Sonhei que a Kin podia voar.
Era estranho, mas vi ela brilhar em dourado e começar a levitar cada vez mais alto e brilhando muito. Eu gritava para ela descer, mas ela não me ouvia. Acabei acordando chamando por ela, mas quem me atendeu foi minha mãe.
Quase chorei quando a vi. Logo eu, que sempre gritava com ela quando pedia para que eu voltasse para dentro de casa, fosse para lavar louça ou ajudar nas compras.
— Ô, filhinha, está tudo bem! Está tudo bem, mamãe está aqui…
Era golpe baixo me abraçar e falar isso.
Pouco depois meu pai veio para o quarto e me abraçou também. Eu jurava que levaria alguma advertência e não foi o que aconteceu:
— Os professores nos contaram que a Kin passou mal, mas você a acudiu conjurando nossas plantas sozinha! Estamos orgulhosos, mas… um pouco surpresos! – disse meu pai, sentando-se na cama. Ele era grande e alto e fez tudo ranger com seu peso. Mamãe riu e falou em seguida:
— Achamos que tinha ido para estudar os insetos que tanto ama!
— E eu vou… só que… bem, eu estudei as plantas daqui para…
— Você queria cuidar da Kin, não é? – meu pai foi mais rápido do que eu e aceitei que bagunçasse meu cabelo dessa vez. — Filha, você foi incrível! Até nossos vizinhos estão falando sobre o que houve desde que seus filhos chegaram em casa. Você tem um dom e tanto!
— Só precisa se concentrar mais nos estudos e tirar boas notas para se aprimorar – disse a mamãe, com uma piscadela que indicava uma bronca parcial, talvez pelas minhas notas do ano passado. — Um dos professores da escola disse que você poderia ser uma Guerreira-de-tinta! Isso seria incrível!
— Vocês… vocês juram que está tudo bem? Achei que estavam tristes comigo… porque não quero assumir a fazenda…
Papai suspirou antes de falar:
— Bem, ainda estamos um pouco, porém, fico mais tranquilo em saber que você pode aproveitar algo daqui. Tem que se dedicar mais aos estudos para isso, mocinha!
Aceitei as cócegas do papai porque eu precisava rir. Mas eu não conseguia ficar feliz mesmo com seus abraços.
— E quanto a Kin? Vocês têm notícia dela?
O sorriso dos meus pais sumiu e senti meu peito doer ao ver suas expressões. Mamãe foi quem falou primeiro:
— O professor Ronan nos disse que ela precisou ser levada para o hospital, mas que nós não deveríamos nos preocupar.
— Mas… mas… eu pensei que ela iria para casa!
— Filha, não se preocupe – disse meu pai segurando minha mão. Ele não me olhou nos olhos como o professor Ronan fez. – Disseram que ela estava consciente e até perguntou por você!
— Devem ter feito isso só para observá-la. Com esse tempo louco, cheio de ventos e chuvas esporádicas ela deve ter gripado! Temos até que separar mais ervas-da-lua para nos cuidarmos e ajudar um vizinho que ficou de cama por causa dos ventos. Enquanto isso, descanse um pouco que amanhã você tem aula. Vou trazer um caldo de frango bem quente, do jeito que você gosta e até para levantar sua imunidade!
— Mas eu…
— E vai ter que pegar a matéria para a Kin! – disse o papai. — Copie tudo direitinho para ela, ouviu? É isso que os amigos de verdade fazem!
Quando eles saíram e me deixaram sozinha, senti que alguma coisa estava errada com tudo isso. Elogios, meu prato favorito… e se a Kin piorou e eles estavam escondendo isso de mim?
***
No dia seguinte, a escola pareceu mais chata sem o bom-humor e as piadas da Kin. A irmã dela também não veio enquanto todos me disseram que ela só foi para o hospital para que ficasse em observação. A confusão de ontem também me atrapalhou em investigar se estavam mentindo porque toda hora alguém me parava perguntando como eu tinha aprendido a desenhar rápido, quais plantas que eu fiz, onde que tinha aprendido e tudo mais. Não vou mentir que gostei de receber mais atenção do que as puxa-saco das irmãs Dorotir, que continuaram me olhando como se eu fosse estrume. Ao mesmo tempo, alguns dos nossos colegas fizeram cartinhas ou pequenas aquarelas para Kin, todas com mensagens de apoio e dizendo melhoras. Fiquei encarregada de guardá-las para entregá-la quando a visitasse no hospital.
Eu não deveria estar surpresa com isso. Kin era popular entre nossos colegas, já que ela estava sempre apoiando eles nos estudos, dando dicas de como pintava e sempre com bom-humor. Diferente de mim, que arrumo qualquer desculpa para uma briga – o que às vezes até afastava nossos colegas quando ela andava comigo.
Com isso em mente, dessa vez eu tentei de verdade prestar mais atenção nas aulas. Juro, eu tentei, mas não deu. Dormi na aula depois do almoço e me atrasei para uma aula no bosque dos alunos porque vi um besouro-chifre lindo perdido na sala… Foi quando lembrei do meu pai falando que amigos de verdade copiam matéria e me senti culpada, mesmo com minha nova aquisição voando no potinho de vidro que peguei emprestado (eu não roubei, juro! Devolveria no dia seguinte!). A saudade da Kin bateu na última aula, que era sobre o Ecossistema do nosso país. Justo naquele dia era aula sobre algumas criaturas marinhas. A Kin estaria louca com essa matéria! Consegui até imaginá-la copiando escondida as figuras do livro.
Estapeei minhas bochechas e anotei tudo o mais rápido que consegui. Implorei a professora que me emprestasse o livro para estudar, mas ela não deixou. Os livros só eram emprestados em caso de dever de casa. E o pior foi o que ela me disse:
— Não vamos lhe emprestar nada, Elsa! Ano passado, os livros que devolveu estavam sujos de terra e até com folhas manchadas. Seja mais cuidadosa e atenta com os livros dos deveres e, talvez, eu deixe você levá-los!
Desisti até de discutir depois dessa. Nunca pensei que deveria mudar meu comportamento até aquele momento, embora ele causasse risadas a Kin. Agora eu estava vendo que, se eu continuasse desleixada ou desatenta, atrapalharia mais do que ajudaria…
***
A única coisa que me alegrou foi saber que poderia visitar a Kin no hospital no fim do dia, e quem me levou foi a irmã mais velha dela, chamada Kyara. Durante a viagem breve em Oromir, acabei conversando com ela pela primeira vez. Eu conhecia a Kin há uns seis anos e nunca tinha parado para prestar atenção em sua irmã. Ela também tinha cabelos longos, lisos e de cor preta como a Kin. Ela estava no último ano da Ordem e poderia começar sua especialização no ano seguinte. Meu momento de inveja acabou divertindo-a:
— Você querendo estar no meu lugar e eu querendo estar no seu! – disse a mim, rindo alto. — Sinto saudades de ter mais tempo para ler, porque depois do quarto ano, as aulas vão até de noite. E eu ainda não me decidi no que vou me especializar. Queria ser uma pintora que pudesse viajar por todos os planetas do Véu Cintilante!
— É parecido com o que a Kin quer, só que ela quer fazer os animais marinhos.
Colocar a Kin na conversa talvez não tenha sido uma boa ideia pela expressão de sua irmã.
— O que a Kin mais ama é desenhar. Acho que ela ama isso mais do que eu… mas estamos com medo. A saúde da Kin piora quando as estações mudam. Os médicos também disseram que ela está mais frágil…
— Mas ela é forte! Vai sair dessa logo e vai voltar para escola! Tenho certeza! – disse para ela, embora talvez tenha dito um pouco para mim também.
***
Apesar de não ser permitido, corri pelos corredores do hospital até achar o quarto da Kin. Para meu alívio, vi que ela estava sorrindo e fazendo uma aquarela em um pequeno caderno.
— Elsa? Elsa, você chegou! Entra logo aí!
Animada e sorrindo. Sabia que ela iria melhorar! Ela sempre melhora! Pulei em sua cama antes de sua irmã chegar. Que bom que ela não me viu pular e abraçar apertado a Kin:
— Tu me deu um susto danado! Queria ser sua irmã mais velha para te colocar de castigo!
— Hahaha! Somente minha irmã e meus pais têm esse poder!
— Vou te mostrar as coisas que nossos colegas escreveram para você. Miguin até fez uma aquarela sua, e ficou horrível!
— Ah, mas que fofo!
Conversamos, rimos dos erros ortográficos das cartas e até a Kyara riu conosco quando chegou. Porém, um médico apareceu na porta para avisar que o horário de visitas estava acabando e pior: levaram o estojo e o caderno dela!
— Poxa! Por que eles não te deixam com ele? Você nem está usando a Seiva Escarlate! – disse, cruzando os braços e dando língua para o médico quando ele virou as costas. Vi que a Kin tinha parado de sorrir.
— Eles tiram porque dizem que eu não posso me forçar – disse e depois se voltou para sua irmã. — Mana, é verdade que o papai vai me tirar da escola?
— QUÊ? — Céus! Sem querer gritei em um hospital…
— Estou tentando convencê-los a não fazer isso, mas eles temem que você piore… eu também temo, na verdade.
— E se a Kin parasse de voar a cavalo para usar carruagens? – perguntei. — Assim ela não tomaria vento!
— E eu posso descansar mais em casa, me economizando para as aulas!
— Kin, não dá…
— Por favor, mana!
— Kin, pare! É sério…
— Mas eu amo ir para a escola!
— Kin, se você morrer, meu espírito morrerá junto! – exclamou Kyara, com os olhos vermelhos. Fiquei sem reação ao ver o desespero no rosto dela, mesmo sendo mais velha do que nós duas. — Escute… eu… eu prefiro você desenhando em casa, bem e segura, do que te deixar sair… e correr… correr o risco de ver você sofrer de novo ou morrer…
— Eu posso socorrer a Kin a qualquer hora! – Me meti. – Meus pais têm várias ervas cicatrizantes ou anti-inflamatórias! Não vou sair um minuto sem ela!
— Ah, Elsa… — disse Kin, mas ela mesma se conteve.
— E se você não puder ir à escola? – começou a dizer sua irmã. — E se as ervas não forem o suficiente? Me desculpe, Elsa, e maninha… mas se for o certo para te proteger, eu concordarei com meus pais. Nesse final de semana os médicos vão dar seu laudo e veremos o que fazer.
Fiquei furiosa com aquelas palavras, mas ela não tinha poder sobre seus pais também. Vi o rosto da Kin ficar vermelho. Ela queria chorar, e eu odiava quando ela chorava. Abracei ela sem apertar e cochichei em seu ouvido:
— Se eles fizerem isso, eu vou levar as lições e os livros todos os dias para sua casa escondida! Amanhã faço um caderninho para você esconder embaixo do colchão da cama! Não precisa se esforçar que eu vou dar um jeito!
Kin respirou fundo e concordou com um aceno. Quando sua irmã saiu e eu me levantei, ela sorriu para mim de um jeito novo. Talvez parecido quando ela topava um desafio.
— Amanhã eu vou fazer um desenho para todo mundo que lembrou de mim. Anote tudo, Elsa! E nada de fazer feio com sua letra confusa!
— Sim, senhora! – respondi ao me despedir.
***
Eu não dormi nada bem naquela noite. Tive vários pesadelos em que a Kin morria e eu não podia fazer nada.
Acordei mais cedo pensando em ir atrás de mais insetos antes da aula, mas desisti. Fiquei olhando meu quartinho, os quadros com os corpinhos dos insetos mortos que resgatei e preservei, meus vários pincéis espalhados pela mesa juntos aos pedaços de papéis com desenhos que eu tinha errado ou desistido. Ver então a rede pega-borboleta do lado da porta me fez perceber algo que eu nunca tinha pensado: o quanto eu era livre.
Ao contrário da Kin, eu podia sair e me enfiar no mato em busca de coisas legais para serem pintadas como insetos peculiares, pássaros em seus ninhos ou mesmo alguma paisagem que eu gostasse. Claro que meus pais só me deixavam sair depois de fazer todas as tarefas de casa e as lições que a escola insistia em passar até nas férias. Além disso, eu não deveria levar nem um pingo da Seiva Escarlate, para que as aquarelas que eu fizesse ficassem apenas no papel, sem toque de magia ou vida. Eles não sabiam que eu tinha conseguido um vidro pequenino para guardar a Seiva entre minhas roupas e usar mesmo contra a vontade deles.
A Kin não tinha essa sorte. Ela sofria de problemas de coração e falta de ar pelos pulmões frágeis. Às vezes eu até conseguia “raptá-la” de seu lar escalando o telhado para levá-la a um bosque, mas com o retorno das aulas, seria esforço demais para ela. Só de vê-la já respirando mais alto como no dia em que ela me deu carona por estar cavalgando, me enchia de preocupação. Talvez sua irmã não fosse só uma chata, ou seus pais não fossem egoístas. Talvez isso fosse melhor para que a Kin não sofresse.
Porém, eu sei o quanto ela ama pintar, especialmente ao ar livre. Conheço ela desde pequena e sei que, ficar um dia de cama sem seus pincéis e cadernos, a fazia até piorar em algumas vezes. Tinha que ter uma forma de mudar isso… não é possível que os médicos não possam curá-la de vez!
Me lembrei então do que o professor Ronan disse: que havia livros proibidos na escola, com magias que mudavam os corpos das pessoas. E se, em um desses livros, tivesse uma magia que poderia curar a Kin? Ou até me ajudasse a fazer um portal para levá-la até algum mundo mais evoluído? Se ela fosse curada poderia ir para escola e todos ficariam felizes!
Minha empolgação sumiu quando me lembrei que, com certeza, eu seria presa. Quem era pego fazendo magias e criações proibidas ia para prisões ao longe e nunca mais podia pintar. A ideia de ser obrigada a viver o resto da minha vida longe dos pincéis, do cheiro da tinta, do toque do papel e do som da mata me apavorava. Mas, se fosse pela Kin, talvez não fosse tão ruim. E talvez, por ser criança, eles aliviariam minha pena. Nunca tinha ouvido falar de criança presa!
Estava decidido. Na segunda-feira eu iria descobrir onde estavam os livros proibidos!
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