami se formando.
O relógio marca 2:56 p.m.
(fim do capítulo dois)
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