Uma tempestade havia formado-se na cabeça de Greneva e recusava-se a se dispersar. Alseri já havia adormecido há pelo menos uma hora. Entretanto, Greneva apenas continuava sentada na escrivaninha, lendo e relendo o mesmo parágrafo de um de seus livros, palavras as quais eram observadas por seus olhos, mas não processadas por sua mente.
Nos últimos dias ela havia tido que entrar nos cenotes novamente. Ela pensou que ficaria bem, uma vez que já havia discutido o que ocorrera com seus pais e imaginara que isso havia sido o suficiente para processar tudo o que ocorrera.
Não fora.
Quando ela estava descendo com seu grupo, sentia-se bem. Conversavam ao que desciam, cochichando para não arriscar acordar nenhum conen. Ela havia percebido que as outras estavam se forçando para deixá-la distraída, e, primeiramente, pensou que ficaria irritada, porém descobriu-se apreciando a consideração das outras. No entanto, quanto mais aprofundavam-se, mais suas vozes ecoavam. Mais a reflexão da água começava a fazer-se notada.
Um último degrau, distante da plataforma em que estavam, a fez silenciarem-se, focando em não escorregarem. Ao chegarem ao nível da água, Greneva não soubera o que as fizeram parar em sua frente e continuar caladas. Apenas depois, ela relembraria seu primeiro dia no cenote, o quanto aquele azul intocado havia a impressionado, e imaginaria que o mesmo havia passado-se com suas amigas. Na hora, ela estava ocupada demais vomitando.
Ela não percebera como o seu som havia reverberado, fazendo as demais primeiro pularem, e só então seus olhos arregalaram-se ao que elas viravam-se em sua direção. A única memória que ela teve, em seguida, foi de Gwenny e Alseri segurando-a, uma mão checando sua testa, ao que uma luz branca e marrom a envolvia e ela sentia o enjoo rapidamente melhorando. Quando sua audição houvera voltado para o presente, ela escutava “desculpe” e “perdão”, entretanto demoraria mais alguns momentos para conseguir discernir quem dizia o quê.
Quando Greneva voltara à plena consciência, ela percebera que Alseri estava preparando-as para retornarem. Greneva agarrara seu braço, com mais força do que realmente queria, e dissera-lhe que deveriam prosseguir com a missão. Foi ignorada, e então decidira pedir-lhes que prosseguissem. Ela não queria ser um peso para o seu time, principalmente quando tudo era sua culpa, e o local a lembrava disso com cada batida acelerada de seu coração. Além disso, ela pensava que se enfrentasse isso naquele momento,ela não teria mais problemas e finalmente superaria seus arrependimentos.
Enganara-se.
Naquela primeira visita, não conseguiu entrar na água. Na seguinte, o máximo que pôde fazer foi controlar sua reação de vômito. Na terceira, conseguiu mergulhar dois pés na água, mas recusava-se a fazer mais do que isso. E não conseguiu progredir mais. Ela não estava atrapalhando seu time, mas também não estava ajudando. Tal fato era apenas mais um dos trovões em sua cabeça.
Greneva fechou o livro e empurrou-o para longe, colocando sua cabeça entre suas mãos. Suas costas bateram contra a cadeira quando ouviu um barulho o qual a fez perceber que ela havia derrubado o livro acidentalmente. Imediatamente olhou sobre seu ombro, observando a reação de Alseri… Ela não parecia ter acordado. Levantou-se suspirando, esperando que suas colegas do andar de baixo não fossem abrir uma reclamação com os superiores.
Enquanto andava para a borda de sua escrivaninha, o diário de Lurani chamou-lhe a atenção na estante. Ele destacava-se entre os demais livros, borda escura com detalhes prateados e capa dura, e Greneva havia-se perguntado se seria mais seguro deixar-lhe em uma gaveta caso houvesse uma inspeção dos quartos. Entretanto, ela achava que os líderes estariam ocupados demais para tal procedimento e, é como dizem, uma dríade esconde-se em uma floresta.
Agachou-se para recolher o livro que lia, e ao levantar-se percebeu-se encarando novamente o diário. Até o momento, ela ainda tinha receios sobre lê-lo, os quais dissolviam-se a cada dia. Agora, ela sentia-se atraída a agarrá-lo. Afinal, nada distrai mais a cabeça do que a fofoca. E um diário certamente teria fofocas picantes.
Sentou-se novamente, diário sobre a mesa, e olhou uma última vez sobre o ombro checando Alseri. Respirou fundo antes de abrir a primeira página com apenas seu dedão e o dedo indicador. O primeiro detalhe que percebeu foi a bela e organizada caligrafia, entretanto, sem decorações.
“Mãe Lufen me deu esse diário há dois dias para ‘me expressar’ depois de me confessar a verdade. Está mais do que na hora de eu usar. Mas, bem, como usá-lo? Há tanto que eu quero falar, e ao mesmo tempo não tenho nada em particular para dizer. Ela me disse que seria bom escrever sobre tudo, desde o começo. Então acho que vou fazer isso e ver o que sai depois.
Minha primeira memória foi acordando no berçário. Em volta de mim haviam centenas de ovos inviáveis, mas também restos de alevinos de tritões e de outros juvenis. Como todos os tritões, eu descobriria depois que isso é comum e normalmente no máximo dois ovos são bem sucedidos até tornarem-se juvenis, e então alguns juvenis são caçados. No entanto, não posso mentir: continua sendo uma memória aterrorizante.
Nascemos com o instinto de onde nossa cidade é, portanto, logo em seguida comecei minha viagem das profundezas até Lucianiva, parte da região Centro-Leste Vermelho. Na viagem de quatro dias alimentei-me principalmente das algas vermelhas, as quais até hoje são minhas favoritas.
No caminho, encontrei-me com o que hoje sei que eram patrulhas da região. Ao me verem, um deles apontou suas armas, entretanto, o que estava na frente o parou com um braço e eles começaram a trocar mensagens elétricas as quais eu ainda não havia aprendido a entender. Quando finalmente aproximaram-se, um escudo levantado, lembro-me de tentar replicar os campos elétricos feitos, provavelmente nada que fizesse sentido, mas isso os fizeram olhar entre si. Eles então olharam fixamente para mim, esperando por algo. Lembro-me de estar intimidada por seus tamanhos e apenas ter recuado. Eles trocaram mais sinais elétricos, os quais tentei replicar mais uma vez, em seguida o que estava com o escudo passou a lâmina de sua lança contra seu braço, forte o suficiente para o sangue espalhar-se pela água. Recordo-me que imediatamente aproximei-me, atraída pelo novo cheiro. A patrulha pegou suas armas, porém hesitaram em avançar. Eu sondei em volta, e então nadei para o lado oposto deles, onde havia algas vermelhas, e comecei a comê-las com uma fome que não havia sentido até o momento. Quando saciei-a e voltei a tomar meu caminho, um dos membros da patrulha havia desaparecido. Os outros dois me acompanharam até a cidade. Esse evento deveria ter sido meu primeiro sinal de que havia algo errado.
O segundo sinal viria logo em seguida.
Quando cheguei na cidade, havia uma multidão aguardando ao lado do patrulheiro que havia sumido anteriormente. Diversos tritões olhavam para mim, sem se mover, um sorriso no rosto: algo que até mesmo um juvenil entenderia. Eu sorri de volta, mas isso os fez impulsionarem-se para trás. Olhei por cima do ombro, porém não havia nenhum predador aproximando-se. Eu continuei nadando em direção ao povo, alguns recuaram alguns nados, porém outros permaneceram em suas posições enquanto uma sereia idosa aproximou-se de mim. Ela esticou uma mão em minha direção. Respondi pegando-a com minhas duas mãos. Ela riu, outra expressão que qualquer um entenderia, e vários sinais elétricos dispararam atrás dela ao que outros se aproximaram, tocando-me os ombros, alguns passando suas mãos em meu cabelo. Primeiramente fiquei feliz com a atenção, mas logo senti-me sobrecarregada e recuei, tentando empurrar algumas mãos para longe. Senti que eles paralisaram-se com a reação, olhos arregalados. Entretanto, logo seus olhos tornaram-se dóceis novamente e eles sorriram, retraindo suas mãos e não recuando quando eu sorri de volta.
Lembro-me de então sentir um sinal elétrico mais forte. A multidão partiu-se, abrindo um espaço por onde duas sereias aproximavam-se ao longe. Eu não precisava sondar ou vê-las de perto para saber que eram minhas mães. Apressei-me pelo corredor aberto, nadando deselegante. Eu finalmente conseguia ver minhas mães, a visão embaçada tornando-se nítida ao que nos aproximávamos. Lufen, cabelo loiro curto, olhos azuis, cauda azulada adornada por bolinhas pretas. Arani, cabelo longo, preto e encaracolado com mechas azuis, olhos castanhos, uma cauda verde vibrante com listras pretas, algumas cicatrizes ao longo de seu corpo, e faltava-lhe um braço— Um grito fez-me parar. Mãe Arani gritara e havia coberto seus olhos ao me ver. Campos elétricos descontrolados eram gerados por ela até que virou-se e disparou na direção oposta.
Eu estava atônita. Mãe Lufen seguiu-a por alguns segundos, entretanto tornou-se abruptamente, olhos fixando-se nos meus. Ela rapidamente fechou a distância entre nós, pousou uma mão em minha bochecha e disse-me algumas palavras desconhecidas. Ela então beijou minha testa, afagando minha bochecha. Em seguida, disparou em direção à Mãe Arani.
Eu senti lágrimas formando-se, bolinhas que logo espalharam-se pelas águas.
Naquele mesmo dia, Lufen me nomeou. A partir daquele momento eu morei na casa das minhas mães. Mãe Lufen me ensinou tudo que eu precisava, enquanto Mãe Arani, no geral, me ignorava. Ela não era rude comigo, e Lufen sempre me dizia para não me deixar abalar.
Muito ocorreu desde então, mas o terceiro mais óbvio sinal seria alguns anos depois, quando tivemos uma aula sobre defesa na escola. A professora nos ensinou sobre o que precisávamos nos atentar em possíveis invasores, como veneno, correntes elétricas… presas e garras.
Não é como se eu já não tivesse percebido que eu era diferente das outras sereias. Eu já havia perguntado à Lufen sobre minha boca e minhas mãos. Ela explicou-me que tritões têm uma grande variedade de características, como alguns não sendo capazes de se comunicar por sinais elétricos e outros, mais raros, podendo usar sinais químicos, além da grande variedade de cores de caudas e manchas, assegurando-me que só acontecera que eu nasci com particularidades mais acentuadas e isso poderia assustar outras pessoas, mas que eu não deveria preocupar-me.
Entretanto, eu não fiquei mais tão certa disso quando naquele dia minha cabeça havia sido empurrada contra o concreto malhado da parede da escola, enquanto um colega me chamava de monstra infiltrada que comeria a todos.
Um professor interviu de imediato, enviando-lhe para a sala do diretor enquanto usava magia de cura em minha cabeça. Entretanto, eu não conseguia parar as lágrimas que escorriam de meus olhos ou meus soluços e fui liberada mais cedo. Assim que Mãe Lufen chegou em casa pedi-lhe que me dissesse como esconder minhas presas. Ela custou a aceitar, porém eventualmente ensinou-me a magia após receber uma mensagem da escola. Na época, era o suficiente para drenar toda a minha reserva mágica do dia e eu constantemente cobria o interior da minha boca em cortes, carregando comigo papéis para esconder o sangue de espalhar-se pela água.
Tudo havia valido a pena quando, alguns dias depois, Mãe Arani falou comigo pela primeira vez. Eu estava saindo para a escola, quando ouvi-a dizer ‘O lanche’. Virei-me, procurando por Lufen, entretanto apenas vi Arani apontando para minha lancheira. Eu sorri, largamente, vários cortes que eu apenas sentiria depois, porém persistiriam por alguns dias, e a agradeci.
Mas nada disso importa.
Mãe Lufen me disse a verdade agora, com 18 anos.
Um tritão normal entraria na puberdade apenas depois dos 20 anos, mas havia vários indícios de que eu já estava começando a passar por ela. Portanto, Lufen achava que já estava na hora de eu saber.
Tritões carregam seus ovos fertilizados até os berçários, locais longe das cidades onde quase não há luz, os quais são mais seguros, porém inviáveis para a vida contínua de tritões adultos.
No caminho, Arani foi atacada. Inesperadamente. Algum monstro deveria ter tentado, sem sucesso, invadir uma cidade e teve que mudar o seu rumo, acabando por encontrá-la. Isso raramente ocorre, e Lufen ficou irada, perdendo seu braço e tendo que lutar até que o outro fugisse.
As emoções da luta contra o mostro infectaram os ovos.
Ela continuou até o berçário para depositar os ovos, priorizando-os.
Quando retornou, era tarde demais para recuperar seu braço com qualquer magia.
Um sacrifício pelos filhos.
Pela filha que era um monstro.
Lufen certificou-me que eu não era um monstro, porque eu nunca precisara de carne de tritões. Que, no pior dos casos, eu sou apenas um terço monstra, e ninguém se importava com isso.
Mas eu sei.
Mãe Arani não pode me amar porque eu não sou a filha dela, eu roubei o lugar de seus filhos tritões.”
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