- Qual o seu nome?
- Lurani. Do Centro-leste Vermelho. - levantou a cabeça e aproximou-se da costa - E você?
- Greneva Scortera. - balançou a cabeça e ajeitou-se em uma postura ereta, arma ao lado de seu corpo - Lurani do Centro-leste Vermelho. Você, uma sereia, cantou perto de território humano e agrediu uma guerreira. Duas vezes. Você sabe que pode ser considerada uma ameaça à cidade de Agnao?
- Aah… - ela abaixou a cabeça e desviou o olhar - Desculpe por isso. E eu não sou realmente uma sereia.
- Não?
- Eu sou uma híbrida de monstro e sereia… Não se preocupe, eu não preciso de carne humana. - sorriu genuinamente.
Uma híbrida? Isso explicava sua aparência. E, bem, então a lei não se aplicaria a ela… Provavelmente. E eles estão em paz com os monstros… Espera, isso se aplicava aos monstros marinhos ou apenas terrestres? Incerta dos detalhes dessas leis, continuou como pôde:
- Você ainda agrediu uma guerreira. - reforçou.
- Desculpe.
Ela realmente parecia arrependida. “Desculpe”. Uma palavra simples e curta para apagar seus erros passados. Greneva abriu e fechou a boca algumas vezes, sua postura começando a ficar mais casual, não sabendo exatamente como prosseguir.
- Você desistiu? - perguntou Lurani
- Do quê?
- De morrer?
Ah, aquilo. Era um pouco embaraçoso falar de algo tão pessoal assim, então rapidamente disse:
- Acho que sim.
- Por quê?
- Por quê…?
Vários motivos passaram por sua cabeça. Ser fácil demais para ela deixar os problemas que ela mesma criara para os outros. A ideia de que ela ainda tinha que sofrer pelo que fez. Uma leve esperança de que ela poderia mudar… Mas ela sabia que não era exatamente isso que Lurani estava perguntando.
“O que mudou de ontem pra hoje?”
- Boa pergunta. - Greneva respondeu simplesmente.
Silêncio dominou a atmosfera por longos segundos. Lurani quebrou-o, admitindo:
- Eu também desisti, desde ontem.
- … Por quê? - hesitou, mas enfim ousou perguntar, dando um passo em direção ao oceano.
- Bem… - ela olhou fixamente para Greneva - Você parecia estar em uma situação similar à minha. E você não se permitiu morrer ontem. Então eu pensei que talvez eu não devesse, também. - desviou o olhar - Talvez… eu seja uma maria-voa-com-as-outras.
- … Uma o que? - aproximou-se mais da água, pés a centímetros da parte rochosa.
- Maria-voa-com-as-outras? Vocês pararam de usar esse termo?
- Eu tenho certeza que é “maria-vai-com-as-outras”.
- Ah! - seu rosto corou e ela afundou-se mais na água - Faz sentido…
Greneva riu e sentou-se. Ela não esperava mais um ataque, mas estava a uma distância segura do oceano. Não sentia agressividade dela, e ela havia dito que não precisava de carne humana. Além de que, e por mais vergonhoso que seja admitir isso, ela não sabia como as leis se aplicavam a híbridos marítimos. Por precaução, e talvez uma ponta de curiosidade que não admitiria ter, decidiu investigar mais:
- Você foi criada por tritões?
- Sim. Não me identifico muito como monstra…
- E uma híbrida? - levantou uma sobrancelha e sorriu - Vocês estão em paz com os monstros também? Isso é ótimo!
- Não, não estamos. Vocês estão? - ela arregalou os olhos.
Eles não estão? Tritões se reproduzem mais similarmente com peixes do que humanos. Monstros precisam apenas de emoções, normalmente amor. Por causa disso, conseguem se reproduzir não só com qualquer outro monstro, mas também com tritões e humanos, por meio de magia. Mas outras emoções também podem dar vida…
Oh.
Seu sorriso rapidamente sumiu.
Droga.
Ela não devia ter perguntado.
- Vocês conseguiram entrar em paz? - Lurani pressionou.
- Sim, - apressou-se, evitando pensar sobre o assunto anterior - há uns anos… 15 mais ou menos… Uma mulher aparentemente conseguiu se juntar com os monstros, derrubar o líder passado e colocar um novo mais pacifista no controle. Uma tal de Razel… Haizel…?
Greneva balançava uma perna, inquieta. Essa conversa, não era importante demais para ser ela quem daria essa notícia?! Segundo os livros que havia lido… Tritões e humanos eram ambos presas de monstros. A história alega que a falta de empatia entre ambos levou a batalhas desnecessárias entre eles e, há uns 700 anos, eles decidiram que tinham problemas o suficiente com monstros e delimitaram algumas leis, como a do canto. Além disso, tritões decidiram ir para águas mais profundas, se afastando das costas, com a proteção da deusa criadora, Ori. Monstros marítimos seguiram os tritões, enquanto os de terra não tinham mais como alcançá-los. Pelos poucos relatos que recebiam dos tritões, eles haviam achado uma certa profundeza em que ambos monstros das profundezas e monstros que vivem mais perto da superfície têm dificuldade em atacar. No geral, foi positivo para ambos, com menos monstros para cada um combater. Entretanto, também marcou um rompimento entre os dois. Muito provavelmente era a primeira vez desde então que ambas espécies estavam trocando palavras amigáveis. Isso se você pudesse realmente contar uma híbrida como sereia.
- Isso é incrível! - seus olhos brilhavam e ela tentava subir mais nas pedras sem tirar as guelras da água- Ei, ei, o que mais mudou?!
- Não muito, para falar a verdade. - admitiu - Muitos ainda não confiam nos monstros. E muitos também não gostam de ter que doar os falecidos para alimentá-los. - ela olhou para baixo, a face de Helan surgindo em sua mente, e começou a desenhar distraidamente na areia - Parece que apenas alguns poucos monstros escolhidos se alimentam e distribuem para o resto por meio da conexão, uhn, teia. É um pouco mais fácil de se relacionar com os monstros sabendo que é mais provável que ele nunca comeu um humano diretamente, mas… Atualmente, é mais como se estivéssemos ignorando uns ao outros.
- Ah… - ela pareceu perceber o olhar triste da outra e hesitou em continuar, procurando pelas palavras certas - Apesar disso, vocês parecem ocupados nos últimos meses. Preparação para um festival ou algo assim? - tentou abrir um sorriso.
Greneva soltou um riso melancólico e parou com os desenhos e o movimento de sua perna. Lurani percebeu que não devia ter tocado no assunto.
- Não, eu só ferrei com tudo mesmo. - ela virou-se para olhar diretamente para Lurani com um olhar sarcástico - Decidi que paz era bom demais e alimentei alguns monstros com carne fresquinha. - ela riu novamente, seu tom tornando-se agora agressivo enquanto ela apontava para o campo atrás dela - Isso parece divertido para você? Parece um maldito festival?
Lurani ficou sem reação por alguns momentos, recuando alguns nados. Porém, franzindo seus olhos, percebia que lágrimas estavam começando a formar-se nos cantos dos olhos da outra.
Ela mergulhou parcialmente, respirou profundamente e tomou impulso para subir às rochas. Começou a rastejar-se determinadamente em sua direção. Greneva, surpresa, começou a apalpar o solo procurando por sua partisan e dobrou sua perna, preparando-se para levantar e defender-se. Lurani acelerou, seus movimentos ficando desajeitados. Quando Greneva conseguiu achar sua lança, Lurani usou a força que tinha para impulsionar-se para frente, algumas escamas em sua cauda sendo danificadas contra as rochas. Suas garras então cobriram as mãos da humana, seus torsos separados pela perna dobrada, suas faces a apenas alguns centímetros. Greneva poderia empurrá-la, mas sentia-se paralisada.
- Eu tenho certeza que não é tão simples assim. - Lurani disse, tom firme - Desculpe se fui insensível.
Elas continuaram se olhando em silêncio por longos segundos, como se repetissem o que ocorrera no dia anterior. Gotas do cabelo preto molhado de Lurani caíam sobre as roupas de Greneva. As escamas prateadas brilhavam contra o sol. Lurani levantou a garra que estava sobre a mão segurando o partisan, e Greneva pensou em como essa era a oportunidade perfeita para defender-se, mas seu braço não acompanhava seus pensamentos. A sereia aproximava a sua garra do rosto da outra. Greneva sentiu um arrepio que acreditou ser medo, mas não conseguia mover sequer um músculo.
- Ah… - as garras frias e pegajosas de Lurani gentilmente pousaram sobre a bochecha de Greneva, evitando tocá-la com as pontas afiadas, e seu olhar fitava seus cabelos loiros ondulados e feições faciais - Você realmente tem olhos verdes como os meus. Eu-
Lurani apressadamente retirou ambas garras de Greneva e começou a coçar o próprio pescoço, enquanto virava-se de costas, começava a tossir e arrastar-se novamente. Greneva ficou confusa por alguns momentos, mas desesperou-se ao perceber que Lurani estava sem respirar. Levantando-se e deixando para trás sua arma, cruzou a parte de areia para a parte de rochas e tentou levantar a sereia. Sem forças para levantar uma criatura de quase dois metros e meio, tentou ajudá-la empurrando-a da melhor forma que podia. Quando ela mergulhou na água novamente, ambas respiraram aliviadas.
- Obrigada. - agradeceu Lurani, e então tentou justificar suas ações - E minha visão não é muito boa.
Greneva começou a envergonhar-se de ter se aberto tanto para uma pessoa que mal conhecia. Sério? Jogar suas preocupações assim por aí? E o seu jeito agressivo… Ela havia tido uma recaída novamente, esses seus velhos hábitos…! Sentou-se na borda das rochas, enxugando o que restava de lágrimas e levou uma mão à testa.
- Tudo bem… Desculpe por… Ah, por tudo que eu disse. - ela suspirou - Você não tem nada a ver com tudo isso.
Um barulho forte a fez pular. Lurani corou e cruzou os braços sobre sua barriga.
- E-eu costumo comer antes de vir… - disse, abaixando a cabeça.
- Você gosta de biscoitos? - Greneva pegou o restante em seu bolso e ofereceu-lhe - Eu sei que não é muito.
- Eu posso mesmo? - indagou e, ao vê-la consentindo com a cabeça, pegou o biscoito - Obrigada!
Era uma ótima mudança em relação aos lanches normais para a sereia. Quase imediatamente começou a comer, entretanto sentiu a resistência de suas presas dentro da boca. Ela olhou entre o biscoito e Greneva, hesitante. Por fim, disse:
- Com licença. - e virou-se de costas.
Greneva levantou uma sobrancelha, confusa.
- Sua boca? Eu já vi ela ontem, não se preocupe, não me assusta. - afirmou, com um tom casual, e engoliu um “não mais, pelo menos.”
- Não. - Lurani falou, sem virar-se, e sua voz estava mais clara e projetada - Eu… Não gosto disso.
- Parece que ficar escondendo está te afetando. - disse, percebendo a diferença - Não quer relaxar um pouco?
- Wow, esse biscoito é muito bom! - Lurani exclamou - Você quem fez?
Se esquivando da questão, huh? Greneva deixaria esse assunto de lado. Por enquanto, pelo menos.
- Não, uma amiga minha. Eu acho. Ou ela comprou. - Greneva disse, enquanto percebia algumas cicatrizes nas costas da outra.
- Ah, e eu tenho algo para te perguntar. - Lurani então mergulhou.
Greneva ficou sozinha. Levou sua mão para onde a garra de Lurani havia repousado, perdida em pensamentos. Alguns minutos se passaram e a outra retornou segurando uma mochila em uma de suas mãos. Sua boca estava humana, presas escondidas. Apoiou a mochila contra as pedras e tirou um mapa, desdobrando-o sobre o solo e virando-o em direção a Greneva.
- Onde nós estamos? - perguntou e começou a procurar por algo na mochila.
Greneva olhou para o mapa que não fazia sentido. Não, espera… Ah, o oceano está no centro e o continente nos cantos. Faz sentido. Um pouco incerta, guiando sua mão a partir da parte do deserto representada no canto esquerdo do mapa, arrastou um dedo até ele chegar em uma parte sudoeste da terra no oeste do mapa. Lurani fez um círculo com um objeto desconhecido no local apontado.
- Ah, estou bem longe… - comentou.
- Da sua cidade? - viu-a confirmando com a cabeça - Você veio sozinha?
- Sim. Eu… Fugi. - admitiu e fez alguns rabiscos no mapa que Greneva não entendia, sem olhar para a humana.
- Fugiu? Do quê? Estavam sendo atacados?
- Estamos sempre sendo atacados. - guardou o objeto que, sob segunda inspeção, parecia ser uma versão marítima de um bico de pena, cuja imagem havia visto apenas em livros, e começava a dobrar novamente o mapa.
- Então… - ela hesitou um pouco, se perguntando se estava a pressionando demais. Por fim, engoliu saliva e continuou - Por quê?
- Hahah. - uma risada forçada e virou-se para olhar Greneva enquanto falava - Apesar de eu me dizer sereia, cada vez mais as diferenças entre eu e os tritões ficam claras. No entanto, sou parecida o suficiente para monstros se perguntarem qual o meu sabor. - forçou mais um riso ー Eu só estava dando trabalho pra minha família. - quebrou contato visual ao que abaixou a cabeça.
Greneva esticou sua mão e pousou-a no ombro de Lurani, olhando-a firmemente e afirmando:
- Eu tenho certeza que não é tão simples assim.
- Ei, não roube minha frase. - ela sorriu, levantando seu rosto.
Greneva sorriu de volta enquanto Lurani voltou a guardar o mapa. Acompanhando suas ações com o olhar, percebeu que uma alça da mochila estava rasgada.
- Ei, minha amiga pode consertar isso. - pensando em Alseri, levantou-se num impulso - Ah!
- O que? - deu um nado para trás impulsivamente.
- Que horas são? - olhou em volta e para o céu - Droga, vou me atrasar de novo! - virou-se para a parte de areia, porém logo tornou a olhar para Lurani - Ah, você quer que eu leve sua mochila?
- Hã… Pode ser?
- Ok! Eu venho te visitar de novo!
Greneva rapidamente apanhou a mochila, o partisan, seus sapatos e correu de volta para a escada. Ela nem sequer ouviu um “espera!” vindo de Lurani em sua correria.
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