O Pintor de Estrelas
A cada cem anos, os céus elegem um novo Pintor
Capaz de criar vidas e mundos com seu amor
É o destino do Pintor morrer para fazer uma estrela brilhar
E é o destino das pessoas viver para ela lhes guiar
Eu estava atrasada. De novo.
Corri com o pão do café-da-manhã ainda na boca em direção ao ponto da carruagem dos alunos do Castelo das Cores. Ao descer a colina, vi meu tão almejado transporte partindo sem mim e acabei tropeçando, deixando cair alguns pincéis da minha bolsa. O pão também caiu, alimentando a grama com a geleia de goiaba enquanto eu praguejava tentando salvar meu material. O desastre começou logo cedo: a grama que o pincel ainda úmido tocou transformou-se em pedaços de rocha.
O vento soprou contra minhas costas curvadas e fez sumir meu suspiro morno. Abaixei-me, sacudi o material, abri meu pesado estojo de madeira e limpei a tinta que escapou das pastilhas. Sempre me esqueço de que preciso deixá-las secar antes de guarda-las… Em seguida, procurei entre as pastilhas a cor mais próxima ao verde da grama úmida pela última garoa. Com preguiça, umedeci as cerdas do pincel menor com a Seiva Escarlate e recuperei aquele gramado antes que se tornasse rocha para sempre. Ao menos, o pote da seiva estava intacto e as pastilhas de tinta em meu estojo só estavam um pouco bagunçadas.
— Senhorita Elsa Sândalo, você está atrasada!
Virei para trás e vi Kin, minha melhor amiga, sobre um cavalo jovem e de cor castanha. Ela exibia um sorriso de quem já viu aquela cena milhares de vezes, o que me fez rir.
— E você também estará se continuar parada aí!
— Anda, sobe logo antes que a diretora nos mate por nos atrasarmos na primeira semana de aula!
— Calma aí! Estou ajeitando o estrago da minha pressa.
Kin desceu do cavalo, amarrou seu cabelo escuro e liso em um coque, preso por um lápis. Vestia o uniforme da nossa Ordem, uma túnica azul clara e as calças de cor branca, além das sapatilhas douradas. Vi-a tirar de sua mochila seu estojo de pintura e seu próprio pote da Seiva.
— Deixe-me ajudar! Suas cores estão meio mortas!
Girei os olhos para ela e recuei, sentando-me na grama. Kin, com uma delicadeza quase surreal, deslizou o pincel sobre a Seiva Escarlate e suas cerdas brilharam em um dourado mais reluzente do que ouro. Kin então o lançou sobre uma pastilha de pigmento verde amarelado, próximo ao ocre. Antes que eu a questionasse, seu pincel tocou a grama que eu tinha acabado de restaurar, deslizando em curvas gentis sobre cada ramo, e assim o amarelo se sobrepôs ao meu excesso de pigmento azul, devolvendo o verde original. O brilho mágico desapareceu das cerdas enquanto a grama se agitava como se estivesse se espreguiçando. Um trabalho lindo e delicado como só Kin sabia fazer.
— Kin, você já pensou em ser um Pintor de Estrelas?
A pergunta pegou Kin de surpresa, o que era raro, já que ela parecia ter sempre respostas na ponta da língua. Ri de sua expressão.
— Bom, não sei se seria capaz.
— Como assim? Você foi eleita a melhor aquarelista do ano passado! Consegue dar brilho e vida até em natureza morta! No dia que te derem na mão o Papiro-Deus, vai causar inveja até nos deuses!
— Não sei se quero tanta responsabilidade. Se eu conseguir me graduar para estudar e criar criaturas marinhas, já ficaria realizada!
— Mas seus pais vão permitir?
— Eu fujo de casa se não deixarem! – disse com um sorriso travesso, e eu o retribuí:
— Sei onde poderia te esconder na floresta! – rimos enquanto Kin guardava seu material. Ser um Pintor de Estrelas era o sonho de qualquer um neste mundo, pois era uma escolha divina. Os quatro deuses do Véu Cintilante escolhem uma vez a cada cem anos um pintor que será responsável por criar estrelas, planetas e muito mais. Era uma tarefa imensamente maior do que restaurar grama ferida ou criar pequenas plantas e flores.
Olhei para meu material no chão, onde os espaços entre as pastilhas estavam sujos com tons que pingaram dos pincéis nos locais errados com meus movimentos brutos e apressados. Ele também estava com um pouco da terra de quando deixei cair, e as cerdas dos meus pincéis estavam tortas, esparramadas como os pelos de um cão molhado que saiu correndo da banheira para rolar pelo chão. Era o total oposto dos materiais da Kin, que sempre pareciam novos e brilhantes como se ela tivesse comprado ontem.
— Você está muito séria hoje, Elsa. Mais do que de costume!
— Nada demais. Acho que estou com uma pitada de inveja do seu trabalho e da limpeza de seus itens.
— Como assim? Seu estojo viveu verdadeiras aventuras!
— Mas está surrado e feio.
— Pelo menos você pode sair de casa para pintar!
Eu devia ter ficado quieta. Kin era diferente de mim até nesse aspecto: sua família a mantinha em casa por causa de sua saúde frágil, embora, às vezes eu conseguia levá-la comigo para brincar nos campos perto de minha casa.
Tratei de puxar um casaco da minha mochila para cobri-la do vento. A última coisa que eu queria era ver Kin triste em seu quarto lutando contra outra gripe. Kin não era ela mesma sem seu maior prazer: pintar. E seu maior sonho era se graduar logo para criar novas vidas.
— Você falando de mim e nem trouxe seu casaco – resmungo para ela. — Veste logo isso!
— De jeito nenhum! Ele contém altas doses do seu mau-humor!
— Quê? Eu não tô mal-humorada!
— Está fazendo covinhas em seu rosto para não rir! Você quer ser mal-humorada e mal consegue!
Resmunguei um palavrão enquanto jogava o casaco nela, ouvindo-a rir. Admito que queria saber onde que ela arranjava motivo para estar sempre sorrindo mesmo com sua saúde tão frágil.
Aceitei sua carona de cavalo até a escola, mas a contragosto. Já tinha perdido a carruagem dos alunos, eu deveria lhe agradecer, contudo, os primeiros minutos me angustiavam porque parecia que eu cairia a cada cavalgada. Mas o pior vinha minutos depois: Oromir – que era o nome do cavalo dela — relinchou e fez reaparecer suas asas. À medida que elas nasciam de suas costas sob nós, ele ganhava novas cores que brilhavam movendo-se por sua pele, até transformar seu pelo em branco, limpo como nuvens em um céu azul. Então, ele levantou voo.
Meu medo de altura me fez apertar a cintura magra da Kin, que ao contrário de mim, ria e abria seus braços para o vento, imitando o bater das asas de Oromir. Acho que, se fosse eu no lugar dela, também ficaria feliz assim em voo ao invés de passar os dias enclausurada. Devíamos estar a mais de um quilômetro de altura quando percebi as nuvens nos tocando e já senti os pães com geleia sobreviventes rodopiando em meu estômago. Pelo canto do meu olho quase bloqueado por meu casaco sacudindo sobre Kin, pude ver o céu deixando suas nuvens rosadas para se tornar um azulado sutil.
Não estávamos sozinhas em voo. Vi ao longe um time de pintores usando seus pincéis mágicos para pintar nuvens de chuva, e assim ajudar as plantações para a próxima colheita. Nosso povo até tem poder para criar comida, mas minha mãe me disse que preferimos deixar a natureza cuidar disso, já que a nossa magia depende muito dos nossos sentimentos. Por isso damos apenas uma ajuda a natureza. Já na esquerda da minha visão vi mais um grupo de pintores, dessa vez com pincéis grandes presos em suas mochilas, montados em seus grandes corcéis alados. O primeiro da fila trazia um grande barril, provavelmente com Seiva Escarlate. Usavam túnicas longas de cor azul claras e pequenas tiaras de ouro, todos bem mais velhos do que eu e Kin. Por suas roupas e materiais, acreditei que estavam a caminho dos novos mundos em que pintariam mais formas de vida.
Soube que nossa viagem estava acabando ao ver que nos aproximávamos da Floresta do Dragão Perolado, onde no meio dela estava nossa escola, o Castelo das Cores.
Era um dos lugares mais lindos do universo pelo que me disseram. E de fato, as telhas douradas e os tijolos que brilhavam em tons violáceos quando a luz do Quinto Sol os tocava causava uma visão deslumbrante. Os povoados próximos também pontilhavam a paisagem com suas casinhas de telhados vermelhos ou cor de barro. Pude ver também a Kin acenando para nossos colegas e alguns veteranos, que seguiam para a escola com cervos-alados – uma espécie um pouco mais rara e, na minha opinião, mais bonita por conta dos longos chifres prateados. Cheguei a ver de esguelha a carruagem voadora das irmãs Dorotir, um trio de pirralhas metidas que nos olhavam por cima de seus ombros magros e cobertos de cachos loiros. Voltei meus olhos para o castelo por cima do ombro de Kin, que mandou seu corcel pousar em uma das torres.
Kin riu, aproveitou nosso voo até o último minuto e acho que deu até uma volta a mais do que devia. Abaixo de nós corriam mais alunos apressados com seus materiais em punho, pois a nossa primeira aula já era de Demonstração de Criação. Ao descer de Oromir, Kin lhe agradeceu com um afago atrás da orelha do cavalo que se sacudiu todo, rendido pelo carinho, o que me serviu de tempo para respirar e não vomitar pela sacada da torre, correndo o risco de atingir algum colega ou professor abaixo.
— Vamos, Elsa! Se não vamos perder a primeira aula!
— Hei, você não pode correr! – gritei, mas ela já tinha entrado na torre. Resmunguei enquanto recuperava o fôlego para alcançá-la.
***
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