“Nós estávamos entediados. Esse era o simples motivo por trás de tudo.
Gwennylyna há um tempo havia se tornado forte e parecia estar mais confiante. Era mais complicado “brincar” com ela - como pudemos chamar isso de “brincar”? - então havíamos parado há um tempo. Além disso ela havia cortado o seu cabelo, o nosso alvo mais comum, e parecia pretender mantê-lo curto. Eu acho que combina com ela, e penso em elogiá-la, mas temo que pareça que estou puxando briga. Não sei como ela verdadeiramente se sente em relação a mim e não quero arriscar saber.
Berta havia sumido. O lixo que jogávamos no colchão onde ela morava num canto da cidade apenas se acumulava e havíamos concluído que ela deveria ter finalmente morrido. Eu ouvi falar que agora ela vende pães e doces na feira, mas ainda não a vi. E eu também temo encontrar-lhe.
Então não tínhamos nada para fazer.
Decidimos nadar nos cenotes, uma ideia de Arnst para me agradar. O fim da guerra contínua contra os monstros significava que não havia mais o que temer, porém não havia tido um pronunciamento real sobre o uso daqueles locais. Era incerto se o rei considerava o acesso livre ou não, portanto a população evitava sequer aproximar-se. Há algum tempo eu e meus amigos frequentávamos as águas, era um local onde podíamos sentir que estávamos em privacidade para fazermos o que quiséssemos.
Não importa quantas vezes eu visse, o cenário era deslumbrante. A luz, filtrada pelas folhas das árvores e refletida na água contra as formações criava um ambiente azulado aconchegante. Ser capaz de ver a floresta por baixo era uma experiência única. A formação do cenote onde fomos daquela vez permitia que entrássemos a pé, descendo uma formação natural de rochas até a água. Por causa disso, além da fauna local de peixes pequenos e sapos, os conens também haviam se alojado no local e até mesmo pareciam ter feito algumas tocas. Eles não pareciam se importar com nossa presença, exceto por alguns aproximando-se e esfregando-se contra nossas pernas pedindo por carinho, então continuamos.
Nós gastamos nosso tempo bebendo, fofocando e jogando água um nos outros. Ao final, estávamos cansados demais para subir as escadas e eu tive a brilhante ideia de usar um jato para subir-nos, afirmando-lhes que eu não estava muito alterada. Eu já havia mostrado minha magia de água algumas vezes, portanto não duvidaram de mim.
Primeiro eu mesma subi. Usei essa vez para medir o quão alto o jato precisava ser e qual posição era ideal para subir sem muitos impedimentos, mas que fosse próximo o suficiente da beirada para que pudessem facilmente pular do jato para a terra. Do topo, eu ainda conseguia ver e ouvir os outros se eles falassem alto o suficiente.
Então subi Arnst delicadamente. Vendo que a trajetória estava correta, subi Theo com mais confiança. E então subi Deawa.
Quando Deawa estava já estava no topo, senti Arnst repentinamente abraçando-me fortemente por trás. Ele e os outros já haviam interagido comigo enquanto eu usava magia, então não o culpo, mas dessa vez desconcentrei-me. Ela estava preparando-se para pular para a terra quando o jato desfez-se sob seus pés. Eu vi seus olhos arregalarem-se, um pequeno som de surpresa saindo de sua boca. Então, enquanto via seu corpo distanciando-se de nós, diminuindo em minha visão enquanto ela caía, o som tornou-se um grito e eu via seu corpo aproximando-se do limite entre a água e a terra. Então um baque. Silêncio.
Nós três ficamos paralisados por alguns momentos. Um grito de Theo chamando por Deawa enquanto ele aproximava-se do cenote impulsionou-me a agir e segurá-lo antes que ele tentasse pular. Falei qualquer coisa que aparecia na minha mente para acalmá-lo, dizendo que não era alto o suficiente, que ela deveria apenas ter desmaiado. Após ele parar de me empurrar, disse-lhe que mostraria agora que estava tudo bem e usei novamente o jato para levantá-la.
A água em volta de seu corpo estava vermelha. Havia um buraco em sua cabeça… Olhando melhor, percebi que um lado de seu rosto estava achatado, desfigurado.
Eu gritei, novamente desfazendo a magia, e cobri meus olhos. Ouvi o que certamente era Theo vomitando e Arnst, que até o momento não havia se movido, começou a chorar.
‘Tira ela de lá! Tira ela de lá!’, Theo suplicou e forcei-me a abrir os olhos. Os dois já estavam de costas para o cenote, de joelhos, desabados. Forcei-me a olhar para a água, preparando-me para trazê-la novamente. Seu corpo agora estava apenas parcialmente na água, conens estavam em volta da parte que estava em terra. Não conseguia ver direito o que estavam fazendo, mas consegui discernir alguns puxando-a para a terra. Contemplei por um momento se estavam tentando ajudá-la, quando lembrei-me que conens não são simples “animais”. Eles precisam de carne humana. Monstros.
Olhei para os lados. Vi conens se aproximando em números extraordinários. Lembro-me de gritar ‘não’, ao que aproximei-me dos homens e comecei a puxá-los para levantarem-se. Ambos protestaram, dizendo-me que eu precisava buscar Deawa, e eu apenas consegui dizer entre lágrimas ‘Precisamos sair. Agora!’
Quando eles enfim perceberam os conens se aproximando, vi a pouca cor que restava esvaindo-se de suas faces ao que prontamente levantaram-se. Começamos a correr de volta para a cidade, aproveitando enquanto eles ainda estavam distraídos.
Eu sou completamente culpada pela crise atual dos conens. Theo não fez nada de errado.”
Essa era a mensagem que Greneva havia escrito pouco depois de entrar na academia militar e escondido em uma gaveta que ela e Alseri haviam determinado que seria dela. Ela esperava que um dia Alseri acabasse por ler a confissão. Seu senso forte de leis e justiça a fariam denunciá-la e Greneva poderia pagar por seus crimes ao mesmo tempo que não decepcionaria Arnst ou arruinaria ainda mais Agnao. Entretanto, sua esperança havia sido em vão.
Greneva contou toda a história para seus pais, desde aquele dia até o que havia descoberto recentemente sobre o destino de Theo.
Eles ouviram atenciosamente, tentando não deixarem-se levar pelas emoções. Quando ela terminou de contar-lhes tudo, suas faces não esboçavam um sentimento claro. Greneva sentia um nó se formando em sua garganta e sua respiração acelerando até que sua mãe, por fim, abriu a boca.
– Greneva. - ela começou, olhando um momento para seu marido e então tornando a olhar para sua filha - Muitas coisas aconteceram. Foi corajoso você contar isso, e eu aprecio sua sinceridade.
Seu pai abraçou-lhe fortemente, dizendo-lhe, entre lágrimas e soluços:
– Deve ter sido doloroso! - lamentou - Nós nunca quisemos que você passasse por coisas assim… Nenhum pai quer.
Ela então sentiu sua mãe abraçando-lhe. Lentamente, acalmando sua respiração e relaxando nos braços familiares, levantou hesitante os braços para retornar o afeto.
– Você tem acima de tudo que pensar no reino. Ainda mais com uma crise dessas, não poderíamos arriscar um reino ainda mais desestabilizado. - Joana reconfortou-lhe - Mas…
As mãos de Greneva vacilaram nesse momento, tensão voltando a dominar seu corpo. Seu pai virou-se para Joana, atônito.
– Você ainda matou uma pessoa, mesmo que acidentalmente. Você vai carregar essa culpa com você, ainda mais porque não pode admitir seu crime se não quiser piorar a situação.
Joana soltou-se do abraço e deu alguns passos para trás, fitando os olhos de sua filha que começavam a lacrimejar. Parlo afrouxou seu abraço, ainda com seus braços em volta de Greneva.
– Isso realmente é a hora certa? Além disso, eu diria que foi muito mais culpa daquele Arnst, eu nunca gostei dele!
– “Muito mais” ainda quer dizer que uma parte é culpa dela. - rebateu.
– Pense em como ela está sentindo!
– Eu estou. Você também deve saber que ela está pensando exatamente o que eu disse, e não vamos conseguir convencê-la do contrário.
Parlo tornou a olhar sua filha, que começara a chorar.
– O que eu devo fazer então? Eu sou uma pessoa horrível e arruinei tudo! De uma forma que não posso consertar! E eu penso, eu só quero paz e ser melhor. Eu não consigo pensar em nenhum objetivo de vida maior do que isso, ou nenhum desejo para o futuro, quando eu falho até mesmo no básico! - ela pisoteou o chão.
Seu pai abraçou-lhe fortemente novamente, ao que sua mãe aproximou-se um passo e disse-lhe:
– É como você disse, você não pode consertar o que fez. Não sozinha, pelo menos.
– Sim, - Greneva sentiu seu pai assentir com a cabeça - o que significa que você pode se focar nesses “básicos” enquanto trabalha com suas colegas. Sem sentir que está fazendo pouco.
– Hã? - Greneva olhou entre seus pais.
– Aceite que você não pode fazer muito e foque no que você pode fazer. - Joana simplificou, aproximando-se de sua filha e abraçando-lhe novamente.
Aceitar não poder fazer muito? Como ela poderia fazer isso? Não, é mais que, ela não tinha opção fora aceitar isso. Ao invés de focar-se em sua própria impotência, simplesmente fazer o que ela pode? Greneva ainda se questionava se essa era uma postura derrotista, mas, pelo menos por agora, concluiu:
– Eu acho que vou continuar na academia militar. E daí eu tento descobrir o que fazer.
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