Alseri estava vestindo as calças do uniforme quando ouviu a porta de seu quarto abrir-se atrás de si. Puxou-as desajeitadamente para sua cintura, reclamando:
- Bate antes de entrar!
- Oops… - Greneva fechou a porta rapidamente atrás de si e guardou os sapatos sobressalentes - Pelo menos não estou atrasada, huh?
- Sim… - começou, virando-se - Você ainda precisa se trocar! E o que você está segurando? - ela cruzou os braços, tom desapontado.
- Já vai, já vai. E você pode consertar isso pra mim? - ao que passava Alseri para chegar no guarda-roupas, jogou a mochila para a outra, que quase a derrubou.
- Depois. Você saiu pra comprar uma mochila usada? - ela começou a colocar o objeto em cima da escrivaninha, entretanto parou e cheirou-o - Eugh! Você realmente foi nadar com os tritões?!
Greneva congelou enquanto trocava de blusa. Sem virar-se, perguntou:
- Por que você acha isso? - e continuou com movimentos cuidadosos.
- Isso fede a peixe! - ela segurava a mochila com apenas as pontas dos dedos, procurando o quarto por um lugar para colocá-la - E ontem você esqueceu seu livro aberto numa página sobre eles.
- Acho que não tenho como esconder então… - disse, derrotada, virando-se para Alseri enquanto colocava a calça.
- Você precisa prestar atenção antes de comprar usados… - ela dizia, procurando um canto livre longe o suficiente das camas e da escrivaninha, mas parou os movimentos logo em seguida - Espera, o que? - fitou os olhos de Greneva, mochila escorregando de sua mão.
- Hã, -eu só estou brincando! Comprei uma mochila usada barata mesmo… Nunca se sabe por onde coisas usadas passaram!- coçou a própria nuca, olhando para o lado e forçando um riso.
- Você fez contato com um tritão?! - aproximou-se com passos firmes.
- Ela não é exatamente um tritão… - recuou um passo, diversos cenários passando em sua cabeça.
- Não?! Um monstro?! Ela te machucou?! - esticou as duas mãos em direção a outra.
- Não… Quer dizer, não de propósito… - disse, fracamente e olhando para baixo.
- “Não de propósito”?! - ela segurou os ombros de Greneva contra a resistência da outra e começou a procurar feridas em seu corpo - Onde? Nós… Nós precisamos te levar agora para a enfermaria. Pode deixar que eu reporto, me fale os detalhes no caminho.
- Espera! - exclamou.
Greneva sentia-se como uma mosca numa teia de aranha, sua luta para livrar-se do desentendimento apenas piorando sua situação. Tentou falar de forma tática, o que acreditava ser a língua de Alseri:
- Ela não parece ser uma ameaça. E nós podemos ter muito a ganhar com conhecimento dos tritões. Além de já termos problemas o suficiente por agora, envolver os outros pode assustá-la, então estou tentando avaliar sozinha a situação… Confia em mim?
- Você…
Alseri havia começado, mas fora interrompida pelo segundo sino. Aproveitou os momentos de música para se recompor e colocar os pensamentos em ordem. Colocou as mãos de volta aos lados de seu próprio corpo e continuou:
- Você não está a muito tempo por aqui, então tenho que ter cuidados em relação a sua inexperiência. E você nunca mostrou confiar em mim. Mas o que você diz faz sentido… - cruzou os braços - Eu te dou uma semana e quero que reporte o que você descobriu ao final. E então me introduza a ela, se realmente não for uma ameaça.
- … Ok. - disse e pegou seu partisan - Bem, sua calcinha com estampa marítima provavelmente é um sinal de boa sorte. - sorriu, olhando para a outra.
- Isso é sério!
O sol estava se pondo enquanto o time estava checando novamente se tinha o necessário para adentrar as florestas. Armadilhas, alimentos, um mapa e suas armas. Os conens deveriam estar dormindo, mas era sempre melhor terem como se proteger. Quando todos os times passaram pela inspeção, separaram-se em rotas pré-determinadas e os líderes patrulhavam o local, passando pelos grupos de tempos em tempos.
A umidade do ar da floresta era familiar para Greneva e a causava um complicado misto de emoções. Tentava ignorá-lo e concentrar-se em guiar seu time na vastidão, enquanto o cajado de Meila radiava gentilmente suas três esferas de luzes. Juntas, procuravam por lugares ideais para preparar armadilhas, além de investigar outras colocadas anteriormente para determinar a eficiência. Então, armavam-nas novamente se julgadas efetivas ou recolhiam animais atingidos por engano. Tocas de conen eram seu objetivo principal na investigação. Enquanto Alseri e Gwenny colocavam armadilhas em volta do buraco, Meila e Greneva assinalavam no mapa a localização se ainda não tivesse sido descoberta por outras patrulhas.
- É tão triste. - comentou Gwenny, olhando para a silhueta dos conens em destaque pela luz fraca do cajado.
A fala foi baixa, mas repentina no meio da escuridão e silêncio. As três tornaram a olhar para Gwenny instantaneamente.
- O quê? - perguntou Alseri
- Bem, antes dis’ tudo acontecer… Eles não eram muito diferentes de animais comuns, sabe? - ela agachou-se perto da toca - Às vezes algum aparecia perto da muralha e a gente podia fazer carinho neles.
Meila e Alseri se aproximaram mais da toca e olhou-os. Eles eram similares a coelhos, seus corpos eram peludos, com tons variando de um branco-cinzento até um azul-esverdeado. Os machos da espécie não eram muito maiores do que uma criança de um ano, enquanto as fêmeas podiam chegar a até um metro. No entanto, também possuíam unhas e dentes afiados, além de uma cauda não peluda, mas sim musculosa e longa, e dois pequenos chifres no topo de suas cabeças. O expandir e comprimir do tórax dos conens graças à sua respiração profunda era hipnotizante.
Olhando com maior atenção, perceberam que os filhotes estavam cobertos. Prestando atenção à estampa no tecido, perceberam que a coberta era um uniforme rasgado dos mineradores do reino.
- Eles precisam de carne humana, sempre foram monstros. - Alseri olhou-os de cima, e então distanciou-se.
Meila continuou por mais algum tempo observando-os, e então olhou por cima do ombro. Percebeu Greneva distante, de costas, um único braço cruzado mexendo na manga de seu uniforme de forma inquieta. Virou-se para Gwenny, escrevendo com fogo “Vamos continuar?”. Gwenny levantou-se e também percebeu Greneva. Arregalou os olhos, e virou-se para Meila, assentindo com a cabeça tanto como um acordo, quanto como um agradecimento pelo aviso.
Além de armadilhas e tocas, também procuravam por uma possível pedra astral, a qual poderia resolver o problema sem derramar sangue. A existência de uma na floresta era apenas especulação, porém precisavam investigar. Historicamente, nenhuma pedra astral havia sido encontrada em águas, no máximo perto de rios e lagos, então pelo menos não precisavam investigar os cenotes muito afundo. Elas estavam completando dois terços do caminho quando ouviram Meila fazer um barulho e as luzes balançarem. Greneva foi a primeira a reagir, segurando-a logo após a outra ter tropeçado em uma raiz.
- Ei, tudo bem? - perguntou, ajudando-a a levantar-se.
Meila assentiu com a cabeça e certificou-se que seu cajado não havia sofrido danos antes de verificar se ela mesma não havia machucado-se. Alseri aproximou-se e olhou ao redor. Então, disse:
- Podemos fazer uma pausa aqui. Devemos estar adiantadas. O que acham?
Gwenny e Meila aceitaram imediatamente, enquanto Greneva esperou a resposta das duas para também consentir. Elas juntaram alguns gravetos e pedras e os organizou em uma fogueira, e então olharam para Meila. Ela não reagiu.
- Meila, você poderia acender a fogueira para nós? - pediu Alseri.
“Não”, escreveu com fogo, encolhendo-se um pouco, “os líderes pediram pros magos não fazerem isso. Querem que vocês treinem sobrevivência se algo ocorrer conosco”.
- Deixa comigo! - disse Gwenny, arregaçando as mangas e começando os preparativos.
- Obrigada! - Greneva agradeceu, juntando as mãos. Ao que percebeu que havia deixado sua preocupação de iniciante à mostra, retornou à postura normal, mas já sentia os olhos de Alseri fitando-a.
Fogueira preparada, Gwenny então tentou acender um fogo por alguns momentos, sem sucesso.
- Ahm… Ach’ que estou mais acostumada com a madeira lá d’ casa. - disse, olhando para as outras e rindo baixo.
- Tudo bem, - Alseri começou - Greneva precisa treinar isso de qualquer jeito.
- Hã?! Eu?! - ela apontou para si mesma.
- Sim, você provavelmente nunca fez isso em campo, certo? Sua chance. - ela tentava falar seriamente, mas um pequeno sorriso formava-se em seu rosto.
- Vai lá! - Gwenny entregou os materiais que segurava para ela.
Greneva percebeu que as três olhavam para ela com um sorriso. Receosa, aproximou-se do amontoado de gravetos no chão
- Ok, - ela segurou firmemente os objetos, olhando fixamente para o seu trabalho com determinação - mas eu não prometo conseguir!
Após alguns minutos tudo que ela conseguiu fazer foi parcialmente desmontar a fogueira. Alseri balançava a cabeça, enquanto Gwenny abria os braços em um tom de “acontece com os melhores” e Meila a mostrava um dedão positivo.
- B-bem… - um sentimento de inferioridade subia junto com um vermelho em seu rosto, e ela desajeitadamente empurrou os materiais para Alseri - Sua vez agora! - e então afastou-se.
- A madeira dessa região é de menor qualidade mesmo, não se desanime. - disse, aproximando-se da fogueira e organizando-a novamente - E também tem a umidade por causa dos cenotes.
Alguns minutos passaram-se sem sucesso. Ela pausou, cansada, e olhou para as outras. Gwenny e Meila desviaram o olhar, entretanto Greneva a encarava segurando um riso. Usando o deboche como combustível, tentou novamente. As folhas de alguma árvore em volta soltou gentis barulhos em resposta a uma brisa que passou. Um pequeno fogo formou-se.
- Foi! - exclamou, aliviada.
Ao perceber que ele parecia querer apagar-se, começou a assoprar. As outras mulheres, ao perceberem, aproximaram-se rapidamente e fizeram o que podiam para ajudá-la. Ao final, o fogo ficou estável. Em volta da fogueira, suspiraram aliviadas.
Elas apanharam seus mantimentos e começaram a jantar em silêncio, ouvindo alguns insetos e um barulho que parecia ser uma coruja. Suas silhuetas eram iluminadas pela chama, seus olhos refletindo-a.
- Eu me pergunto se vamos acabar como os mineradores. - Greneva comentou, olhos não focando corretamente na fogueira.
Gwenny e Meila arrumaram a postura desconfortavelmente. Alseri interviu:
- Nós conseguimos aguentar até agora, não vamos simplesmente ser destruídos por causa de alguns conens. - seu olhar continuava fixo na fogueira - Nós tivemos sorte do rei ter tido a visão sobre o ataque, eles tiveram a má sorte da mensagem não ter chegado a tempo. Nos defendemos mesmo com um exército fraco, agora que nos fortalecemos mais é apenas questão de tempo até vencermos.
- Hahaha. - sua risada uma zombaria tanto à tal “visão” quanto ao “fortalecimento” - Eles não estão se reproduzindo como loucos? É questão de tempo para eles vencerem, não? - ela fixou os olhos em Alseri - E você chama usar novatos como eu “fortalecer” o exército? - segurou um riso.
Alseri também fixou os olhos na outra, abrindo sua boca, mas fechou-a e tornou a olhar a fogueira. Um sorriso vitorioso se formava no rosto de Greneva quando ela sentiu uma mão grande sobre seu ombro. Virando-se, encontrou olhos preocupados de Gwenny observando-a e seu sorriso sumiu.
- Não deixe sua ansiedade ganhar. - Gwenny disse.
Greneva voltou a olhar para a fogueira, sem foco. De novo, de novo ela estava voltando a esses hábitos… Ela sentiu a mão de Gwenny deixar seu ombro.
- Desculpe. - disse Greneva, olhando para Alseri.
- Tudo bem… - Alseri retornou o olhar, porém logo em seguida tornou a observar a fogueira - Não ter reforços é uma droga mesmo.
- Como eles podem ignorar es’situação? - Gwenny perguntou retoricamente, contrariada - Tudo bem qu’aqui é uma cidade litorânea… Mas ainda tem vidas aqui. Não, parece mais q’odeiam Agnao, especificamente.
“Você não pode culpá-los, outras cidades não tem o que ganhar em gastar recursos aqui.”, Meila escreveu, “A cidade não arrisca mais cruzar os oceanos… Então outras cidades não vão se arriscar por Agnao”.
- Mas se a gente for derrotado, o problema só vai se espalhar. - Alseri disse - Não faz sentido de um ponto de vista estratégico.
- É simples. Eles estão ok se vencermos ou continuarmos lutando… Até parecer que vamos perder, não vão mover um único dedo. - Greneva olhava fixamente para o chão - E o nosso rei idiota não quer fazer acordos porque não quer comprometer o pouco da soberania que lhe resta. - continuou mais alto, sentindo raiva subir pelo seu corpo.
Elas ouviram folhas e galhos de arbustos se mexendo e rapidamente pegaram suas armas e levantaram-se, virando-se para a fonte do barulho. Gwenny posicionava-se logo à frente, com seu machado e escudo, com Greneva logo atrás, um pouco à esquerda.
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