“Viva.
Viva…
Viva?”
Greneva corria de volta para os dormitórios. Por quê? Imagens do passado pulsavam em sua mente em ritmo com seu coração. Ela pensava que queria afogá-las no mar que amava, porém suas pernas continuavam a direcionando de volta à sua vida.
Sua vida, essa era sua vida? Há menos de um ano, ela estava com seus amigos, três figuras agora praticamente desaparecidas completamente do seu cotidiano. Eles andavam pela cidade, rindo, uma memória que brilharia, se não estivesse manchada por lama, o motivo de suas risadas. Empurrar mendigos ao chão, caçoar de crianças usando trapilhos, puxar cabelos mal-cuidados, essas memórias preenchiam sua mente, como um poço, água subindo, as risadas crescendo, vozes, sua e de seus amados amigos, distorcendo-se em um som infernal. Do fundo do poço, a figura de uma mulher começava a subir, impulsionada por um jato de água. As risadas cessam. Está silêncio, silêncio demais, ensurdecedor. A água tornava-se vermelha. Um corpo boiava, olhos arregalados, sem brilho, o vermelho espalhava-se a partir de sua cabeça. Algo, algo mais escorria de sua cabeça, uma gosma vermelha, pedaços indistinguíveis, rosa. Gritos familiares, tudo começou a girar, criaturas como que coelhos, porém maiores, com chifres, surgiam, saltavam à água - conens. Roupas, e então carne, eram dilaceradas, ingeridas, tudo, absolutamente tudo se tornava manchado por vermelho. Restava apenas uma cabeça, e ela sorriu, enquanto suas feições mudavam, agora um homem sorria em direção à Greneva, olhos cheio de vida. Uma mão esticou em direção ao homem, porém, a cabeça virou, apenas seus cabelos visíveis, antes que isso também fosse completamente consumido pelos conens. Da água vermelha, uma sereia pulou, mas ela também estava completamente errada, suas garras mirando no rosto de Greneva, e ela não reagiu. Quando ela sentiu uma unha contra sua pele, ela fechou os olhos apenas. A garra então passou para seus cabelos encaracolados. Afagou-lhes. Contra seu ouvido, ela ouviu uma voz, dizendo-lhe—
Um som cortante. Ar batendo violentamente contra sua face. Greneva arregalou seus olhos. Errando-a por meros milímetros, uma flecha passou logo ao lado de seu ouvido.
– Greneva! - a mulher à sua frente empunhando um arco gritou.
Cabelo castanho preso em um rabo de cavalo alto, pele cor de carvalho, abaixando seu arco, seu olhar um misto de raiva e de preocupação, essa era Alseri Pean, sua colega de quarto, arqueira e líder de seu time.
– D-desculpe! - Greneva disse, arrumando a mão em sua lança, a qual percebeu que havia afrouxado.
Atrás de si, ouviu partes de uma conversa sussurada:
– Essa Greneva... mesmo com Alseri e a Mannah no time...
– Aposto que é culpa dela... perderam um membro...
– Ei! - Alseri interviu - Não se distraia de novo logo em seguida!
– Sim, senhora! - Greneva disse, sarcástica, porém ainda empunhou sua lança.
Alseri abriu a boca, preparando-se para dar-lhe uma lição. Entretanto, fechou-a. Inspirou, expirou. Logo, flechas estavam voando em direção à Greneva. Ela se esforçava em desviar e aparar, girando sua lança, ouvindo os criticismos de Alseri sobre sua forma, no entanto ainda não possuía habilidade o suficiente para agir sobre as recomendações. Novos arranhões surgiam em seu corpo, mesmo após Alseri diminuir o ritmo das flechas.
– Certo, pausa. - Alseri disse após alguns momentos, não escondendo um estalar de língua - Descanse um pouco, beba água, voltamos em cinco minutos.
– Ah, obrigada, grande Alseri! - Greneva alongou-se exageradamente - Mas eu sei que você deve estar querendo treinar mais e mais, pode ir pra Gwenny, eu dou um jeito.
– Não, eu também vou dar uma pausa. - Alseri disse - Eu quero falar com você. Onde você estava hoje de manhã? Eu tentei esperar.
A questão de Alseri cortou autoritariamente qualquer tentativa de escapar, fazendo Greneva voltar-se à mulher enquanto andava à fonte. Greneva sabia que não poderia evitá-la o dia inteiro, mas estava esperando que essa conversa acontecesse durante o almoço.
– Eu estava… Tentando acalmar minha cabeça. - disse, desviando seu olhar e começando a mexer em seus próprios cabelos, puxando-os para frente de suas orelhas.
– Esses machucados? - ela olhava para seu braço, que estava coberto de marrom onde havia sido cortada, um remédio caseiro.
– Você não acabou de me arranhar com as flechas? - provocou.
– As que estão cobertas, Greneva.
– Foi da luta de ontem.
– Também não. Superficiais demais, não há intenção de matar.
Greneva tinha uma réplica na ponta da língua, no entanto ela morreu ao ouvir a última parte. Sem intenção de matar?
Greneva havia corrido após o encontro com a sereia. Em seu quarto, com Alseri já tendo partido para as aulas, ela havia prestado primeiros-socorros para si mesma. E, como se estivesse no automático, apenas partiu para a academia de guerreiros de Agnao, onde treinavam aqueles que protegeriam a cidade. Onde ela nunca pensou que estaria um dia. Foi punida por ter se atrasado. E, como se nada tivesse acontecido, encontrava-se no momento no campo de treinamento, em duelos contra outros guerreiros.
Greneva havia decidido não ponderar sobre o encontro da manhã. Falar sobre o que ocorreu? Quem acreditaria nela? E mesmo se acreditassem... Ela tinha um certo mórbido desejo de encontrar a sereia de novo. Entretanto, com a análise de Alseri, Greneva viu-se forçada a pensar novamente sobre os eventos da manhã.
– Greneva. - Alseri chamou-lhe a atenção novamente, testa franzida - Eu não preciso de problemas de comunicação agora. Eu preciso confiar na minha parceira, e vice-versa.
Greneva abaixou a cabeça e seu olhar. Alseri não mudou seu foco, esperando uma resposta honesta. Passados longos segundos, olhou sem foco para um canto. Elas estavam já sentadas, segurando copos, diversos guerreiros duelando mais à frente. Em seguida, relaxou sua postura e começou a falar, tom mais casual:
– Ontem não foi um bom dia. Eu diria que foi um dos piores dias. O que aconteceu com o Helan, na nossa frente, é chocante. Todos estamos afetados, dá para sentir no ar, mesmo quem está aqui há mais tempo. - Alseri disse e deu um tapinha nas costas de Greneva, tornando a olhá-la, agora acolhedora - Não é sempre assim. Não se esqueça de que nós estamos aqui exatamente para evitar que mortes desnecessárias continuem acontecendo. Nós somos a esperança de Agnao em tempos sombrios. - seu olhar endureceu novamente - Apenas nós podemos evitar mais desastres no futuro. E é por isso que eu preciso que seu foco volte para o time assim que possível, entendido?
Greneva virou-se e deu um sorriso forçado. Alseri abriu a boca como que para falar algo mais, mas logo fechou-a e simplesmente assentiu com a cabeça, também forçando um sorriso:
– Seu irmão acredita em você, ou você não estaria aqui. - concluiu.
Comunicação era difícil. A maioria dos estudantes estava no colégio militar desde muito jovens e já se conheciam desde então. Mesmo que houvesse mudanças nos times, isso não gerava muitos problemas. Seu irmão gêmeo, Geoff, estava certo que queria ingressar aqui desde seus 8 anos, e entrou aos 12. Há 7 meses, não muito depois da primeira morte por causa do desastre, /seu desastre/, ele havia conversado em segredo com Greneva, pedindo que ela entrasse no colégio militar em seu lugar enquanto ele resolvia assuntos em outro reino. Ela estava certa que essa era sua punição, portanto aceitou sem hesitar ou pedir detalhes sobre seus planos.
Ela não conhecia ninguém intimamente. Os poucos que ela conhecia, tinha uma relação ruim. Sua vida havia sido apenas vadiar e rir daqueles que não podiam fazer o mesmo. E então ela arruinou tudo para todos. Ser a esperança do reino? Não a faça rir. Se o reino está em um tempo sombrio, a culpa era apenas dela. “/Deve ser por isso que devo viver, morrer seria muito simples,/” raciocinou. Ela estava olhando sua própria reflexão no copo meio vazio de água. Desapontada com a imagem, girou-o em sua mão, criando ondas na superfície do líquido.
– É minha culpa... - murmurou.
– Se você está se sentindo culpada pela denúncia que fez, não sinta. - Alseri declarou, e Greneva pulou ao perceber que havia sido ouvida - Não iríamos querer alguém como ele no nosso time.
– E se mudasse algo? E isso é só metade— - Greneva congelou ao perceber que falava demais.
– Qual a outra metade? - insistiu.
Novamente, não teve respostas. Alseri suspirou, deu um último gole em sua água, e continuou:
– Talvez mudasse. Mas eu tenho certeza que traria problemas maiores a longo prazo…
A longo prazo... Greneva sentia que tinha muitos acertos que ela deveria fazer, preferencialmente a curto prazo.
– Ah, ‘cês ‘tão aqui também!
Greneva congelou com a voz familiar. Em sua direção, uma mulher forte e corpulenta, bronzeada, com cabelo preto e curto vinha em sua direção, segurando um machado e um escudo. Falando em acertos... ela engoliu seco, e então virou o resto do copo inteiro em sua boca, almejando que a água fosse cerveja.
Gwennylyna Cobre era uma antiga amiga de seu irmão e acolheu Greneva rapidamente quando ela entrou em seu lugar. Lembrava-se de quando ela tinha acabado de chegar no reino, fraca, magra, sozinha, usando trapos, olhos fundos, mas com um brilho esperançoso, e seu irmão mostrou-a a casa enquanto apresentava a região. “‘Gwennylyna’? Hahahah. Sério? O nome dela é isso? Mas é claro que é! Hahahahahah!” Suas próprias palavras ecoavam em sua mente. Sentiu enjoo e tossiu, engasgando com sua própria saliva.
– Opa! Vai com calma co’essa água aí! - Gwenny disse.
Gwenny ofereceu bater nas suas costas, porém, Greneva recusou com uma mão levantada.
– Obrigada. - Greneva agradeceu, desviando seu olhar.
Ela não entendia por que Gwenny a tratava bem. Não, pior, ela entendia, e não queria aceitar. Em nome da cidade. Não era tempo para intrigas pessoais, especialmente quando estavam no mesmo grupo e trabalhariam juntas no cotidiano. O abismo entre as duas era aterrorizante. Então fingir que ela não entendia era melhor. Com Gwenny à sua esquerda e Alseri à sua direita, Greneva sentia uma pressão enorme.
Aproximando-se, viu uma alta mulher de cabelos lisos e pretos, pele cor de ocre. Uma mão segurava um cajado com três pedras elementais visíveis, uma vermelha, outra amarela e uma verde, enquanto a outra acenava. Sua salvação.
– Meila! - Greneva chamou e esperou que não soasse demais como um patético pedido de socorro.
“Oi!” essas palavras formaram-se no ar na sua frente, feitas de uma terra que Meila carregava dentro de uma pequena garrafa pendurada em seu cinto. “Vamos ter treino misturado em alguns minutos então resolvi dar uma pausa também.”
– Os magos ‘tão t’enchend’o saco demais? - Gwenny riu.
Meila riu também, em um tom como se zombasse de si mesma. “Eu nunca consigo sentir que estamos lutando de igual para igual...”
Meila Mannah, que havia ingressado na academia militar há pouco mais de um ano. Até mesmo Greneva, sem muito interesse em assuntos militares, reconhecia esse sobrenome: a maior família de magos, a qual havia tido um breve período de instabilidade e estava recuperando-se no momento. O cajado que Meila segurava, o Semaf, era o símbolo da família, e poderia ser empunhado apenas por um membro por geração. Em outras palavras, se ela não era agora, ela certamente seria alguém importante na família no futuro. Para outras famílias de magos, especialmente em uma cidade remota como Agnao, lamber o chão em que ela passa seria a melhor aposta para crescerem em importância. Mas Meila não parecia particularmente entusiasmada com isso...
Embora estivessem em situações exatamente contrárias, Greneva sentia que Meila conseguia entender a pressão de seu cotidiano, especialmente com ambas entrando apenas recentemente na academia. Seria isso o que as pessoas chamam de “teoria da ferradura”?
– Ah, está todo mundo aqui. Isso é bom. - Alseri disse - Eu tenho algo que quero falar. Devido aos acontecimentos recentes, eu acho que o nosso time deveria ter um símbolo compartilhado. Um bracelete, eu poderia fazer...
Silêncio.
Ela está propondo... um bracelete da amizade? Greneva riu amargamente. O que há de errado com essa mulher?
– Ahah, - Gwenny interviu, uma risada jovial - foi d’nada, então nos supreendeu!
“Eu acho que pode ficar bem bonitinho!” Meila opinou.
– Todos os guerreiros, duelos entre mágica e física agora é permitido! - um instrutor anunciou.
“Eu vou indo então! Alseri, vamos nós duas?”
– Vá com Gwenny primeiro, eu quero falar com Greneva. - Alseri respondeu.
/Merda, ela realmente não pretende deixar o assunto passar/!
– Já estamos descansando há tempo demais, vão reclamar. - Greneva argumentou, vendo Gwenny e Meila já se distanciando.
– Desde quando você liga pra isso? Eu vou ser rápida. É pro seu próprio bem.
– Ah, então você se importa comigo? Adorável. - zombou.
– Você realmente fica insuportável quando está assim. Mas é sobre isso que quero falar. Se você não quer falar comigo, pelo menos fale com a Gwenny sobre o que te preocupa.
– Com a Gwenny? Por quê?
– Vocês são amigas de infância, não?
– Hã? Você chegou a essa conclusão como?
– Gwenny quem me disse isso.
Greneva sentiu seu peito apertar dolorosamente. Levou sua mão à cabeça. Ugh. Ela sempre pensou que Gwennylyna evitava desentendimentos com ela por causa do time, mas pensar que ela se considerava sua amiga desde aquela época… É possível que ela seja tão ingênua? Não apenas Alseri, o que há de errado com Gwenny?!
– Eu vou achar algum pobre coitado mago que está sendo excluído para atormentar, digo, duelar. - Greneva disse, já se distanciando.
– Eu disse algo errado?
– Não. Eu disse.
– Bem, é comum, mas você pode trabalhar nisso.
– Estou começando a duvidar disso…
– Não duvide. Continue tentando. Seja uma guerreira ideal.
Ser uma guerreira ideal? Hah. Certo, ela poderia tentar. Tinha algo seriamente errado com Gwenny e Alseri, mas ela estava certa sobre algo, seu irmão havia confiado nela. Grande erro, claro, mas, Greneva queria ao menos salvar um pouco a reputação de seu irmão, ele sempre foi assim. Além disso, ela mesma estava pensando sobre fazer acertos até pouco tempo atrás... Urgh. Se ela engolisse seus próprios pensamentos tão cedo ela sentia que vomitaria.
Ser uma guerreira ideal era… Colocar a justiça em primeiro lugar, ser corajosa, nobre e proteger seus amigos e família. Não ser ela mesma, basicamente. Só assim as coisas ruins parariam de acontecer. Só assim ela se veria livre. Ela precisava mudar. Começou a revisar suas escolhas passadas e como deveria ter agido, até chegar… na sereia. Aquilo não foi jeito de representar a cidade. Principalmente diante de uma espécie com a qual não têm contato há anos… Esquece isso, aquilo não foi jeito de representar a humanidade inteira, o que estava pensando?! Uma guerreira ideal faria… faria...
Bem, em primeiro lugar, a guerreira ideal derrotaria esse mago solitário tão fino que parecia que poderia ser levado por uma brisa.
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