— Se eu tivesse mandado ela descansar em casa… se eu tivesse a impedido…
— Elsa! Elsa, olha para mim – disse um dos novos professores, chamado de Ronan. – Acalme-se! Ela vai ficar bem!
— Ela passa mal quando se esforça demais! Eu devia tê-la parado…
— Elsa, você parou o sangramento dela! Fez ela parar de tossir antes da professora chegar! – disse Miguin, também com o rosto vermelho. – Não sabia que fazia essas coisas!
Ignorei os elogios que se seguiram e os cochichos. Só queria fugir dali ou ter insistido em entrar para cuidar da Kin. Eu devia ter levado-a para casa nem que fosse carregando-a e matando aula, mas aquela teimosa queria aproveitar até o último minuto de aula…
— É verdade que você conjurou aquelas folhas? – perguntou Ronan e eu assenti, tentando secar as lágrimas, pois eu nem conseguia ver seu rosto direito. – Isso foi incrível! Como sabia das propriedades delas?
— Meus pais… eles cultivam uma fazenda de Flores e Ervas para o uso medicinal do Vale Rosário, onde moro. Comecei a estudar elas porque eles… eles usavam sempre para cuidar de mim… quando ralava o joelho ou me cortava no mato…
Era o fim do meu orgulho. Eu estava chorando e soluçando na frente de todo mundo! Toda a agilidade de minutos antes fugiu de mim como um gafanhoto da Terra tentando escapar de um pássaro. Talvez por isso o professor tenha pedido licença aos alunos e me levado para uma sala de espera.
Era um homem adulto alto, de cabelos escuros, que me guiou para sentar-me em uma das poltronas vermelhas e macias. Não consegui sequer questionar, embora o cuidado dele tenha causado um pouco de conforto, como um abraço de pai. Acabei falando demais:
— A Kin às vezes passa mal… desde que éramos pequenas, sua saúde sempre foi frágil, nem sempre podíamos sair e brincar sozinhas. Então, fui estudando as ervas, lendo as bulas das poções que meus pais criam e testando até algumas em mim…
— Elsa, isso é perigoso! Somente a partir do quinto ano nossos alunos ganham permissão e conhecimento para fazer experimentos assim. Alguém mais sabe disso?
— Não… não, por favor! Não conta para ninguém!
— Elsa…
— Eu juro que só precisei ajudar ela duas vezes! No dia que ela sentiu falta de ar pela neblina e no dia em que ela caiu da árvore e torceu o pé! Eu juro que usamos só as plantas… depois eu só deixei com ela alguns chás anti-inflamatórios que meus pais vendem, e eles estavam ajudando…
— Você jura que nunca modificaram seus corpos?
— Quê? – perguntei, de início por não entender, mas no segundo que eu me lembrei da Lei de Proteção, gritei de novo, me sentindo até ofendida: — Não! Nunca! Jamais faria isso com minha amiga!
Ronan deu um suspiro e sorriu para mim. Ele então pegou minha mão suja e limpou com um lenço as gotas da Seiva Escarlate. Não sei porque, mas aquilo acabou me acalmando.
— Contanto que você não tenha violado a Lei, não há problema algum.
— Por favor, não conta para os pais da Kin que eu estou cuidando dela em segredo – implorei, ainda soluçando um pouco. – O maior sonho dela é se graduar em Criaturas Marinhas! Ela ama peixinhos, baleias, deste e dos outros mundos! Se seus pais souberem que ela passou mal aqui, eles podem tirá-la da escola! Mesmo que ela diga para os pais que ama desenhar, eles não vão ouvir ela…
— Os pais da Kin vão ter que ser avisados do que houve hoje. Mas prometo guardar seu segredo dos dias que cuidou dela em sua fazenda.
Fiquei surpresa ao ouvir aquilo porque esperava uma bronca, como de costume pelos professores. Porém, eu só tive uma aula com ele. Ronan era professor de Pintura Cotidiana, ou seja, ele nos ensinava como criar utensílios e ferramentas úteis ao dia a dia do nosso mundo. Poderíamos começar a criar nossos próprios utensílios no final desse ano, embora restritos a uma lista específica.
— Quando ouvi você falando, Elsa, temi que estivesse buscando magia de Corpos, para ajudar sua amiga. Isso é a coisa mais perigosa e proibida que existe, mas dado a seu desejo de proteger a Kin…
— Eu nunca faria isso! Nem tem como conseguir algo assim! A professora de História da Pintura disse que os livros e instrumentos dessa arte foram queimados ou destruídos, antes que as guerras de mil anos piorassem.
— Bom, Elsa, você entrou agora no segundo ano, então não teve a aula completa sobre essa parte da nossa história.
Não sei se o professor estava tentando me acalmar ou me distrair com aquela conversa. Lembrei que ninguém podia falar dessas guerras além dos professores de história: de que, apesar de nosso povo receber as dádivas de criar vida, fomos proibidos de criar em nós mesmos. Isso significaria que, se minha perna fosse quebrada ou arrancada, eu não poderia desenhar outra. Se eu tivesse nascido com olhos que não enxergassem todas as cores, não poderia desenhar novos olhos, apenas criar algum instrumento que me ajudasse a ver, ou algo que me ajudasse a andar. Parece que milênios atrás nós podíamos fazer coisas assim, mas isso nos foi proibido pelos deuses porque alguns pintores de má índole começaram a deformar seus corpos para ficarem mais fortes.
Nós até soubemos que algumas civilizações conseguiram criar instrumentos e tecnologias que podiam curar pessoas em poucos dias. No planeta Terra já havia pessoas, chamadas de cientistas, que pareciam ter “domado os raios” e criaram instrumentos e agulhas que continham poções capazes de curar grandes doenças. Mas nós, o povo do Véu, não tínhamos permissão para interferir ou tentar copiar seus feitos. Os portais para os outros mundos são restritos aos mais graduados. Não conseguia pensar no que Ronan queria dizer sobre eu não saber tudo, até ele continuar:
— Vocês foram ensinadas que os livros e instrumentos usados por esses pintores antigos foram destruídos, mas, na verdade, eles não foram.
— O quê?
— Ainda há alguns desses fragmentos da nossa história pelo mundo. Dizem que há alguns desses livros com magias proibidas na biblioteca da Ordem, neste Castelo. Você soube que algumas bibliotecas foram atacadas nesses últimos anos?
— Sim, eu ouvi falar. por isso que agora é mais difícil a ordem aceitar novos Pintores. Porque mesmo com tanta beleza ou fartura em nosso mundo, ainda há pessoas querendo ter mais poder…
— Meu medo era que você caísse na tentação de procurar essas pessoas ou esses materiais para curar a Kin.
— Sinto raiva disso! Saber que há mundos mais avançados que o nosso, com médicos que conseguem abrir as pessoas e tirar suas doenças…
— Eu sei que é revoltante, mas as coisas são assim porque devem ser – disse Ronan, sem sorrir. — Juro que entendo seu sentimento.
Ele fez uma pausa antes de continuar e ficou olhando para as próprias mãos. Sem meus soluços, eu podia ouvir os passarinhos próximos cantando e chamando seus irmãos para se deitar. As nossas sombras já se alongavam com o final da tarde.
— Sabe, Elsa, quando eu tinha sua idade, eu morava em um casebre ao norte e, numa tempestade, parte do telhado caiu sobre mim e esmagou meu braço direito, justo o braço que usava para desenhar.
— Sério? Mas, como consegue pintar hoje?
— Graças a pessoas que, velozes como você, chegaram a tempo de me ajudar: os Guerreiros-de-tinta, também conhecidos formalmente como “Pintores de Velocidade”.
— Acho que já ouvi esse nome em algum lugar…
— É uma nova classe de Pintores, formalizada há menos de cinquenta anos pela nossa Ordem. São pessoas que conseguem pintar plantas e instrumentos rapidamente, para socorrer pessoas em perigo ou pintores que se acidentaram. Por sorte, dois desses novos Pintores estavam voando em seus cavalos-alados socorrendo as vítimas da tempestade e viram minha casa parcialmente destruída. Me lembro até hoje de seus nomes: Lira e Hiren! Eram irmãos e Lira primeiro usou um grande papiro para pintar uma espécie de manivela que ajudou a tirar o telhado de cima de mim, enquanto Hiren fez exatamente como você fez, pintou várias plantas com efeitos medicinais, algumas que nem eram do nosso mundo, que impediram que meu osso se quebrasse e aceleraram a cicatrização dos músculos e tendões! Depois de alguns meses de fisioterapia, muitas poções e exercícios, consegui voltar a desenhar cerca de um ano depois. Foi difícil, parecia tortura viver sem ser capaz de segurar um pincel, mas eu devo muito a eles.
— Eles conseguiram pintar mesmo na chuva?
— Sim! Com guarda-chuvas enormes que eles mesmos criaram! Sabe, Elsa, você bem que poderia se tornar um deles no futuro! As crianças não paravam de falar o quão rápida você foi ao acudir a Kin. E pelo seu histórico de suporte a ela, ainda mais com os conhecimentos que seus pais possuem, pode se tornar uma das melhores!
— Eu… eu não sei…
— Ora, mas por que não? Tem outro sonho em mente?
— Bom, meus pais não estão muito satisfeitos por mim, a única filha não querer seguir o rumo da família e cuidar das nossas terras. Eles só me deixaram estudar aqui porque… bem… eu sou meio…
— Rebelde?
O sorriso dele acabou me fazendo rir. Nunca nenhum professor tinha sido tão legal assim comigo. Ele não parecia me ver como uma criança birrenta.
— É… e eu queria estudar mais sobre a natureza, especialmente os insetos. Eu adoro capturar e estudar eles. No começo, quando me machucava muito no mato, tive que aprender a socorrer a mim mesma para não ficar de castigo.
— Entendo. Eu também gostava muito de insetos, mas fiquei rendido pela arte da Construção! Darei também uma versão avançada de Utensílios no próximo ano. Bom, acho que você ainda tem muito tempo para decidir. Tem seis anos de escola ainda pela frente! Pode se apaixonar por outras áreas, quem sabe. Por agora, vou pedir que descanse e não se preocupe com a Kin. Temos os melhores médicos do nosso mundo aqui, disfarçados dando aulas!
— Eu não sabia disso!
— Você ainda tem muito a aprender. Não vou pagar de professor rabugento, dizendo que você não deveria estudar formas de socorrer outras pessoas. Vai ser nosso segredo!
— Obrigada!
— Mas, peço que também guarde o meu: não espalhe que há instrumentos e livros de magia proibida escondidos aqui. Na verdade, este é o local mais seguro para eles ficarem. Quando crescer, você também precisará protegê-los.
— Mas… nesses livros teria algo que pudesse curar a Kin de suas tosses e fraqueza?
Ronan me olhou nos olhos de um jeito estranho. Eu não sabia se ele estava triste ou sério. Nunca vi algo assim. O ruim de ser criança é que tudo parece novo demais.
— Isso nós não temos permissão de descobrir.
Ronan se levantou e buscou na estante da sala um dos papéis básicos de criação. Tirando o próprio estojo da bolsa em sua cintura, ele primeiro criou um pequeno cantil de água e depois, com outro papel, conjurou água límpida, usando o próprio papel para encher o cantil. Quando ele me deu, senti um cheiro suave que parecia de flores.
— Por hora, descanse. Essa água vai te relaxar ao longo do dia e evitar que tenha pesadelos. Você foi uma heroína hoje e vou pedir para que seus pais venham te buscar.
— Mas eu queria ficar! Saber se a Kin está bem! Ela é minha melhor amiga!
— Já disse e repito: ela está em boas mãos. Você já deu o socorro rápido! Pense que, quanto mais estudar, mais vai aprender a protegê-la!
Ronan saiu da sala e eu engoli toda a água de uma vez. Sentia meu corpo começar a doer, talvez pela tensão e, de repente, adormeci na poltrona.
continua
Comments (0)
See all