Primeiro, ele se levantou e pegou da mesa o “Papiro-deus”. Era um papel de cor amarela clara, todo trançado e prensado artesanalmente, uma mistura de algodão-branco com talhos de bambu, onde cada milímetro era feito sob as orações dos Pintores Superiores, o sétimo e último grau da nossa ordem. Eu ainda não tinha visto um Papiro-deus assim, tão de perto, pois na nossa idade só podíamos pintar sobre a natureza já existente. Aquele papel era matéria prima para pintar uma nova vida, algo que só quando nos graduássemos seriamos capazes de fazer.
Saber que eu levaria mais seis anos de estudo para pintar sobre aquele tesouro, com suas fibras tão delicadas, trançadas com tanto cuidado e zelo, me fazia desejar que o tempo corresse mais rápido. Mas naquela manhã eu queria o contrário, ou que eu pudesse ter os tais “capturadores de luz” que os humanos da Terra criaram. Dizem alguns dos Pintores viajantes que voltaram de lá que esses dispositivos podiam gravar a luz, eternizando momentos das vidas das pessoas em papéis. Eu poderia gravar aquela aula e assisti-la milhares de vezes…
Estapeei minhas bochechas para não me perder em meus próprios devaneios e para me concentrar no trabalho do professor. Sh-Rorin colocou sobre a mesa e nossa frente o papel, estendendo-o no tamanho de um braço adulto e prendendo as pontas com cuidado em uma moldura de madeira de cedro. Depois, ele banhou o pincel da solução ainda fervente da Seiva Escarlate, que transformou as cerdas cinzentas em douradas, mais brilhantes do que as que a Kin fez horas atrás. Então, ele deslizou as cerdas sobre o pigmento novo e, como se seus dedos fossem pássaros sobrevoando o papel, começou a cantar uma oração.
Primeiro, ele traçou linhas precisas que definiram o exoesqueleto da libélula. Depois, carregou o pincel com mais pigmento e traçou o contorno das asas com linhas finas, sem preencher a área com alguma cor, pois as asas de uma libélula são semitransparentes. Depois, traçou o abdômen alongado, as patas e, por último, seus grandes olhos. Nesse instante, ele pontilhou com toques delicados do pincel sobre o papel, definindo as facetas que compunham olhos capazes de ver trezentos e sessenta graus. Não era preciso que o pintor de criaturas desenhasse cada mínimo detalhe de um ser vivo, mas ele precisava saber que eles existem e ter sua forma memorizada para que a magia não sofresse com falhas. O menor erro poderia fazer o inseto voar com dificuldade, não enxergar bem ou até morrer segundos depois, caso esquecesse algum órgão vital.
Essa era a magia do que significava ser um Pintor do Véu Cintilante: nós poderíamos ser como os deuses criadores, ajudando a criar e expandir o universo. Porém, tínhamos que jurar fazer o melhor possível, especialmente os criadores de formas de vida, porque elas seriam como filhos nossos. Era uma grande responsabilidade e isso às vezes me assustava um pouco.
Ver Sh-Rorin concentrado em cada detalhe era incrível. Todos nós ficamos em silêncio, quase sem respirar, pois não era sempre que tínhamos o privilégio de ver uma vida nascer. E quando ele traçou a última linha, o papel brilhou e ouvimos um som novo, incomum. Não sei explicar por que ele pareceu “vibrar” dentro de mim ao mesmo tempo em que vimos a libélula soltar-se do papel e dar seu primeiro voo.
Quase gritei de emoção. Kin e os demais colegas também exclamaram vendo a nova libélula nos sobrevoando. Eu sabia que ela buscava por água e, por isso, corri para puxar minha mochila e derramar no chão perto da mesa parte da água do meu cantil. Como se atendesse a um chamado, ela voou até a pequena poça que fiz.
Meu inseto favorito a poucos palmos de mim, recém-nascido e voando! Com suas asas refletindo cores suaves do céu e movendo-se, ao contrário da imagem estática de um dos meus livros e bebendo um pouco da água do meu cantil. Admito que quase chorei!
— Agora, precisamos te levar ao seu verdadeiro habitat, pequenino! – disse professor enquanto pegava um pequeno pote de vidro. Como foi ele que a pintou, a libélula-estrela foi de encontro às suas mãos e ele conseguiu guiá-la gentilmente para o pote.
— Agora, um teste! Quem aqui sabe por que esse pequenino voou para minhas mãos?
Kin levantou a mão tão rápido que quase me acertou:
— As formas de vida mais simples reconhecem a energia calorosa dos pintores, e por isso atendem ao nosso chamado. Elas sabem que podemos cuidar delas ou guiá-las, tal qual os pássaros sabem quando devem proteger seus ninhos por causa de uma chuva que se aproxima!
— Excelente, senhorita Kin! Vou anotar seu merecido ponto… Ah, e faltou comentar algo importante: quanto mais complexas as formas de vida, mais difícil é para elas nos reconhecer. Quanto mais raciocínio, mais a mente delas questiona o que somos ou o que sentem sobre nós. É por isso que estudamos tanto, pois até para guiá-las ao seu devido lugar, precisamos saber como treiná-las. Lembrando que, ao criarmos uma forma de vida que não passou pela juventude, que no caso da Libélula-estrela seria o estado de larva, devemos ter cuidado ao introduzi-la aos seus semelhantes.
Duas informações que eu não conhecia. Era melhor anotar antes que eu me esquecesse; até que me veio uma ideia. Ergui a mão pedindo a palavra e o professor sorriu para mim, permitindo-me perguntar:
— O senhor vai levá-la a Mihandr? Posso ir junto?
Ouvir a risada dos meus colegas me fez querer socá-los. Até Kin pediu silêncio.
— Não neste dia, pequena Elsa. Preciso dar aula para mais duas turmas hoje! Deixarei ele com um amigo querido que irá leva-lo junto a outras espécies que ele criou para ajudar o ecossistema Mihandr. Estude com cuidado, pois daqui a seis anos, você poderá começar sua especialização e conhecer aquele mundo. Agora, estão dispensados! Para a aula que vem, peço que leiam os dois primeiros capítulos de “Cores e formas da terra”. Iremos estudar como pintar os minerais mais fascinante deste mundo!
— Vamos estudar de todos os mundos conhecidos?
O professor riu ao ouvir minha pergunta, enquanto meus colegas guardavam suas coisas, mas não era de deboche.
— Que aluna apressada! Neste ano começaremos com o sudeste do nosso planeta. E já é muita coisa, não acha?
Lamentei um pouco, mas aquela aula foi tão legal que saí sorrindo e acenando para o professor Sh-Rorin.
Caminhamos pelos corredores do castelo quase aos pulinhos. Kin estava tão orgulhosa de seus estudos caseiros que parecia um galo de peito estufado. Antes de entrarmos na próxima sala, tratei de encher novamente meu cantil em um dos chafarizes, que tinha forma de um dragão-serpente da Terra.
— Eu queria tanto que houvesse alguma magia que me transformasse em adulta hoje! – disse para Kin, que deu uma gargalhada.
— Que preguiçosa! Aí vai perder todo o conhecimento de que precisa!
— Ah, não é preguiça! Seria… escapar das provas chatas e dos professores chatos!
— Mas esse ano teremos sorte, não acha? A próxima aula será de “Restauração de Plantas” e a minha irmã disse que a professora é uma fofa.
— Aposto que você roubou de novo o livro dela e por isso ajudou a plantinha de hoje! – Kin virou-se e escondeu o rosto culpado. Acabei rindo. — Bom, se ela for tão incrível quanto o professor Sh-Rorin, tudo bem!
Corremos para encontrar o local da aula seguinte. Descobrimos que não seria ao ar livre e sim na estufa ao sul do castelo. Porém, precisei desacelerar os passos e vi Kin parando, se segurando no corrimão da escada.
— Eita! Está se sentindo mal? – perguntei.
— Não…eu…– Kin tapou a boca e tossiu. Peguei água para ela, mas minha melhor amiga negou abrindo um sorriso largo: — Eu não sou uma libélula que precisa de água! Vamos, senão você vai me contaminar com sua cara de mãe-controladora!
— EU O QUÊ?
continua...
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