Lurani estava na beira do mar, mexendo com algumas pedras soltas em um jogo consigo mesma. Ela havia subido à superfície mesmo sem sinal de Greneva, apesar de alarmes estarem prontos para serem disparados em sua mente. Estimava que mais de uma hora do horário normal que se encontravam havia passado, mas não havia sinal dela. Entediada, começara a jogar com as pedrinhas, tentando adaptar o jogo para uma superfície plana. E, ei, talvez ela finalmente estivesse se acostumando com a resistência diferente do ar.
Começou a subir-lhe o medo de que Greneva não viria. Ela não disse que voltaria hoje, afinal de contas. E não é como se precisassem se falar todos os dias. Para falar a verdade, mal se conheciam, e, bem, ela era uma monstra, mesmo que parcialmente. Não se impressionaria se a ficha dessa revelação finalmente tivesse caído para a outra e ela passasse a evitar a costa, ou que até mesmo peça que seus superiores a eliminem. Se ela não deveria estar surpresa, por que sentia um aperto no peito ao pensar nessa possibilidade?
Ah, a mochila. Ela perderia sua preciosa mochila com seu diário e tudo que ela possui dentro. Esse deveria ser o motivo do aperto.
Ouviu passos aproximando-se e mergulhou. Atenciosa, percebeu que o padrão era igual ao de Greneva quando corria. Ainda receosa, esperou que ela aparecesse na entrada das escadas e apertou os olhos. A figura borrada tinha cabelos loiros volumosos e uma altura similar a de Greneva. Confirmando com sua audição que o ritmo nas escadas também era similar, sentiu o aperto no peito sumir, emergiu e acenou.
– Oi! Eu quem estou atrasada hoje! - Greneva anunciou, aproximando-se do mar e acenando também.
– Eu estava morrendo de tédio! - reclamou, encostando-se contra as pedras - O que aconteceu?
– Ah, - sentou-se acima das pedras na borda entre a costa e o mar, pernas cruzadas - uma missão na floresta de noi— Opa! - levou a mão à boca, olhos arregalando.
– O que foi?
– E-eu acho que não podia falar isso. Acho que quebrei uma regra de sigilo… Provavelmente mais de uma.
– Oh… Isso é grave?
– Bastante. “Eles podem me enforcar publicamente” grave. Lurani, eu preciso que você não comente isso para ninguém!
– Ah, só isso? - ela sorriu, aliviada - Tranquilo; não tem ninguém aqui.
Greneva sorriu brevemente, mas logo seus olhos focaram-se na outra em um olhar preocupado. Empurrando-se mais para perto da água, questionou:
– Realmente não tem ninguém por aqui?
– Não! Pode relaxar. - Lurani respondeu em um tom otimista.
– Você está sozinha nessa costa?
– Hã… - deixou-se apoiar nas pedras, assumindo uma posição mais reta - Provavelmente em toda a costa. Por causa da especialização dos monstros para serem terrestres ou aquáticos, a descida dos tritões no tratado de trégua com humanos e essas coisas…
– Você deveria voltar para casa. - disse sem rodeios.
– Não! - ela recuou - Por que você está dizendo isso? - levou uma mão ao peito.
– Você está vivendo sozinha há meses!
– Ah, por isso? - ela voltou a encostar-se contra as pedras - Eu não acho que poderia voltar mesmo se quisesse. Não sei como cheguei sã e santa até a costa.
–… Sã e salva. - corrigiu, sem mudanças em seu tom - Como assim?
– C-certo. - corou um pouco - Por causa dos monstros, oras.
– Você não é uma híbrida? Eles provavelmente iam perceber que você não é uma sereia ao chegarem perto.
Lurani empurrou-se contra as pedras para aproximar-se da face da outra. Para Greneva, ela estava perto demais, mas não soube como reagir. A sereia analisou seus olhos por alguns momentos e então deixou-se escorregar de volta à posição inicial, desapontada.
– Você realmente não faz ideia da situação.
– Ei, eu sei que eles são mais violentos que os terrestres. - disse, sentindo-se insultada - Mas isso não significa que você pode sair com um arranhão ou dois apenas?
– Eles estão muito mais violentos. Você sabe das três grandes feras, certo?
– Sim, eles dominam os mares, são extremamente fortes e os outros monstros tentam se aliar a algum deles para sobreviver. Uma fera protege os monstros comuns das outras. É uma batalha travada pela eternidade por causa disso.
– Bem, mas você sabia que eram quatro antes? Era uma criatura tão ancestral que parecia sereia e monstro ao mesmo tempo. Ninguém sabia o que ela era, mas ela lutava contra os outros três, mesmo geração após geração dos outros três monstros se passarem, e por causa disso os outros se focavam em atacá-la. Até que ela sumiu. E só foi vista umas 2, talvez 3 vezes desde então, e isso há muito tempo.
– Isso é novo! Não lembro de ter lido isso em lugar algum… - ela procurava em vão por papel em seus bolsos - Você não está tirando uma com a minha cara, certo?
– Por que eu faria isso? - sua boca formou um sorriso - Eu tenho informações valiosas, então é bom que você me ouça e me visite!
– Ei, se você quer companhia não precisa falar desse jeito, é só pedir. - zombou, mas percebeu que acertou em cheio ao ver Lurani corar e afundar-se mais um pouco na água– Ei, é sério, eu te visitaria mesmo sem motivo especial.
– É? Por quê? - levantou um pouco a cabeça para falar, mas logo afundou-a parcialmente novamente.
– Primeiro, eu gosto dessa costa, eu não vou deixar de vir e seria estranho te ignorar enquanto eu estou aqui. Segundo, eu meio que sempre quis falar com uma sereia. - “terceiro, você é a única não afetada pelas merdas que eu fiz, então eu finalmente posso falar com alguém sem um sentimento de culpa esmagador”, pensou, mas apenas sorriu para a sereia.
– Ah, por isso…
Geneva percebeu que Lurani parecia estar decepcionada com sua reposta: ela havia abaixado-se mais na água e desviara o olhar. As feições de Greneva tornaram-se preocupadas, incerta do que havia dito errado, mas Lurani não reagiu ao olhar; se ela conseguia identificar sua expressão facial e decidiu ignorá-la ou àquela distância era muito longe para ser percebida, Greneva não era capaz de decifrar. Querendo evitar tornar a situação ainda mais desconfortável, apenas perguntou:
– Mas por que você está me contando isso?
Greneva viu algumas bolhas subirem à superfície antes de Lurani olhar para Greneva e levantar-se o suficiente para sua boca sair da água.
– Quando ela sumiu tudo ficou pior. Não tendo em quem focar, e, segundo algumas teorias, até de quem se alimentar, os monstros ficaram mais competitivos entre si. Foi aí que os monstros do mar começaram a ficar consideravelmente mais violentos do que os terrestres, aparentemente.
– Isso faz sentido. - comentou.
– Mas o importante é que, há um tempo, anos antes de eu nascer, uma outra fera fugiu do combate. Dizem que tentou fugir para algum rio.
– Rio? - cruzou os braços - Ela sequer conseguiria sobreviver em água doce? E eu não me lembro de nenhum ataque nos rios sendo reportado. Essa notícia se espalharia rapidamente… Talvez no outro continente…? Ah, há uma lenda antiga da época de minha avó sobre um fantasma nos rios. E atividades e mudanças inesperadas em alguns rios na mesma época… Também teve algumas atividades estranhas quando eu era criança… Espera, qual a sua idade?
– 31 anos.
– Tão nova?! - ela arregalou os olhos, mas então lembrou-se do corpo da outra em suas memórias - Bem, você tem alguns traços ainda não desenvolvidos, mas não imaginei que era uma adolescente.
– O quê?! - levantou uma boa porção de seu torso acima da água e viu Greneva tentar futilmente proteger-se com os braços da água que levantara - Eu sou uma adulta! Envelheço mais rápido que sereias! O que faz você pensar isso? É a minha falta de peitos, não é mesmo?
– N-não? - “não minta”, pensou - Quer dizer, só um pouco…
Greneva encolhia sob o olhar de Lurani enquanto apoiava-se contra as pedras para manter-se acima das águas. Deixando seu torso afundar-se novamente, Lurani disse:
– Bem, pelo menos isso explica… - ela suspirou, sem completar o pensamento - Por favor, não me veja como uma criança.
– Tudo bem. Eu, hã, não quis te ofender. Quem liga para tamanho, mesmo? - sorriu, tentando animá-la.
Lurani tentou sorrir de volta, porém, falhou em conter um som de dor. Ah, sim, a boca dela; Greneva sabia que era desconfortável, mas não queria pressionar sobre o assunto por enquanto… Isso é, até ela perceber uma gota de sangue que Lurani falhara em limpar escorrendo desde seus lábios até dissipar-se na água.
– … E quem liga para alguns detalhes únicos? - tentou soar confiante.
Entretanto, a frase repetia-se incontáveis vezes em sua cabeça enquanto e após tê-la dito, incerta de sua forma de aproximar o problema. Um longo e desconfortável silêncio.
– Detalhe? - Lurani soltou uma risada melancólica - Eu acho que é algo bem perceptível.
– Isso está te machucando! Mesmo que alguém ligasse, não vale a pena todo esse trabalho, eu acho.
– Você não entende, eu quem não gosto disso!
– Por quê?
– Por quê? - a confusão em seus olhos era nítida. Parou por um momento, pensativa, olhando para a sua própria reflexão na água, e então para a reflexão de Greneva. - Eu acho que… - continuou, fitando o reflexo da outra - Eu não quero ser um monstro, mais...
– Bem, você não é uma. E mesmo se você fosse, os monstros não parecem ser tão maus assim.
– Para vocês! - encarou-a - Como eu estava dizendo, tudo piorou desde que a segunda fera fugiu. Eles estão até comendo uns aos outros atualmente!
– Oh… - encolheu-se para longe da água - A situação é pior do que o que eu imaginava… - curvou-se para frente novamente - Mas isso não tem nada a ver!
– Como não?
– Bem, você é você.
– Eu não entendo.
– Se você só não quer ser como eles, então não seja — e você já não é. Se machucar todo dia não muda nada. Agora, se você realmente não gosta da sua mandíbula como ela é, isso é outra história.
– Como eu sei a diferença?
– Hã… Tentando não escondê-la por um tempo?
Lurani observou-se novamente em sua reflexão, pensativa. Gentilmente, pôs uma garra sobre seu lábio inferior e pausou por alguns segundos para observar-se. Então, fixando seu olhar, cerrou ambas garras ao que uma cintilação surgiu ao redor de seus punhos. O brilho levitou até o redor de sua mandíbula, livrando suas garras, as quais pôde abrir e apoiar a base de sua mandíbula. Guiando-a para a sua posição original, presas saíam de dentro de sua boca, apenas não rasgando seus lábios graças ao brilho que encobria-os ao que elas passavam de forma impossível para fora de sua boca. Ao terminar, continuou fitando sua própria imagem, sem mexer-se.
– Mais confortável agora?
A voz de Greneva assustou-a, fazendo-a levantar sua cabeça para olhá-la. Ao ver a face da outra, magia começou novamente a sair de suas mãos por alguns segundos.. E cessaram. Experimentou abrir e fechar a boca, apalpando sua mandíbula.
– Tem certeza que não te assusta?
– Isso? - riu - Não, pelo menos não em você.
Lurani deixou um pequeno sorriso escapar. Ela apenas não escondia-se quando tinha que comer e, com pesar, enquanto dormia. Muitos acidentes noturnos com pesadelos, ainda mais longe de qualquer outra pessoa que pudesse a socorrê-la em casos mais severos, a fez ter que desistir disso. Porém, sempre dormira com medo. Abriu um pouco mais seu sorriso, mais do que poderia enquanto escondia suas presas. Greneva sorriu de volta, e continuou:
– Tem coisas mais assustadoras. - o sorriso sumiu e, ainda hesitante, usou sua magia para secar-se - Como reuniões… - murmurou.
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