Eu sempre amei a Mizuki, como amei a Youko desde que as conheci e por isso não posso perder mais uma parte de mim. Desde que Youko tudo perdeu as cores e não podia ver além do preto, branco e suas escalas em cinza, mas a Mizuki por mais que quisesse se fechar eu via nela a possibilidade de enxergar colorido outra vez.
Seus cabelos negros como a noite era como se os seus olhos quase cinzas de tão azuis se transformassem em estrelas que iluminassem a escuridão da vida que nos consumia, enquanto a Youko era o dia, como antíteses que se completavam e deixaram um vazio quando tudo aquilo aconteceu.
— ICHIRO — minha mãe fala alto enquanto fica me revirando na cama — ACORDA!
— Ah... — resmungo para ela e viro de volta para a cama — o que foi?
— ACONTECEU ALGO — viro para ela e a olho enquanto esfrego os olhos — OS AVÓS DELA, DA YOUKO — ela vacila com as palavras.
Nunca vou esquecer desse dia e o momento que não tive tempo para ajudar a Youko sendo levada pela polícia, a Mizuki arrasada e os seus avós... Dentro de sacos pretos, levados pela perícia criminal... Acabei vendo tudo pela janela do quarto. Paralisado, impotente, não podia ter sido a pessoa mais frouxa e demorei muito tempo para conseguir me perdoar por isso.
Ainda não me perdoei.
Contudo, se não fosse por isso eu jamais teria descoberto sobre o que era capaz de fazer. Num momento de desespero a pós-morte me trouxe uma nova vida e junto a esperança de poder consertar ou de compensar as minhas falhas.
fsss-... fssss-...fsssss-...
A cada momento que deixava os meus sentimentos e pensamentos vacilarem se tornava mais difícil de manter a gente a salvo do tsunami. As cãibras dominavam cada centímetro dos meus nervos e o meu cérebro parecia que a qualquer momento se desligar e nos matar.
— MIZUKI — tento me fazer ser ouvido por ela — SE MANTENHA FIRME, NÃO POSSO...
Vacilo ao tentar prestar atenção nela e ignorar as coisas ao nosso redor.
Ichiro, foco!
— AGUENTAR POR MUITO TEMPO — termino a frase para que Mizuki entendesse o que estava querendo dizer.
— E-eu — escuto a Mizuki rastejar nas palavras — não sei o que fazer.
A pressão da água era tão forte quanto a pressão que sentia em ter que salvar a Mizuki dessa situação, meus músculos começam a falhar e onde vazava água só piorava, eu não ia aguentar e no fim iríamos morrer.
Eu sabia que a Mizuki não falaria nada do que estava acontecendo, já que eram coisas que todo mundo na cidade comentava entre si. A Youko ia ser transferida de Iwaki para Minamisoma e como ela foi considerada uma criminosa extremamente perigosa, foi feito toda uma estratégia de transferência em que a única rota que foi considerada segura era pela estrada da costa litorânea que ligava diretamente as duas cidades.
Youko indo pelo lado mais perigos o sob um alerta de tsunami deixou a Mizuki visivelmente abalada e isso já deixava claro que ela não pensaria em nada além de salvar a sua irmã. Era uma coincidência terrível que a levaria diretamente para a morte, mas eu não podia mais deixar ela sozinha.
Ainda mais agora que eu podia protegê-la.
Até que...
Uma rede de pesca atravessa a barreira e antes que pudesse sentir a água nos engolir não consigo proteger a Mizuki e a água a leva rapidamente para longe de mim. Tento afastar a água do meu rosto para conseguir respirar, mas sob esse pressão é difícil me concentrar e me manter vivo.
Enquanto somos levados, continuo indo atrás de Mizuki para protegê-la de qualquer lixo que pudesse nos machucar. Não esperava que viver fosse ser tão difícil e não posso desistir disso agora que prometi a mim mesmo que a ajudaria a voltar a ter a vida que antes teve.
Mizuki, por favor aguente firme.
A água continua correndo terra a dentro e tudo que há pela frente está sendo destruído e levado, que inferno! Por que a gente? Não sei mais o que fazer e já estou impotente o suficiente para não conseguir salvar a nós dois.
Não consigo gritar e a minha mente gira, deixando me tonto pelos constantes pensamentos que permeiam o meu consciente de forma rápida e desorganizada.
Vamos, Mizuki. Estou perto de você, por favor, aguente firme!
Falta tão pouco... Só preciso alcan... çar... a sua... mão...
Nada tem feito as nossas vidas valerem a pena, pois quando achava que aquela rede podia ter nos separado e, enfim, estava quase conseguindo a salvar, um destroço de alguma casa que foi levada pela corrente nos atravessa. Não consigo sentir mais nada, estou cansado...
Vejo a Mizuki ainda desacordada, só que agora caindo atrás da viga que há poucos segundos me empurrou para longe dela.
— MIZUKI! — tento gritar, mas a cada tentativa de chamá-la mais ela afundava.
Meu coração dispara, sinto algo romper na minha barriga e uma insensibilidade em relação aos meus músculos me entorpece até a alma.
Não chegamos tão longe para eu ter que ver você morrer, Mizu. Espero que você possa me perdoar por isso.
Deixo de me concentrar e, subitamente, a água que antes formava uma cápsula contra a pressão da onda, acaba me engolindo.
Ichiro...
Escuto alguém me chamando como se fosse a Mizuki sussurrando no meu ouvido. Mas como? Ela estava afundando e estou ficando sem ar aos poucos, enquanto sou levado pela correnteza.
Ichiro...
Não é possível...
Simplesmente não consigo conter as lágrimas, mas antes que pudessem cair já se misturavam à água turva do tsunami e antes que pudesse pensar no que estava fazendo, instintivamente, grito com todas as minhas forças o seu nome e fico olhando a Mizuki cair junto comigo, enquanto sinto o meu corpo ficar mais pesado e a minha visão turva por conta da falta de oxigenação no meu cérebro.
Agora sei que a minha última memória terá sido a sensação do meu fracasso ao ter tentado proteger quem eu amei. Então, só preciso fechar os olhos...
Desculpa, Mizuki...
Novamente ouço a voz me chamando como uma brisa no meu rosto, fazendo me sentir obrigado a forçar o meu corpo a aguentar por mais um segundo e abrir os olhos.
Mizuki... Não consigo entender o que está acontecendo....
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