Confesso que nunca entendi como a Kin conseguia sorrir tanto mesmo quando ameaçava passar mal. Além disso, o ano letivo mal tinha começado e ela já estava se destacando com seus conhecimentos extracurriculares. Sua irmã, chamada Kyara, também era elogiada por todos os professores ao longo do dia quando viam a Kin. Sabia que ela não queria viver à sombra de sua irmã e era chato ver em três aulas seguidas com professores diferentes a mesma frase: “Espero que seja tão boa quanto sua irmã”. Acho que se fosse comigo, responderia com algum palavrão ou só daria as costas, mas minha amiga apenas sorria e agradecia os comentários.
Enquanto com ela era só elogios, eu já recebia minhas primeiras broncas: por dormir em parte da terceira aula, por pedir para o professor escrever mais devagar e não apagar o quadro e por ter pintado errado as cores de um cacho de feijão. Apesar da demonstração de criação da primeira aula, todas as demais foram feitas com tintas e pigmentos sem a magia da Seiva Escarlate.
Contudo, coisas começaram a desandar ao longo da semana.
Eu e Kin quase nos atrasamos procurando a sala da aula de Pigmentos, a penúltima aula do dia. Era uma aula que eu esperava desde o ano passado, pois poderíamos ter mais liberdade no preparo das cores e poderíamos começar a personalizar nossos estojos.
Perdida em meus devaneios, não vi o instante que Kin quase caiu. Foi um colega ao lado que a segurou a tempo e corri para ampará-la:
— Céus! Kin, sua testa está quente! É melhor te levar para a enfermaria!
— Não, de jeito nenhum – respondeu, tentando ficar em pé sem minha ajuda. — Não quero perder a aula!
— Deixa de ser teimosa! Você não está bem!
Quando Kin me deu língua e fez os colegas rirem, acabei bufando e cruzando os braços.
— E depois eu que levo esporro!
— Eu tô vendo uma covinha… — disse, se aproximando e cutucando minha bochecha, embora com menos ânimo do que nos dias anteriores de provocação.
— Ah, não começa, não!
— Olha a coviiinhaaa!
— Covinha é a…
O surgimento da professora na porta da sala de braços cruzados me fez conter a língua. No fim, eu era a única preocupada porque Kin já estava sorrindo e caminhando normalmente. Ou fingindo que estava bem.
Ao passar das horas, percebi que os movimentos de Kin estavam mais lentos. Sua atenção também estava ruim, a ponto de ela não ouvir a pergunta feita da professora diretamente a ela. Apesar disso, ela aguentou até o final e nos treinos, sua aquarela era (de novo) a mais bonita da turma. Nota máxima era pouco, até quem estava com inveja não podia negar que, quando a Kin pintava, sua aquarela parecia ganhar vida mesmo sobre o papel comum.
Porém, quando ela começou a guardar seu material no final da aula, ela cambaleou e caiu. Foi rápido demais para que eu a segurasse e ela bateu a testa na cadeira antes de ir ao chão. Dois colegas gritaram e eu corri até ela, vendo o sangue começar a escorrer enquanto ela tossia, quase perdendo a consciência.
— Chama a professora, rápido! – gritei para um colega por perto. Ela tinha saído para lavar os pincéis e uma outra colega trouxe água, mas Kin não parava de tossir e tremer.
Aproveitei o material no chão, peguei um dos pincéis e um pedaço da tela dela que havia rasgado quando caiu. Deslizei as cerdas sobre a Seiva Escarlate que caiu da mochila da Kin, esparramando-se entre os ladrilhos e, quase atropelando as palavras necessárias para a magia funcionar, criei um lírio-do-sol. O brilho mágico foi breve, pois antes mesmo dele terminar de nascer entre as tramas do papel, arranquei as pétalas do miolo e coloquei sobre a boca dela.
— Você enlouqueceu? – berrou uma das irmãs Dorotir. — Vai sufocá-la!
Ignorei-as e empurrei outro colega para puxar mais um pedaço de papel para perto.
— Ela está parando de tossir – gritou o Miguin, outro colega. – O miolo dos lírios-de-sol tem efeito calmante!
Por sorte tinha uma pastilha verde-água embaixo da mesa onde a Kin bateu e gritei ao Miguin:
— Mantenha as folhas no rosto dela sem cobrir as narinas!
O rosto de Kin ficou menos avermelhado e sua respiração se acalmou, mas o sangue não parava de escorrer. Uma das meninas tentou rasgar um pedaço da nossa túnica, mas ela é ultra resistente, para nos proteger de feitiços falhos ou da Seiva Escarlate, que poderia nos queimar se ficasse mais de uma hora em contato com a pele. Então, desenhei às pressas seis folhas de dragão-amarelo, uma planta com alto poder cicatrizante. A minha pressa fez três se desfazerem e as demais não “nascerem” do papel. Tive que respirar fundo para relembrar os movimentos certos, até acertar na última tentativa.
Kin parou de tossir, mas não conseguia se mover. Coloquei as folhas que deram certo sobre sua testa, desfiz o laço da bandana em meu cabelo e o usei para prender as folhas. Foi o tempo de a professora chegar acompanhado de outro professor. Juntos eles conseguiram carregar Kin até a enfermaria.
Eu
as segui pelas escadarias e corredores, mas quando chegamos na porta de entrada
não me permitiram entrar. Foi a minha vez de cair de joelhos, exausta e com os
pulsos doendo pela força e velocidade que pintei. Meus colegas também se
amontoaram perto da porta e não consegui segurar as lágrimas.
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