Durante todo o fim de semana fiquei sem notícias do estado da Kin. Na segunda, quando voltei para a escola, os alunos continuavam perguntando e até os professores diziam que sentiam falta dela. Dessa vez pedi ajuda a Miguin para me ajudar a copiar a matéria, enquanto eu usava o intervalo para costurar um novo caderno com folhas de aquarela para a Kin. Ele era menor, com menos folhas, mas era mais fácil de esconder.
Depois, com a ajuda do professor Sh-Rorin – que também gostava da inteligência e das aquarelas da Kin –, montamos um novo estojo, menor e mais portátil, com uma paleta de cores só para ela. Acabei me divertindo com o professor ao conhecer pastilhas e pigmentos que nunca tinha ouvido falar.
Com Ronan, consegui mais histórias sobre a biblioteca da escola. Tentando ser discreta, perguntei como escondiam os livros proibidos. Ele apenas supunha que estariam mais ao fundo da biblioteca, talvez atrás de uma porta secreta no subsolo, onde os alunos não poderiam ir. Apesar da dificuldade aparente, estava cada vez mais confiante de que conseguiria entrar lá.
À noite, dessa vez com meus pais, consegui visitar a Kin e fiquei encantada com uma aquarela que ela fez mesmo com pouco tempo, onde colocou todos os peixinhos que ela conseguiu pintar e com um fundo de galáxias. Era incrível o quão bem ela misturava as cores e controlava a quantidade de tinta sobre o papel úmido.
Kin me agradeceu quase chorando quando mostrei o estojo que eu e o professor fizemos. Apesar dela parecer cansada naquele dia, ela estava confiante e fazendo piadas sobre os médicos e enfermeiros. Sua maior reclamação era o gosto das poções. Colocaram também várias faixas ao redor de seu peito, manchadas de verde por conta da mistura de plantas medicinais ao tecido. O cheiro era forte, mas ela estava respirando melhor.
Ela também ficou encantada com os desenhos dos colegas e me entregou para levar para escola uma nova pintura, com os rostos de todo mundo – até de mim!
— Que cara é essa, Elsa? Você não é de chorar!
Resmunguei enquanto enxugava os olhos.
— E não sou mesmo! Vou levar sua pintura e deixar secar na minha mesa presa com fitas, para o papel não enrugar!
Nos despedimos com um longo abraço (com menos aperto para não machucá-la). No caminho de volta ao saguão do hospital encontramos os pais da Kin. Eles não me pareciam mais tão assustadores, tão pouco não me olhavam como se me achassem uma má influência, o tipo de olhar que eu já tinha me acostumado. Aceitei seus agradecimentos pelo dia que ajudei a Kin, mas resolvi não brigar com eles sobre a questão de tirar a Kin da escola. Isso porque no dia seguinte eu iria resolver essa situação de uma vez por todas.
***
Coloquei tudo que mais precisava para minhas aventuras na mochila: caderno mais leve e menor caso precisasse pintar algo, com as folhas que ajudariam a conjurar plantas ou utensílios. Nele estavam presos três pincéis e uma caneta bico de pena. Também levei meu pequeno estojo de apenas seis pastilhas, sendo três delas de cores primárias, para levar menos peso e misturar os pigmentos caso fosse necessário. Meu pequeno potinho de vidro estava com Seiva Escarlate até a boca e bem tampado para não abrir na mochila, perto do meu cantil de água. Também levei agulhas e ferramentas que ajudavam a arrombar cadeados e bússola para não me perder. Minha bússola era o item mais importante de todos, que me ajudava quando ia fundo demais na mata. Suas laterais eram largas, o que dava espaço para marcar nela com tinta direções importantes. E, por último, meu pequeno lampião. Era do tamanho da minha mão e, com o pouco espaço para óleo, só permitia uma hora de chama acesa, mas ainda era útil ao cair da noite. Se a sala proibida fosse no subsolo, com certeza eu precisaria de alguma luz discreta.
Aproveitei o intervalo do almoço para ir até a biblioteca no último andar. A desculpa estava na ponta da língua: iria procurar livros de animais marinhos para entreter a Kin no hospital. A bibliotecária não me conhecia, pois era a ala dos alunos veteranos, e minha carinha inocente ajudou-me a conseguir permissão para entrar.
A biblioteca era um verdadeiro labirinto. Deveria ser cinco vezes maior do que a biblioteca que os alunos dos dois primeiros anos podiam ir em uma das torres. No bolso da túnica amassei o papel com as coordenadas da bibliotecária e saí procurando por alguma passagem secreta ou porta trancada. Como o ano letivo tinha começado, estava quase vazia. Bibliotecas só enchiam mesmo em semanas de provas ou em trabalhos mais elaborados para os veteranos.
Devo ter levado uma hora só vasculhando tudo atrás de alguma pista em vão. Cansada, sentei um pouco em um banco perdido perto de uma prateleira. Suspirei, pensando que talvez não conseguisse encontrar nada. Os grandões da Ordem dos Pintores devem ter escondido muito bem.
De repente, ouvi um som estranho. Não soube se eram passos ou algo sendo arrastado e me levantei correndo para me esconder. Achei um canto vazio na estante perto da parede, onde consegui me apertar. As luzes dos lampiões estavam mais distantes e, para que o sol não danificasse os livros, as janelas eram abertas apenas perto da entrada.
Prendi a respiração quando ouvi passos se aproximando. Consegui ver as botas de algum adulto indo em direção a parede. Aquilo não fazia sentido e, depois de esperar vários minutos, percebi que aquela pessoa tinha sumido. Não havia como ela não passar por mim!
Respirei fundo, coloquei a cabeça para fora e fiquei confusa porque não havia nada além de mim e os livros. Então, saí e bati um pouco na parede. Em alguns livros de fantasia haviam portas com passagens secretas escondidas. Percebi que na parte mais em baixo havia algum espaço que fazia um som diferente. Ao tatear, senti um relevo sutil e identifiquei que eram palavras.
— “Toque a chave do coração”. O que isso queria dizer?
Pensei por alguns minutos e recoloquei a mão sobre as palavras. A escuridão me impediu de perceber que algumas letras da palavra “coração” pareciam mais fundas do que as outras. Estudei o formato das chaves com meus instrumentos e depois tirei da bolsa meu caderno, Seiva Escarlate e um pincel pequeno. Criei então três chaves pequenas e precisei me debruçar sobre minha própria pintura para que o brilho não chamasse atenção.
Testei nos buracos e, apesar de encaixar, nada aconteceu. Então, coloquei todas juntas ao mesmo tempo e ouvi um estalo. Como uma porta de correr, consegui puxar aquele pedaço da parede e encontrar um buraco pequeno e cúbico. Estava muito escuro e tive que acender meu lampião. Amarrei a mochila no pé, pois não daria para passar pelo buraco com ela nas costas.
Engatinhei por quase meia hora por vários pequenos túneis úmidos e comecei a sentir cheiro de algo velho, como uma sala cheia de papéis que não eram arrumados há anos. Percebi um pouco de mofo se aglomerando e pensei que a Kin não aguentaria um segundo aqui dentro. Pensei até em desistir, marcando na bússola as direções que precisava para retornar quando senti, a poucos centímetros, um outro buraco.
Finalmente consegui ver um novo salão muito fedorento e escuro. Tive que pular para acertar a estante e machuquei um pouco meu ombro. Me limpei correndo da sujeira e tive uma surpresa: eu estava coberta de Seiva Escarlate. A tinta parecia velha porque estava escurecida e o uniforme protegeu meu corpo do pior, mas eu teria que ser rápida antes que a tinta começasse a queimar parte do meu cabelo. Quando pensei que poderia descer em segurança pelas prateleiras, a luz do lampião me salvou de uma armadilha.
Na verdade, eram mais de uma. Haviam papéis no chão com coisas escritas, como formas de escorpiões, algemas e palavras que nunca tinha lido na vida. Naquele momento entendi por que o túnel estava cheio de tinta: se eu pisasse neles com os sapatos sujos da Seiva poderia terminar as conjurações e elas iriam me trazer muitos problemas. Elas não dependiam de palavras mágicas, algo muito mais avançado do que o que eu e Kin estávamos estudando. Reconheci em algumas das ilustrações ao longe um dos escorpiões mais venenosos do nosso mundo, chamados de pega-luz. Tinham esse nome porque eram atraídos por fontes de luz, que nem moscas no verão.
Desci com medo, mas achei um espaço entre os papéis para andar. Meu lampião não iria durar muito tempo e tentei ver se havia algo nas lombadas dos livros. Para meu azar, eram livros encadernados de forma artesanal, o que me obrigava a ter que puxá-los um por um para ler seus títulos. Foi quando ouvi palmas...
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